São Gregório Magno
Homilia 2 sobre os Evangelhos
Este cego é todo o gênero humano
Nosso Redentor,
conhecendo que os corações de seus discípulos haviam de ser gravemente
perturbados em sua sagrada Paixão, muito antes que essa acontecesse, deu-lhes
notícia sobre ela e da ressurreição: para que ao verem-lhe morrer, como ele
tinha dito, estivessem certos de que haveria de ressuscitar. Porém, sabendo o
Senhor que os discípulos enquanto carnais não podiam compreender as palavras
deste mistério, quis realizar em sua presença um milagre, e então deu visão
para um cego, para levá-los à firmeza da fé com obras extraordinárias, já que
não conseguiam compreender bem as palavras. Mas os milagres de nosso Redentor
devem se ouvir de modo que creiais que aconteceram assim como são referidos, e
juntamente com isso haveis de crer que possuem em seu interior outro
simbolismo. Suas obras são tão cheias de surpresas, que por uma parte mostram
exteriormente seu maravilhoso poder, e por outra encerram interiormente um
mistério divino.
Não sabemos, na
verdade, quem era este cego, porém sabemos no mistério a quem representa. É evidente que este cego é todo o gênero humano: o qual em nosso primeiro pai foi
lançado das alegrias do paraíso, e sendo ignorante e privado da claridade da
luz soberana, padece as trevas às quais foi condenado; porém, é iluminado com a
presença do Salvador, para que ao menos dentro da alma sinta luz para desejar o
bem, e com este desejo comece a caminhar pelo caminho das boas obras para
alcançar-lhe.
Mas haveis de
notar que o cego é iluminado quando Jesus Cristo nosso Salvador chega a Jericó:
Jericó em nossa língua quer dizer “lua”! A lua na Sagrada Escritura denota a
deficiência da natureza humana, porque, alternando-se e diminuindo-se de hora
em hora, assinala os defeitos e mudanças que em nós se encontram. Chegando,
pois, nosso Senhor a Jericó, o cego recupera a vista, porque é manifesto que,
quando Deus uniu consigo a fraqueza de nossa humanidade, a linhagem humana
recobrou a vista que tinha perdido: porque abaixando-se Deus a sofrer coisas de
homem, foi elevado o homem a degustar coisas de Deus.
E vem muito a
propósito dizer que este cego estava sentado à beira do caminho e mendigando,
porque a própria Verdade, Cristo nosso Senhor, falando de si diz: Eu sou o caminho. É claro que é cego
aquele que não sente em si a claridade da luz soberana; mas quando já tem o
princípio, que é crer em seu Redentor, podemos dizer que está sentado junto do
caminho. E se havendo crido, silencia e não pede misericórdia para ver a luz
eterna, e cessa de pedir esta graça, diremos que o cego está junto ao caminho,
mas que não pede esmola; mas se junto com o ato de crer pede a graça de Deus,
diremos que o cego está junto ao caminho, e que está pedindo.
Olhem, portanto,
meus irmãos! Quem quer que conheça as trevas de sua cegueira, quem quer que
entenda que lhe falta a luz soberana, arranque o clamor do coração, e com
verdadeiro grito da alma diga: Jesus,
Filho de Davi, tem piedade de mim. Mas, vejamos, que acontece a este cego
que grita tantas vezes? Muitos o
repreendiam para que se calasse. Quem pensais que são estes que, vindo
nosso Redentor, vão à frente gritando? Sabeis que são os desejos carnais, e os
esquadrões dos vícios, para impedir que Deus nos ouça e que o chamemos com
atenção, dissipam nossos bons pensamentos, desordenam com suas tentações
qualquer boa deliberação que nossa alma faz, e quando o coração quer estar mais
atento na oração, ali o procuram para lhe perturbar.
Este é o
artifício de nosso inimigo, que, quando queremos deixar os pecados e voltar a
Deus - e para isto nos coloquemos em oração pedindo que sua majestade nos ajude
-, então se declaram por sua artimanha ao nosso coração as visões assustadoras
dos pecados que temos cometido, e querem ofuscar a nossa alma, confundir o
nosso coração, e tirar-nos a fala. Diz, portanto, que aqueles que iam à frente
o repreendiam, dizendo que se calasse: porque, para impedir que Deus venha à
nossa alma, os pecados passados interrompem os pensamentos, procurando
perturbar nossa oração. Porém, saibamos o que fez o cego contra tudo isso para
ser iluminado: mas ele gritava mais
ainda: Filho de Davi, tem piedade de mim.
Fonte: Lecionário Patrístico Dominical, pp. 493-494. Para adquiri-lo no site da Editora Vozes, clique aqui.
Para ler uma homilia de Santo Agostinho para este domingo, clique aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário