Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos
Santa Missa em sufrágio pelos Cardeais e Bispos falecidos durante o ano
Homilia do Papa Francisco
Basílica de São Pedro
Quarta-feira, 02 de novembro de 2022
As leituras que ouvimos (Is
25,6a.7-9; Sl 24; Rm 8,14-23; Mt 25,31-46) suscitam em
nós, em mim, duas palavras: espera e surpresa.
A espera manifesta o
sentido da vida, pois vivemos na expectativa do encontro: o encontro com Deus,
que hoje é o motivo da nossa oração de intercessão, especialmente pelos
Cardeais e Bispos falecidos durante o último ano, pelos quais oferecemos em
sufrágio este Sacrifício Eucarístico.
Todos vivemos na expectativa, na
esperança de um dia ouvir aquelas palavras de Jesus: «Vinde, benditos do meu
Pai» (Mt 25,34). Estamos na sala de espera do mundo para entrar no
paraíso, para participar naquele “banquete para todos os povos” do qual nos
falou o profeta Isaías (Is 25,6a). Ele diz algo que aquece o nosso
coração, porque levará a cumprimento precisamente as nossas maiores expectativas:
o Senhor «eliminará para sempre a morte» e «enxugará as lágrimas em cada rosto»
(v. 8). É bom quando o Senhor vem enxugar as lágrimas! Mas é muito ruim quando
esperamos que seja outra pessoa, e não o Senhor, que as enxugará. E pior ainda,
não ter lágrimas. Então poderemos dizer: «Este é o Senhor em quem esperamos - Aquele
que enxuga as lágrimas - alegremo-nos, exultemos pela sua salvação» (v. 9).
Sim, vivemos na expectativa de receber bens tão grandes e bons que nem sequer
os conseguimos imaginar, pois como nos recordou o Apóstolo Paulo, «somos
herdeiros de Deus, coerdeiros de Cristo» (Rm 8,17) e “esperamos
viver para sempre, esperamos a redenção do nosso corpo” (v. 23).
Irmãos e irmãs, alimentemos a expectativa
do Céu, exercitemos o desejo do paraíso. Fará bem a nós hoje perguntarmo-nos se
os nossos desejos têm a ver com o Céu. Pois corremos o risco de aspirar
constantemente a coisas que passam, de confundir os desejos com as
necessidades, de antepor as expectativas do mundo à espera de Deus. Mas perder
de vista o que importa para perseguir o vento seria o maior erro da vida.
Olhemos para cima, porque estamos a caminho do Alto, pois as coisas daqui não
irão para lá: as melhores carreiras, os maiores sucessos, os títulos e
reconhecimentos mais prestigiosos, a riqueza acumulada e os ganhos terrenos,
tudo esvanecerá num instante, tudo. E todas as expectativas neles depositadas
ficarão desapontadas para sempre. No entanto, quanto tempo, quanto esforço e
energia gastamos, preocupando-nos e amargurando-nos por estas coisas, deixando
desvanecer-se a tensão pela casa, perdendo de vista o sentido do caminho, a
meta da viagem, o infinito para o qual tendemos, a alegria pela qual
respiramos! Perguntemo-nos: vivo o que digo no Credo, isto é: “Espero a
ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir”? E como está a minha
espera? Sou capaz de ir ao essencial ou distraio-me com muitas coisas
supérfluas? Cultivo a esperança ou vou em frente me queixando, porque dou
demasiado valor a muitas coisas que não contam e que depois passarão?
À espera de amanhã, ajuda-nos o
Evangelho de hoje. E aqui surge a segunda palavra que gostaria de partilhar
convosco: surpresa. Porque é grande a surpresa cada vez que ouvimos
o capítulo 25 de Mateus. É semelhante à dos protagonistas, que dizem:
«Senhor, quando te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos
de beber? Quando te vimos estrangeiro e te acolhemos, ou nu e te
vestimos? Quando te vimos doente ou prisioneiro e te fomos visitar?» (vv.
37-39). Quando? Assim se manifesta a surpresa de todos, o
enlevo dos justos e a consternação dos injustos.
Quando? Também nós o poderíamos dizer:
esperaríamos que o juízo sobre a vida e sobre o mundo tivesse lugar sob o sinal
da justiça, perante um tribunal resolutivo que, filtrando todos os elementos,
lance luz para sempre sobre as situações e as intenções. Ao contrário, no
tribunal divino, o único mérito e acusação é a misericórdia para com os pobres
e os descartados: «Tudo o que fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos,
foi a mim que o fizestes», sentencia Jesus (v. 40). O Altíssimo parece estar
nos mais pequeninos. Quem habita nos céus vive entre os mais insignificantes do
mundo. Que surpresa! Mas o juízo terá lugar desta forma porque será feito por
Jesus, o Deus do amor humilde, Aquele que, nascido e morto pobre, viveu como
servo. A sua medida é um amor que vai além das nossas medidas, e a sua medida
de juízo é a gratuidade. Assim, para nos prepararmos, sabemos o que fazer: amar
gratuitamente e a fundo perdido, sem esperar uma retribuição, quem entra na sua
lista de preferências, quem não nos pode dar nada em troca, quem não nos atrai,
quem serve os mais pequeninos.
Esta manhã recebi uma carta de um
capelão de um lar de crianças, um capelão protestante, luterano, numa casa de
crianças na Ucrânia. Crianças órfãs de guerra, crianças sozinhas, abandonadas.
Ele disse: “Este é o meu serviço, acompanhar estes descartados, porque perderam
os pais, a guerra cruel deixou-os sozinhos!”. Este homem faz o que Jesus lhe
pede: cuidar dos mais pequeninos na tragédia. E quando li esta carta, escrita
com tanta dor, fiquei comovido e disse: “Senhor, vê-se que Tu continuas a
inspirar os verdadeiros valores do Reino”.
Quando? - dirá este pastor quando se encontrar com o Senhor. Aquele “quando” surpreendido, que aparece quatro vezes nas perguntas que a humanidade dirige ao Senhor (cf. Mt 25,37.38.39.44), chega tarde, apenas «quando o Filho do Homem vier na sua glória» (v. 31). Irmãos, irmãs, não nos deixemos surpreender também nós. Tenhamos muito cuidado para não adoçar o sabor do Evangelho. Pois muitas vezes, por conveniência ou conforto, tendemos a atenuar a mensagem de Jesus, a diluir as suas palavras. Admitamos, tornamo-nos muito hábeis a ceder a compromissos em relação ao Evangelho. Sempre até aqui, até ali - compromissos. Dar de comer aos famintos, sim, mas a questão da fome é complexa, e certamente não consigo resolvê-la! Ajudar os pobres, sim, mas depois as injustiças devem ser tratadas de certa forma e por isso é melhor esperar, também porque se eu me comprometer, corro o risco de ser sempre incomodado e talvez perceba que poderia ter feito melhor; é melhor esperar um pouco. Estar perto dos doentes e dos presos, sim, mas nas manchetes dos jornais e nas redes sociais há outros problemas mais urgentes, então por que precisamente eu deveria interessar-me por eles? Acolher migrantes, sim, claro, mas é uma questão complicada, diz respeito à política... Não me envolvo nestes assuntos... Sempre compromissos: “sim, sim...”, mas “não, não”. Estes são os compromissos que fazemos em relação ao Evangelho. Tudo “sim”, mas, no final, tudo “não”. E assim, à força de “mas” e de “contudo” - tantas vezes somos homens e mulheres de “mas” e “contudo” - fazemos da vida um compromisso em relação ao Evangelho. De simples discípulos do Mestre tornamo-nos mestres da complexidade, que discutem muito e fazem pouco, que procuram respostas mais diante do computador do que perante o Crucifixo, na internet e não no olhar dos irmãos e irmãs; cristãos que comentam, debatem e expõem teorias, mas não conhecem pelo nome nem sequer uma pessoa pobre, não visitam um doente há meses, nunca deram de comer nem vestiram alguém, nunca fizeram amizade com um necessitado, esquecendo que «o programa do cristão é um coração que vê» (Bento XVI, Deus caritas est, n. 31).
Quando? A grande surpresa: surpresa da
parte justa e da parte injusta, quando? Tanto os justos como os injustos se
perguntam surpreendidos. A resposta é uma só: o quando é agora,
hoje, à saída desta Eucaristia. Agora, hoje! Está nas nossas mãos, nas nossas
obras de misericórdia: não nas especificações e nas análises requintadas, não
nas justificativas individuais ou sociais. Nas nossas mãos, e nós somos
responsáveis. Hoje o Senhor lembra-nos que a morte consegue lançar a
verdade sobre a vida, removendo todos os atenuantes à misericórdia.
Irmãos, irmãs, não podemos dizer que não sabíamos. Não podemos confundir a
realidade da beleza com a maquiagem feita artificialmente. O Evangelho explica
como viver a espera: vai-se ao encontro de Deus amando, porque
Ele é amor. E, no dia da nossa despedida, a surpresa será
feliz se agora nos deixarmos surpreender pela presença de Deus, que nos espera
entre os pobres e feridos do mundo. Não tenhamos medo desta surpresa:
progridamos naquilo que o Evangelho nos diz, para ser julgados justos no final.
Deus espera ser acariciado não com palavras, mas com gestos.
Fonte: Santa Sé.
Nenhum comentário:
Postar um comentário