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sexta-feira, 2 de junho de 2023

História do Tempo Comum

“Há um tempo para tudo o que acontece debaixo do céu” (Ecl 3,1).

O Ano Litúrgico do Rito Romano é composto por três grandes ciclos: o Ciclo do Natal, o Ciclo da Páscoa e o Tempo Comum (em latim, Tempus per annum; traduzido em outros idiomas como “Tempo Ordinário”), cuja história traçaremos brevemente nesta postagem.

Anjo em um fundo verde, cor própria do Tempo Comum
(Vitral do Santuário Nacional de Aparecida)

1. Desenvolvimento da celebração do Tempo Comum

Enquanto os outros dois ciclos têm seu núcleo na celebração anual do Natal e da Páscoa, o núcleo do Tempo Comum é o domingo, o dia do Senhor, nossa “Páscoa semanal”, a “pedra fundamental” do edifício do culto cristão: desde o tempo do Novo Testamento (século I), com efeito, a comunidade se reúne neste dia para ouvir a Palavra de Deus e partir o Pão (cf. At 2,42).

Durante as 33 ou 34 semanas que compõem esse tempo a Igreja não celebra um aspecto particular da vida e da missão do seu Senhor, mas sim o mistério de Cristo em sua plenitude (cf. Normas Universais sobre o Ano Litúrgico e o Calendário, n. 43). Por isso alguns liturgistas chamam os domingos do Tempo Comum de “domingos em estado puro”.

Como recorda o Catecismo da Igreja Católica, “toda a vida de Cristo é mistério” (nn. 512-521). Se celebrássemos apenas os chamados “tempos fortes” (Advento, Natal, Quaresma, Páscoa), estes seriam festas isoladas. A salvação não se dá apenas em eventos “extraordinários”, mas sobretudo no “ordinário”, no quotidiano da vida. Portanto, o Tempo Comum “preenche” a maior parte do Ano Litúrgico - do Natal até a Quaresma e da Páscoa até o Advento - com o mistério da salvação:

“No decorrer do ano, [a Igreja] expõe todo o mistério de Cristo, desde a Encarnação e a Natividade até a Ascensão, o dia de Pentecostes e a expectativa da feliz esperança da sua volta gloriosa”
(Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 102).

Assim, podemos definir o Tempo Comum como a peregrinação da Igreja, vivificada pelo Espírito Santo, ao encontro do seu Esposo.

O Tempo Comum é como um “eco” do Pentecostes,
a efusão do Espírito, “Senhor que dá vida” a toda criatura

Os primeiros textos litúrgicos para o Tempo Comum remontam ao Sacramentário Gelasiano (séc. VII-VIII), que traz dezesseis formulários de Missas para os domingos: “Orationes et preces per dominicis diebus”.

Esta série de Missas, porém, costumava ser celebrada a partir da Festa dos Apóstolos São Pedro e São Paulo (29 de junho), uma vez que:
- Os domingos entre o Natal e o início da Quaresma (ou da Septuagésima) estavam ainda ligados ao Natal, cuja celebração em alguns lugares se estendia até o dia 02 de fevereiro, Festa da Apresentação do Senhor;
- Os domingos logo após o Tempo Pascal, por sua vez, serviam como uma espécie de “eco” do Pentecostes. O primeiro domingo após esta solenidade, por exemplo, estava ligado às Têmporas de verão (no hemisfério norte).

Assim, a partir do século VIII esses domingos são “agrupados” em torno a algumas festas de santos:
- Domingos depois do “natal” dos Apóstolos (dominicas post natale Apostolorum) ou simplesmente Domingos depois dos Apóstolos (dominicas post Apostolorum). O termo “natale” refere-se aqui ao nascimento para o céu, isto é, o martírio;
- Domingos depois de São Lourenço (dominicas post Sancti Laurentii), celebrado a 11 de agosto;
- Domingos depois de São Cipriano (dominicas post Sancti Cipriani), celebrado então a 14 de setembro (atualmente no dia 16), ou domingos depois de São Miguel (dominicas post Sancti Angeli), a 29 de setembro.
Vale lembrar que na terceira semana de setembro se celebravam as Têmporas de outono (no hemisfério norte).

Logo, porém, os domingos “durante o ano” (per annum) passam a ser denominados em relação a duas grandes festas:
- Da Epifania até a Quaresma (ou da Septuagésima): Domingos após a Epifania (Dominicas post Epiphaniam);
- De Pentecostes até o Advento: Domingos após o Pentecostes (Dominicas post Pentecosten).

Após a instituição da Festa da Santíssima Trindade no século XIV, em alguns lugares se denominavam os domingos após o Pentecostes como “Domingos após a Trindade” (Dominicas post Trinitatis), termo que foi conservado inclusive por algumas tradições protestantes.

Por séculos dos domingos do Tempos Comum estiveram diretamente relacionados ao mistério da Santíssima Trindade

O Rito Ambrosiano, próprio da Arquidiocese de Milão (Itália), por sua vez, conserva até hoje os Domingos após a Epifania e subdivide os demais em três partes: Domingos após o Pentecostes, Domingos após o Martírio de São João Batista (29 de agosto) e Domingos após a Dedicação (a partir do terceiro domingo de outubro, Festa da Dedicação da Catedral de Milão).

2. O Tempo Comum hoje

A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II propôs a unidade do Tempo Comum, com uma contagem progressiva dos domingos e das semanas.

Esse Tempo começa na segunda-feira após a Festa do Batismo do Senhor (que serve como “I Domingo do Tempo Comum) e prossegue até a terça-feira de carnaval, véspera da Quarta-feira de Cinzas, sendo retomado na segunda-feira após o Pentecostes e prosseguindo até o sábado da XXXIV semana, véspera do I Domingo do Advento.

A teologia e a espiritualidade do Tempo Comum estão centradas na leitura da Palavra de Deus. Enquanto que nos demais tempos litúrgicos prevalece a leitura em composição harmônica (isto é, a escolha de perícopes em sintonia com o tempo ou a festa), no Tempo Comum prevalece a leitura semicontínua: a leitura dos principais textos de um livro da Sagrada Escritura na sequência (cf. Elenco das Leituras da Missa, n. 66) [1].

Como o Concílio havia exortado: “Prepare-se para os fiéis, com maior abundância, a mesa da Palavra de Deus: abram-se mais largamente os tesouros da Bíblia, de modo que, dentro de um período de tempo estabelecido, sejam lidas ao povo as partes mais importantes da Sagrada Escritura” (Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 51; cf. também os nn. 24.35.91).

“O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo.
Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15)

 
Assim, nos domingos do Tempo Comum lê-se de maneira semicontínua um dos Evangelhos Sinóticos, conforme um ciclo trienal: Mateus (ano A), Marcos (ano B) e Lucas (ano C). Esta leitura começa no III Domingo (uma vez que o II Domingo está ainda ligado às “festas epifânicas”) [2] e termina no XXXIII, uma vez que o último domingo desse Tempo é a Solenidade de Cristo Rei. No Ano B, além disso, lê-se por cinco domingos (XVII a XXI) o capítulo 6 do Evangelho de João.

1ª leitura, do Antigo Testamento, é escolhida em composição harmônica com o Evangelho, enquanto como 2ª leitura lê-se de maneira semicontínua as Cartas de Paulo e de Tiago, sem relação com as outras leituras (cf. Elenco das Leituras da Missa, nn. 105-107) [3].

Para os dias de semana (dias feriais), por sua vez, leem-se os três Evangelhos Sinóticos em um ciclo anualMarcos (semanas 1 a 9), Mateus (semanas 10 a 21) e Lucas (semanas 22 a 34). A leitura, por sua vez, é tomada de maneira semicontínua dos livros do Antigo e do Novo Testamento em um ciclo bienal (ano par e ano ímpar), sem relação com o Evangelho (cf. Elenco das Leituras da Missa, nn. 109-110) [4].

Quanto à eucologia, são propostas orações para todos os XXXIV domingos, retomadas ao longo da semana, em um ciclo anual, nas quais se contemplam diversos “temas” [5]. Em alguns países, como a Itália, foram propostas coletas (oração do dia) alternativas seguindo o ciclo trienal (A-B-C), em sintonia com o Evangelho proclamado.

São indicados ainda oito Prefácios para os Domingos do Tempo Comum (no Brasil e em outros países se acrescenta um nono Prefácio: “O Dia do Senhor”) e seis Prefácios Comuns, para os dias de semana [6].

Os textos da Liturgia das Horas (salmos, antífonas, leituras, orações) para o Tempo Comum foram organizados em um ciclo de quatro semanas (semanas I-IV do Saltério), há exceção dos hinos, que se repetem a cada duas semanas. As leituras do Ofício das Leituras e as antífonas do Cântico Evangélico e as orações para os domingos, por sua vez, seguem o ciclo do Ano Litúrgico, como nos demais tempos.

O Papa Francisco abençoa com o Livro dos Evangelhos
(Missa do III Domingo do Tempo Comum - 2022)

Cabe dizer, por fim, que ao longo do Tempo Comum têm lugar diversas celebrações do Senhor, da Virgem Maria e dos Santos. As solenidades, as festas do Senhor e a Comemoração dos Fiéis Defuntos (02 de novembro) possuem precedência sobre os domingos desse Tempo. Algumas festas de preceito podem ainda ser transferidas para os domingos do Tempo Comum, como é o caso no Brasil:

Santíssima Trindade: Domingo após o Pentecostes;
Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi): Quinta-feira da II semana após o Pentecostes (em alguns lugares é transferida para o domingo seguinte);
Sagrado Coração de Jesus: Sexta-feira da III semana após o Pentecostes;
Cristo Rei: XXXIV Domingo do Tempo Comum (V domingo antes do Natal).

Assunção de Nossa Senhora: 15 de agosto (No Brasil, transferida para o domingo seguinte);
São Pedro e São Paulo, Apóstolos: 29 de junho (No Brasil, celebrada no domingo entre 28 de junho e 04 de julho);
Todos os Santos: 01 de novembro (No Brasil, transferida para o domingo seguinte, exceto quando o dia 02 de novembro cai no domingo).

Quando uma festa do Senhor cai em um domingo do Tempo Comum, é celebrada como se fosse uma solenidade (com I Vésperas, duas leituras, Creio...). É o caso das Festas da Apresentação do Senhor (02 de fevereiro), da Transfiguração (06 de agosto), da Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro) e da Dedicação da Basílica do Latrão (09 de novembro).

Existem ainda algumas celebrações próprias de determinados lugares que também possuem precedência sobre os domingos do Tempo Comum, como as solenidades do santo padroeiro do local ou da cidade, do santo titular da igreja e do aniversário da dedicação da igreja, além da festa do aniversário da dedicação da Catedral da Diocese.

No Brasil vale destacar ainda a Solenidade de Nossa Senhora da Conceição Aparecida (12 de outubro).

Contudo, convém evitar “multiplicar” essas celebrações, de modo a não interromper a leitura semicontínua da Palavra de Deus. Além disso, é preciso tomar cuidado com os “meses temáticos”, que não devem se sobrepor à Liturgia.


Notas:

[1] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.

[2] Por esse motivo o Papa Francisco escolheu o III Domingo do Tempo Comum como “Domingo da Palavra de Deus” (cf. Carta Apostólica Aperuit illis, 30 de setembro de 2019).

[3] ALDAZÁBAL, op. cit., pp. 103-104.

[4] ibid., pp. 105-106.

[5] cf. MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, pp. 345-378.

[6] ibid., pp. 428-436.456-461.

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 115-121.

AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 249-260.

BERGAMINI, Augusto. Cristo, Festa da Igreja. O Ano Litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, pp. 415-426.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, vol. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 862-867.

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