quinta-feira, 23 de maio de 2024

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio: Jesus Cristo 45

Com sua 70ª Catequese sobre Jesus Cristo o Papa São João Paulo II concluiu a seção sobre o sentido e o valor da sua Morte como parte da reflexão sobre o sacrifício de Jesus Cristo.

Confira a postagem introdutória, com os links para todas as Catequeses, clicando aqui.

Catequeses do Papa João Paulo II sobre o Creio
CREIO EM JESUS CRISTO

70. Sentido do sofrimento à luz da Paixão do Senhor
João Paulo II - 09 de novembro de 1988

“Se o grão de trigo... morre, produz muito fruto” (Jo 12,24).
1. A redenção realizada por Cristo ao preço da sua Paixão e Morte de cruz é um acontecimento decisivo e determinante na história da humanidade, não só porque cumpre o supremo desígnio divino de justiça e misericórdia, mas também porque revela à consciência do homem um novo significado do sofrimento. Sabemos que não há problema que pese mais sobre o homem que este, também e sobretudo em sua relação com Deus. Sabemos que o valor da existência do homem sobre a terra está condicionado pela solução do problema do sofrimento. Sabemos que, em certa medida, esse coincide com o problema do mal, cuja presença no mundo é tão difícil de aceitar.
A Cruz de Cristo - a Paixão - lança uma luz completamente nova sobre esse problema, dando outro significado ao sofrimento humano em geral.

Cristo carrega a Cruz (El Greco)

2. No Antigo Testamento o sofrimento é considerado, em suma, como pena que o homem deve sofrer por seus pecados por parte do Deus justo. No entanto, permanecendo no âmbito desse horizonte de pensamento, fundamentado em uma revelação divina inicial, o homem encontra dificuldade em dar razão ao sofrimento de quem não tem culpa, isto é, do inocente. Problema tremendo, cuja expressão “clássica” se encontra no Livro de Jó. Acrescentemos, porém, que no Livro de Isaías o problema já é visto sob uma luz nova, quando a figura do Servo de Yahweh parece constituir uma preparação particularmente significativa e eficaz em relação ao Mistério Pascal, em cujo centro encontrará lugar, junto ao “Homem das dores”, Cristo, o homem sofredor de todos os tempos e de todos os povos.

O Cristo sofredor, como cantou um poeta moderno, é “o Santo que sofre”, o Inocente que sofre, e precisamente por isso seu sofrimento tem uma profundidade muito maior em relação ao de todos os outros homens, inclusive de todos os “Jós”, ou seja, de todos aqueles que no mundo sofrem sem culpa própria. Porque Cristo é o único que verdadeiramente não tem pecado e que, mais ainda, não pode sequer pecar.

É, portanto, o único que absolutamente não merece o sofrimento. No entanto, é também Aquele que o aceitou de modo mais pleno e decidido, aceitou-o voluntariamente e com amor. Isto significa o seu desejo, quase a sua tensão interior de beber completamente o cálice da dor (cf. Jo 18,11) “pelos nossos pecados, e não só pelos nossos, mas também pelos pecados do mundo inteiro”, como explica o Apóstolo João (1Jo 2,2). Nesse desejo, que se comunica também a uma alma sem culpa, encontra-se a raiz da redenção do mundo mediante a Cruz. A força redentora do sofrimento está no amor.

3. E assim, por obra de Cristo, o sentido do sofrimento muda radicalmente. Já não basta ver nele um castigo pelos pecados. É necessário descobrir nele a força redentora, salvífica, do amor. O mal do sofrimento, no mistério da redenção de Cristo, é superado e, em todo caso, transformado: torna-se força de libertação do mal, de vitória do bem. Todo sofrimento humano, unido ao de Cristo, completa “o que falta às tribulações de Cristo, na pessoa que sofre, em favor do seu Corpo” (cf. Cl 1,24): e esse Corpo é a Igreja como comunidade salvífica universal.

4. Em seu ensinamento dito pré-pascal, Jesus deu a conhecer mais de uma vez que o conceito de sofrimento entendido exclusivamente como pena pelo pecado é insuficiente e até mesmo impróprio. Assim, quando lhe falaram de alguns galileus “cujo sangue Pilatos tinha misturado ao dos sacrifícios”, Jesus questionou: “Pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal coisa? (...) E aqueles dezoito que morreram quando a torre de Siloé caiu sobre eles? Pensais que eram mais culpados do que qualquer outro morador de Jerusalém?” (Lc 13,1-4). Jesus questiona claramente tal modo de pensar, difundido e aceitado comumente naquele tempo, e faz compreender que a “desgraça” que comporta sofrimento não pode ser entendida exclusivamente como um castigo pelos pecados pessoais. “Digo-vos que não”, declara Jesus, e acrescenta: “Se não vos arrependerdes, porém, perecereis todos do mesmo modo” (vv. 3-4). No contexto, confrontando estas palavras com as anteriores, é fácil perceber que Jesus busca enfatizar a necessidade de evitar o pecado, porque este é o verdadeiro mal, o mal em si mesmo, e, dada a solidariedade que une entre si os seres humanos, a raiz última de todo sofrimento. Não basta evitar o pecado apenas por medo do castigo que pode recair sobre quem o comete. É preciso verdadeiramente “converter-se” ao bem, de modo que a lei da solidariedade possa inverter a sua eficácia e desenvolver, graças à comunhão com os sofrimentos de Cristo, um influxo positivo sobre os outros membros da família humana.

5. Nesse sentido soam as palavras pronunciadas por Jesus ao curar o cego de nascença. Quando os discípulos lhe perguntaram: “Rabi, quem pecou para que ele nascesse cego, ele ou seus pais?”, Jesus respondeu: “Nem ele pecou, nem seus pais, mas é uma ocasião para que se manifestem nele as obras de Deus” (Jo 9,1-3). Dando a vista ao cego, Jesus deu a conhecer as “obras de Deus”, que deviam revelar-se naquele homem incapacitado, em favor dele e de quantos chegaram a conhecer o fato. A cura milagrosa do cego foi um “sinal” que levou o homem curado a crer em Cristo e introduziu no espírito dos outros uma salutar semente de inquietação (v. 16). Na profissão de fé do curado se manifestou a essencial “obra de Deus”, o dom salvífico que recebeu junto com o dom da visão: “Tu crês no Filho do homem? (...) Quem é, Senhor, para que eu creia nele? (...) Tu já o viste: é quem está falando contigo. (...) Eu creio, Senhor!” (vv. 35-38).

6. Sobre o pano de fundo desse acontecimento vislumbramos alguns aspecto da verdade da dor à luz da Cruz. Na realidade, um juízo que veja o sofrimento exclusivamente como castigo do pecado vai contra o amor humano. É o que aparece já no caso dos interlocutores de Jó, que o acusam a partir de argumentos deduzidos de uma concepção da justiça carente de toda abertura ao amor (cf. Jó 4ss). Isso se vê ainda mais no caso do cego de nascença: “Quem pecou para que ele nascesse cego, ele ou seus pais?” (Jo 9,2). É como apontar o dedo a alguém. É uma sentença que passa do sofrimento visto como tormento físico àquele entendido como castigo pelo pecado: alguém deve ter pecado, o interessado ou seus pais. É uma estigmatização moral: sofre, portanto, deve ser culpado!

Para pôr fim a este modo mesquinho e injusto de pensar, era necessário que se revelasse em sua radicalidade o mistério do sofrimento do Inocente, do Santo, do Homem das dores”! Desde que Cristo escolheu a Cruz e morreu no Gólgota, todos os que sofrem, particularmente os que sofrem sem culpa, podem encontrar-se com o rosto do “Santo que sofre”, e encontrar na sua Paixão a plena verdade sobre o sofrimento, seu sentido pleno, sua importância.

7. À luz dessa verdade, todos os que sofrem podem sentir-se chamados a participar na obra da redenção realizada por meio da Cruz. Participar da Cruz de Cristo significa crer na força salvífica do sacrifício que todo crente pode oferecer junto ao Redentor. Então o sofrimento é libertado da sombra do absurdo que parece cobri-lo e adquire uma dimensão profunda, revela seu significado e valor criativo. Poderíamos dizer, então, que muda o cenário da existência, do qual se afasta cada vez mais o poder destrutivo do mal, precisamente porque o sofrimento produz copiosos frutos. O próprio Jesus o revela e promete quando diz: “Chegou a hora em que o Filho do homem vai ser glorificado. Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo que cai na terra não morre, fica só; mas, se morre, produz muito fruto (Jo 12,23-24). Da cruz à glória!

8. É necessário iluminar com a luz do Evangelho outro aspecto da verdade do sofrimento. Mateus nos diz que “Jesus percorria todas as cidades... proclamando o Evangelho do Reino e curando toda enfermidade” (Mt 9,35). Lucas, por sua vez, narra que quando interrogaram Jesus sobre o significado correto do mandamento do amor, Ele respondeu com a parábola do bom samaritano (cf. Lc 10,30-37). Desses textos se deduz que, segundo Jesus, o sofrimento deve suscitar, de forma particular, o amor ao próximo e o empenho em prestar-lhe os cuidados necessários. Tal amor e tais cuidados, realizados de toda forma possível, constituem um fundamental valor moral que “acompanha” o sofrimento. Jesus, além disso, falando do juízo final, deu particular destaque ao fato de que toda obra de amor realizada em favor do homem que sofre se dirige ao próprio Redentor: “Eu estava com fome, e me destes de comer; estava com sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me recebestes em casa; estava nu, e me vestistes; doente, e cuidastes de mim; na prisão, e vistes até mim” (Mt 25,35-36). Nestas palavras se baseia toda a ética cristã do serviço, também social, e a definitiva valorização do sofrimento aceito à luz da Cruz.

Não poderia vir daqui a resposta que, também hoje, a humanidade espera? Essa só pode ser recebida de Cristo crucificado, o “Santo que sofre”, que pode penetrar no próprio âmago dos mais tormentosos problemas humanos, porque já está junto a todos os que sofrem e lhe pedem a infusão de uma nova esperança.

Cristo encontra sua Mãe no caminho do Calvário
(Bartolomé Esteban Murillo)

Tradução nossa a partir do texto italiano divulgado no site da Santa Sé (09 de novembro de 1988).

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