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quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

História da Solenidade da Imaculada Conceição de Maria

“Tota pulchra es, Maria, et macula originalis non est in te!” - “Toda bela sois, Maria, sem a mancha original!” (cf. Ct 4,7).

Atualmente são três as celebrações marianas que possuem o grau de “Solenidade” no Calendário Romano Geral:
- a Solenidade da Assunção (15 de agosto), a mais antiga e importante, na qual celebramos a “páscoa” de Maria, isto é, sua “morte e ressurreição”;
- a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus (01 de janeiro), em estreita ligação com o Natal do Senhor;
- e a Solenidade da Imaculada Conceição de Maria (08 de dezembro), cuja história percorreremos brevemente nesta postagem.

Imaculada Conceição, detalhe
Bartolomé Esteban Murillo (†1682)

1. As origens da festa da Concepção de Maria

Como vimos em nossa postagem sobre a Festa da Natividade de Maria (08 de setembro), esta surge em Jerusalém em meados do século V. Portanto, a partir dessa data, a “conceição” (concepção) da Theotókos (Mãe de Deus) passaria a ser celebrada nove meses antes.

Nos séculos VI e VII os cristãos orientais celebravam apenas uma concepção: a Concepção do Senhor na festa da Anunciação (25 de março, nove meses antes do Natal). Logo seria acrescentada a festa da Concepção de São João Batista (24 de setembro), uma vez que esta serve de “precursora” à Encarnação do Verbo (Lc 1).

A festa da Concepção de Maria, por sua vez, surge no início do século VIII, como testemunha, por exemplo, Santo André de Creta (†740). Inicialmente uma celebração própria de Jerusalém, esta seria estendida para todo Império Bizantino entre os séculos IX e X pelo Imperador Leão VI, o Sábio (†912) e posteriormente acolhida pelos demais Ritos Orientais.

No Oriente, a festa é referida como “Concepção de Santa Ana, mãe da Theotókos”, sendo celebrada no dia 09 de dezembro, nove meses após a festa de “São Joaquim e Santa Ana, os justos, pais da Theotókos” (09 de setembro), no dia seguinte à Natividade da Virgem-Mãe [1]. No mesmo dia 09 de dezembro algumas Igrejas comemoram Santa Ana, mãe do profeta Samuel.

A história da concepção e do nascimento da Virgem Maria é narrada no Protoevangelho de Tiago, escrito apócrifo do século II [2]. O relato menciona a esterilidade de Joaquim e Ana, sua oração e o anúncio do anjo de que conceberão uma filha, como canta o tropárion da festa no Rito Bizantino:

“Hoje são desligadas as cadeias da esterilidade, pois, atendendo as orações de Joaquim e de Ana, Deus prometeu-lhes claramente engendrar, contra toda a expectativa, a divina menina, nascida de Deus, a quem nada limita, tornando-se simples mortal e ordenou ao Anjo de lhe dizer: Salve, ó cheia de Graça, o Senhor está contigo!” [3].

Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história do culto a São Joaquim e Santa Ana.
 
Cumpre dizer, porém, que no Oriente a festa da Natividade de Maria sempre recebeu maior destaque que a da sua Concepção. Além disso, a consagração da Panagia (Παναγία, “Toda Santa”) a Deus desde sua concepção é recordada na festa da sua Apresentação no Templo (21 de novembro).

Concepção da Virgem Maria
Atribuído a Ambrosius Benson (†1550) e seu atelier

2. A acolhida da festa no Ocidente

Entre os séculos IX e X, a festa da Concepção da Virgem Maria (Conceptio Mariae Virginis) seria acolhida no sul da Itália (sob influência bizantina) e nas ilhas britânicas. Em algumas dioceses da Irlanda era celebrada no dia 03 de maio, enquanto na Inglaterra foi fixada no dia 08 de dezembro.

As primeiras orações para a festa remontam a esse período, sendo encontradas nos livros litúrgicos compilados por Leofric (†1072), Bispo de Exeter (Inglaterra).

Com a invasão normanda da Inglaterra a partir de 1066 a festa foi temporariamente suprimida, sendo restabelecida no início do século XII. Neste mesmo século a festa “cruzou o canal da Mancha”, sendo acolhida em algumas regiões da França (Rouen, Paris, Lyon...), Bélgica, Alemanha e norte da Itália, apesar da oposição de alguns teólogos, como São Bernardo de Claraval (†1153).

Nesse período, com efeito, tem lugar a controvérsia sobre a concepção imaculada de Maria: alguns teólogos defendiam que ela havia sido preservada do pecado original desde o momento da sua concepção, enquanto outros argumentavam que teria sido concebida sujeita ao pecado e só depois santificada por Deus.

Não obstante, cabe dizer que a Igreja sempre professou que Maria foi concebida de maneira natural, isto é, através do ato sexual entre Joaquim e Ana.

A favor da “Imaculada Conceição” encontravam-se, por exemplo, os franciscanos, “capitaneados” pelo Beato João Duns Escoto (†1308), os quais já haviam acolhido a festa da Concepção de Maria em seu calendário próprio em 1263.

Os dominicanos, por sua vez, defendiam a santificação de Maria após a concepção, de modo que a princípio rejeitaram a festa, acolhendo-a posteriormente com o nome de “Sanctificatio Mariae”.

Em 1330, durante o “Papado de Avignon” (França), João XXII (†1334) começou a celebrar a festa do dia 08 de dezembro, porém inicialmente apenas de modo privado. Seria em 1476, que o Papa Sisto IV (†1484), que era franciscano, estenderia a festa do dia 08 de dezembro para toda a Igreja de Rito Romano através da Bula Cum praeexcelsa, decisão confirmada em 1483 com a Bula Grave nimis [4].

Papa Sisto IV (†1484)

O mesmo Sisto IV aprovou os textos próprios da festa para a Missa e a Liturgia das Horas, enriquecendo-a com indulgências. Após a reforma do Concílio de Trento, porém, Pio V (†1572) suprimiu tais textos, substituindo-os pelos da Natividade de Maria, apenas adaptando “nativitas” por “conceptio”.

Em 1622, uma vez que a resistência dos dominicanos persistiu, o Papa Gregório XV (†1623) publicou um decreto proibindo a designação da festa como “Sanctificatio Mariae” ao invés de “Conceptio”. Alexandre VII (†1667) colocaria ponto final à questão em 1661 através do Breve Sollicitudo omnium ecclesiarum [5].

No final do mesmo século, em 1693, Inocêncio XII (†1700) enriqueceu a festa com uma oitava, isto é, com uma celebração prolongada por oito dias (08 a 15 de dezembro), a qual já era celebrada em alguns lugares e por algumas congregações religiosas.

Em 1708, por sua vez, Clemente XI (†1708), através da Bula Comissi nobis divinitus, determinou que o dia 08 de dezembro fosse observado como dia de preceito em toda a Igreja.

3. Da proclamação do dogma à reforma do Concílio Vaticano II

No dia 08 de dezembro de 1854, o Papa Pio IX (†1878), através da Bula Ineffabilis Deus, proclamou a Imaculada Conceição da Bem-aventurada Virgem Maria como dogma de fé:

“A doutrina que sustenta que a beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante de sua conceição, por singular graça e privilégio do Deus onipotente, em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha da culpa original, é revelada por Deus, e por isso deve ser crida firme e constantemente por todos os fiéis” [6].

Com a proclamação do dogma, os textos para a Missa e a Liturgia das Horas da festa “In Conceptione Immaculata Beatae Mariae Virginis” que haviam sido compostos no século XV foram recuperados, com alguns retoques inspirados no próprio texto da Ineffabilis Deus.

Também seria acrescentada à Ladainha de Nossa Senhora (Ladainha Lauretana) a invocação: “Regina sine labe originali concepta, ora pro nobis” (Rainha concebida sem pecado original, rogai por nós).

Proclamação do dogma da Imaculada Conceição
Francesco Podesti (†1895), Museus Vaticanos

Nesse mesmo período seria concedida à Espanha e a alguns de seus antigos territórios a autorização para utilizar paramentos azuis na Solenidade do dia 08 de dezembro, em sua oitava e nas Missas votivas à Imaculada Conceição, em reconhecimento à contribuição dos teólogos espanhóis na defesa do dogma.

Para saber mais, confira nossa postagem sobre a cor azul na Liturgia.

A devoção a “Nossa Senhora da Conceição”, com efeito, é muito forte na Península Ibérica, tanto na Espanha como em Portugal, de onde expandiu-se para a América Latina, os Estados Unidos da América, as Filipinas...

Vale lembrar que a imagem “aparecida” nas águas do rio Paraíba em 1717 era justamente uma imagem de Nossa Senhora da Conceição. Logo, também a padroeira do Brasil é “Nossa Senhora da Conceição Aparecida”.

Posteriormente o Papa Leão XIII (†1903) acrescentaria uma Missa da Vigília à Solenidade, a ser celebrada na tarde do dia anterior, como já era costume em alguns lugares. Tanto a Vigília quanto a oitava, porém, seriam suprimidas por Pio XII (†1958) e João XXIII (†1963).

A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II conservou as orações propostas por Pio IX para a Solenidade, acrescentando um novo Prefácio próprio, “De mysterio Mariae et Ecclesiae” [7], inspirado na Sagrada Escritura e nos documentos conciliares, como o célebre capítulo VIII da Constituição Lumen Gentium.

A Solenidade também foi enriquecida com novas leituras bíblicas, destacando a eleição de Maria, nova Eva, primícias da Igreja: Gn 3,9-15.20; Sl 97,1-4; Ef 1,3-6.11-12; Lc 1,26-38. Antes da reforma litúrgica, por sua vez, os textos possuíam um caráter mais sapiencial: a leitura de Pv 8,22-35 e o “salmo” formado por dois versículos de Judite (Jd 13,23; 15,10), textos que passaram para outras celebrações marianas.

Conservou-se apenas o Evangelho da Anunciação, que antes era uma versão mais breve (Lc 1,26-28), do qual se toma também o versículo da aclamação (v. 28). Esta anteriormente era a célebre paráfrase de Ct 4,7: “Tota pulchra es, Maria...”.

Imaculada Conceição
Bartolomé Esteban Murillo (†1682)

Quanto à Liturgia das Horas, destacamos os três hinos próprios:
I e II Vésperas: Praeclara custos virginum (Ó Virgem Mãe de Deus);
Ofício das Leituras: Te dicimus praeconio (Cantamos teus louvores);
Laudes: In plausu grati carminis (Irrompa nova alegria).

Os hinos das Laudes e das Vésperas são composições anônimas dos séculos XV e XVII, respectivamente, enquanto o hino do Ofício remonta a Leão XIII, composto originalmente para a Memória de Nossa Senhora de Lourdes (11 de fevereiro).

Ainda em relação às composições poéticas em honra da Concepção de Maria, vale destacar as duas sequências, igualmente anônimas: Dies laeta celebretur (séc. XIII, França) e Ab aeterno tempore (séc. XV).

Por fim, cumpre dizer que a celebração da Imaculada Conceição no dia 08 de dezembro se insere harmoniosamente no Advento, tempo tipicamente mariano, como recorda o Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia (nn. 101-102) e o Papa São Paulo VI (†1978) em sua Exortação Apostólica Marialis cultus (n. 3).

Dentre as manifestações de piedade ligadas à Solenidade, o mesmo Diretório destaca a “novena da Imaculada”, que nos remete à espera dos patriarcas e profetas pela vinda do Messias e aos nove meses da gravidez de Maria [8].

Para saber mais, confira nossa postagem sobre a novena de Natal, igualmente celebrada no Advento.

A própria representação artística da Imaculada Conceição, sobretudo a partir do século XVII, é a Virgem Maria grávida de Jesus: assim, sua concepção no ventre de Ana prefigura a concepção do Verbo de Deus, por obra do Espírito Santo, em seu próprio ventre (Lc 1,35; Jo 1,14).

A “Imaculada Conceição” aparece com os atributos da “mulher do Apocalipse” (Ap 12,1-2) e pisando a cabeça de uma serpente, em alusão à profecia da “mulher” no Gênesis (Gn 3,15). Às vezes a imagem traz também invocações da Ladainha Lauretana, personagens do Antigo Testamento (sobretudo Adão e Eva) ou mesmo santos e doutores, em alusão à discussão sobre o dogma.

Alegoria da Imaculada Conceição
Giorgio Vasari (†1574)

Anteriormente, em contrapartida, era mais comum a representação do encontro de Joaquim e Ana na porta de Jerusalém, mencionado no Protoevangelho de Tiago, ou o símbolo da “árvore de Jessé” (Is 11).

Ainda em relação à piedade popular, vale recordar o “Pequeno Ofício da Imaculada Conceição” (Officium Parvum Conceptionis Immaculatae), composto no século XV pelo franciscano Bernardino de Bustis (†1513). O “Ofício da Imaculada”, popularizado sobretudo no século XVII, é composto por diversos textos em honra da Virgem Maria a serem entoados ao longo do dia, seguindo as “horas canônicas” [9].

O Maria sine labe concepta, ora pro nobis, qui confugimus ad te!
“Ó Maria sem pecado concebida, rogai por nós que recorremos a ti!”



Notas:

[1] No Rito Bizantino são comuns as “festas associadas”, nas quais se celebram os personagens de uma festa no dia seguinte (cf. BERGER, Rupert. Festa associada. in: Dicionário de Liturgia Pastoral: Obra de consulta sobre todas as questões referentes à Liturgia. São Paulo: Loyola, 2010, pp. 165-166).

[2] cf. PROENÇA, Eduardo de [org.]. Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia, vol. I. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, pp. 519-521.

[3] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto [org.]. Pequeno Menologion: Calendário Bizantino. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 115.

[4] cf. DENZINGER, Heinrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2007, pp. 378-382.

[5] ibid., p. 490.

[6] ibid., p. 615.

[7] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, pp. 715-717. No Brasil, o mesmo Prefácio é rezado no dia 12 de outubro, Solenidade de Nossa Senhora da Conceição Aparecida.

[8] cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 95-96.

[9] Para saber mais, cf. LIRA, Bruno Carneiro. A Virgem Maria no Ano Litúrgico. São Paulo: Paulinas, 2018, pp. 127-154.

Imaculada Conceição
Guido Reni (†1642)

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 152-154.

AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 289-290.297-299.

DE FIORES, Stefano; SERRA, Aristide. Imaculada. in: DE FIORES, Stefano; MEO, Salvatore [org.]. Dicionário de Mariologia. São Paulo; Paulus, 1995, pp. 598-620.

HOLWECK, Frederick. Immaculate Conception. The Catholic Encyclopedia, vol. 7, 1910. Disponível em: New Advent.

LODI, Enzo. Os Santos do Calendário Romano: Rezar com os Santos na Liturgia. São Paulo: Paulus, 1992, pp. 586-590.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, vol. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 904-911.

SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; vol. VI: La Chiesa Trionfante (Le Feste dei Santi durante il Ciclo Natalizio). Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 100-107.

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