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domingo, 29 de agosto de 2021

Sequência do Martírio de João Batista: Psallite regi nostro

"Diante dos reis falo da vossa aliança, sem temer a vergonha" (cf. Sl 118,46)
(Antífona de entrada da Memória do Martírio de São João Batista)

Na Idade Média, a partir dos séculos IX e X, as “sequências”, composições poéticas a serem entoadas antes da aclamação do Evangelho na Missa, se tornaram muito populares no Rito Romano.

Nesse período, praticamente todas as grandes celebrações do Ano Litúrgico possuíam uma sequência. Infelizmente a reforma litúrgica do Concílio de Trento, no século XVI, as reduziu a apenas quatro [1].

Já apresentamos aqui em nosso blog a sequência Sancti Baptistae, Christi praeconis, composta no século X para a Solenidade da Natividade de São João Batista (24 de junho) e atribuída ao monge beneditino Notker Balbulus.

No século XI, por sua vez, teria sido composta a sequência Psallite regi nostro (Cantai louvores ao nosso Rei), para a Memória do Martírio de São João Batista (In decollatione Sancti Iohannis Baptistae), celebrada no dia 29 de agosto.

Esta sequência é atribuída a Gottschalk de Aachen, também chamado de Gottschalk de Limburg (Godescalcus Lintpurgensis, em latim), sacerdote que viveu no século XI e que teria sido chanceler do Imperador Romano-Germânico Henrique IV.

A dança de Salomé e o martírio de João Batista
(Benozzo Gozzoli - séc. XV)

A seguir apresentamos a sequência em seu texto original (em latim), seguida de uma tradução nossa bastante livre, além de alguns comentários sobre sua teologia.

A composição está dividida em 12 estrofes de dois versos cada, exceto a primeira e a última, com apenas um verso.

Psallite regi nostro
(Sequentia: In decollatione Sancti Iohannis Baptistae)

Psallite regi nostro, psallite, psallite, psallite prudenter.

Nam psalterium est iucundum cum cithara,
Nato virginis quo psallens natus sterilis

Citharam carnis percussit in domo Domini,
Dum, quod sonabat clamando, docuit vivendo;

Mortificando quae super terram sunt membra, et hoc alios docendo;
Praeparans Christo plebem perfectam Iohannes, vox clamantis in deserto.

Sed vox haec impium Herodem, quem corripit, minime corrigit.
Haud tamen tacuit, sed usque ad sanguinem sceleri restitit.

“Non licet” inquit “te fratris tui habere coniugem raptam sibi, peccasti, quiesce, paenitentibus sic praecipit Dominus”.
Vocem incantantis sapienter Herodes ut aspis surda spernit, ut iustum, ut sanctum Iohannem timet, quem vinxit in carcere.

Sedet in tenebris lucerna lucis, amicus omnipotentis;
Studet deliciis mundi principis filius perditionis.

Meretrix suadet, puella saltat, rex iubet, sanctus decollatur.
Dat rex saltante caput Iohannis, qui sanctus fit antequam natus.

En, quomodo perit iustus, quasi non sit Deo dilectus,
Cum sit eius pretiosa mors haec in conspectu Domini.

Nos corde percipimus, qualis aut quantus est, quia vicinus nativitate Christo fit et morte:
Nam morte turpissima damnatur Sponsus, Sponsi et amicum damnat morte recte turpissima.

Carcere carnis eductum quem ferunt psallendo caelis angeli angelum.
Et nos in terris tibi psallere fac, Christe, in memoriam Baptistae.

Herodis spreta quo mensa, altaris tui mensa ipsum te dum sumimus, semper tibi psallimus [2].

João Batista adverte Herodes do seu pecado
(Giovanni Fattori - séc. XIX)

Cantai louvores ao nosso Rei
(Sequência para o Martírio de João Batista)

Cantai louvores ao nosso Rei, cantai, cantai, cantai com vigor.

Pois o saltério e a cítara se alegram
Ao tocar para o nascido da Virgem. O nascido da estéril

Tocou a cítara de sua carne na casa do Senhor,
Quando, o que soou exclamando, ensinou vivendo;

Mortificando seus membros sobre a terra e ensinando aos outros;
Preparando um povo perfeito para Cristo, João, voz que clama no deserto.

Mas esta voz ao ímpio Herodes, a quem repreendeu, pouco pode corrigir.
Mesmo assim não se calou, mas até à efusão do sangue resistiu à maldade.

“Não te é lícito” disse “possuir a mulher do teu irmão. Pecaste: cessa, assim ordena o Senhor aos penitentes”.
A voz tão sábia Herodes como surda serpente rejeita, e o justo, o santo João, a quem teme, acorrenta na prisão.

Sentado nas trevas está a lâmpada da luz, o amigo do Onipotente;
O filho da perdição se entrega às delícias do príncipe deste mundo.

A meretriz exorta, a menina dança, o rei ordena, o santo é degolado.
O rei dá à dançarina a cabeça de João, que se tornou santo antes de nascer.

Eis como o justo perece, como se não fosse querido por Deus,
Quando na verdade sua morte é preciosa aos olhos do Senhor.

Nós compreendemos em nosso coração quão grande é aquele que se tornou próximo de Cristo por seu nascimento e por sua morte:
Pois se o Esposo foi condenado a uma morte vergonhosa, também o amigo do Esposo é condenado à morte vergonhosa.

Quem como um anjo sai da prisão da carne, pelos anjos é conduzido ao céu cantando louvores.
E a nós na terra concede, ó Cristo, louvar-te na memória do Batista.

A mesa de Herodes rejeitando, enquanto te conduzimos à mesa do teu altar, sempre te louvamos.

Martírio de São João Batista
(Masaccio - século XV)

Comentário:

a) Estrofes 1-4:

Podemos afirmar que as estrofes 1-4 constituem a introdução da sequência, marcada pelo convite ao louvor e pela recordação do nascimento de João.

As primeiras duas estrofes, com o insistente convite ao louvor (Psallite: “cantai um salmo”, “cantai louvores”), remetem ao texto do Sl 46 (47),7-8.

A exortação a cantar a Cristo, “o nascido da Virgem”, faz um paralelo com a “festa de Herodes” (Mt 14,3-12; Mc 6,17-29), na qual os convivas celebravam o “tetrarca da Galileia” (que sequer tinha o título de rei). Nós, entoando essa sequência, celebramos o verdadeiro Rei do céu e da terra.

Ao “nascido da Virgem” une-se o “nascido da estéril”, isto é, João Batista, filho de Isabel (cf. Lc 1,36). Já antes do seu nascimento ele “tocou a cítara de sua carne” (citharam carnis percussit) em honra ao Senhor: uma referência ao relato da Visitação, quando João estremece de alegria no ventre da mãe (Lc 1,36-45).

O texto destaca que João não louvou Jesus apenas com os lábios, mas “ensinou vivendo” (docuit vivendo): mortificando-se no deserto e pregando a conversão (cf. Mt 3,1-6; Mc 1,4-8). O título de “voz que clama no deserto” (vox clamantis in deserto), por sua vez, remete a Is 40,3 (cf. Mt 3,3; Jo 1,23).

Martírio de São João Batista
(Afresco no Mosteiro de Dionísio, no Monte Athos - Grécia)

b) Estrofes 5-8:

As estrofes 5-8 compõem o “corpo” da sequência, recordando o martírio de João Batista.

As estrofes 5-6 introduzem a advertência de João contra Herodes Antipas, que havia tomado sua cunhada Herodíades como esposa. A 6ª estrofe cita textualmente a advertência de João (Mt 14,6; Mc 6,18), unida à exortação: “Pecaste: cessa” (peccasti, quiesce), no sentido de “cessa de fazer o mal”, “abstém-te do pecado”.

O texto prossegue indicando que Herodes rejeita a exortação “como surda serpente” (ut aspis surda). A serpente, além de ser de fato um animal surdo, na Escritura ora é um símbolo positivo (cf. Mt 10,16, associada à prudência), ora é condenada por seu veneno e covardia (Herodes tinha medo de João). A imagem da serpente remete também à própria pregação do Batista (cf. Mt 3,7; Lc 3,7).

Uma vez preso o Batista, a composição traz a antítese luz-trevas, muito comum nos hinos: “Sentado nas trevas está a lâmpada da luz” (Sedet in tenebris lucerna lucis). O título de lucerna, lâmpada, é dado por Cristo ao Batista em Jo 5,35 (cf. Jo 1,6-8).

Outra antítese é apresentada logo a seguir: enquanto João é “o amigo do Onipotente”, Herodes Antipas é o “filho da perdição” (filius perditionis), título que o Evangelho aplica a Judas Iscariotes (Jo 17,12). Herodes, assim como Judas, trilha o caminho do “príncipe deste mundo” (Satanás) e manda assassinar o profeta.

A morte de João, por fim, é sintetizada de maneira muito poética na 8ª estrofe com apenas oito palavras: Meretrix suadet, puella saltat, rex iubet, sanctus decollatur - A meretriz exorta (Herodíades, que persuade a filha a pedir a cabeça de João), a menina dança (Salomé, que dança na festa), o rei ordena (Herodes), o santo é degolado (João).

Altar da Capela de São João Batista na Catedral de Gênova (Itália)
À esquerda, a advertência a Herodes; à direita, o martírio de João

c) Estrofes 9-12:

Já a 5ª estrofe havia atestado a radical oposição de João ao mal “usque ad sanguinem”, até à [efusão] do sangue [3]. Porém, será nas estrofes 9-12, como conclusão da sequência, que se aprofundará o “sentido” da sua morte.

Diante do mysterium iniquitatis expresso no sofrimento do justo (tema desenvolvido no Livro de Jó), a sequência remete ao v. 06 do Salmo 115 (Sl 116,15 na numeração hebraica): “Gloriosa in conspectu Domini mors sanctorum eius” - “É preciosa aos olhos do Senhor a morte dos seus santos” (cf. Sb 3,1-9).

A seguir, recorda-se a “dupla missão” de João: precursor de Cristo com seu nascimento e sua morte. O “amigo do Esposo” (cf. Jo 3,29), com efeito, partilha de sua morte ignominiosa (morte turpissima).

Na 11ª estrofe João é chamado “anjo” (angelus), palavra de origem grega (ἄγγελος) que quer dizer “mensageiro”, donde vem a própria palavra “Evangelho”: boa-notícia (εὐαγγέλιον).

Porém, temos nesta estrofe uma expressão problemática: “prisão da carne” (carcere carnis) pode dar a ideia de que o corpo é uma “prisão do espírito”. Afirmar isso seria cair no dualismo gnóstico, heresia condenada em diversas ocasiões (cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Carta Placuit Deo sobre alguns aspectos da salvação cristã).

Por fim, cabe destacar a 12ª estrofe, que contrapõe a “mesa de Herodes” (mesa do banquete e da “dança macabra” que terminaram em assassinato) à “mesa do altar”, para a qual “conduzimos o próprio Cristo” entre louvores.

É na mesa do altar, com efeito, que depositamos o Livro dos Evangelhos e os dons do pão e do vinho, que se tornarão Corpo e Sangue do Senhor:

“Cristo está presente no sacrifício da Missa, sobretudo sob as espécies eucarísticas. (...) Está presente na sua Palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura”

Banquete de Herodes
(Lorenzo Monaco - séc. XIV-XV)

Notas:

[1] Victimae paschali laudes (Domingo de Páscoa), Veni, Sancte Spiritus (Pentecostes), Lauda Sion (Corpus Christi) e Dies irae (Missas dos defuntos). Em 1727 foi a acrescentada a sequência Stabat Mater dolorosa (Memória de Nossa Senhora das Dores). A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II conservou as cinco, transformando porém o Dies irae em hino da Liturgia das Horas para a última semana do Tempo Comum.

[2] Fonte: Hymnoglypt.

[3] A expressão “usque ad sanguinis effusionem” é utilizada no rito de criação dos novos Cardeais. Com efeito, a cor vermelha de suas vestes simboliza seu compromisso de dar a vida pela Igreja, “até à efusão do sangue”.

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