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quinta-feira, 27 de junho de 2013

A história da Solenidade de São Pedro e São Paulo, Apóstolos

“Hoje Simão Pedro subiu ao patíbulo da cruz, aleluia; hoje o guardião das chaves do reino com alegria partiu para Cristo;
Hoje Paulo Apóstolo, luz de toda a terra, inclinou a cabeça coroada com o martírio, aleluia” [1].

Como canta a antiga antífona indicada acima, no dia 29 de junho a Igreja celebra a Solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo (no Brasil transferida para o domingo entre os dias 28 de junho e 04 de julho).

Ícone bizantino dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo sustentando a Igreja
(No topo, Cristo entrega as chaves a Pedro e a Escritura a Paulo)

Os dois Apóstolos, com efeito, foram martirizados em Roma durante a perseguição do Imperador Nero, entre os anos 64 e 68: Pedro foi crucificado na colina do Vaticano, próximo à via Aurélia, e Paulo decapitado junto à via Ostiense [2].

Não há comprovação histórica de que tenham sido mortos no mesmo dia ou no mesmo ano. Não obstante, desde o início do Cristianismo os dois Apóstolos foram celebrados juntos, como demonstram as várias inscrições nas paredes das catacumbas romanas pedindo sua intercessão, bem como as homilias dos Santos Padres.

1. A origem da festa litúrgica

O testemunho de uma festa em honra dos dois Apóstolos no dia 29 de junho é dado pela Deposytio Martyrum (354). Não está clara a razão dessa data, embora o mais provável é que se refira à transladação das relíquias dos Apóstolos no ano 258, como veremos adiante.

Em Roma, o dia 29 de junho era “poli-litúrgico”, isto é, com várias celebrações (como o Natal). Enquanto a Deposytio Martyrum menciona duas “estações”, o Martirológio Jeronimiano (escrito no início do séc. V, mas compilando tradições do século IV) atesta as três estações” que se tornaram características: em São Pedro no Vaticano, nas catacumbas da via Ápia e em São Paulo na via Ostiense.

"Traditio legis": Cristo, o jovem pastor, entrega a nova lei do Evangelho a Pedro e Paulo
(Mausoléu de Santa Constança, Roma - séc. IV)

No século IV, com efeito, sob o patrocínio do Imperador Constantino, foram construídas as duas primitivas Basílicas de São Pedro e de São Paulo, sobre os locais onde os fiéis já veneravam os seus túmulos.

Eusébio de Cesareia (†339), em sua História Eclesiástica, recolhe o testemunho do presbítero Caio (ou Gaio), que viveu no tempo do Papa Zeferino (199-217): “Eu, porém, posso mostrar o troféu dos Apóstolos. Se, pois, queres ir ao Vaticano ou à Via Ostiense, encontrarás os troféus dos fundadores desta Igreja” [3]. Os túmulos dos mártires são um “troféu” (trophaeum), um testemunho da sua vitória: assim como Cristo, dando a própria vida, com sua morte venceram a morte.

Nas catacumbas da via Ápia, por sua vez, as relíquias de São Pedro e São Paulo teriam sido colocadas provisoriamente durante a perseguição do Imperador Valeriano (258). Embora a historicidade dessa transladação seja questionada, nessas catacumbas há diversas inscrições invocando a intercessão dos dois Apóstolos. Posteriormente as catacumbas e a igreja sobre elas foram renomeadas em honra de São Sebastião, cujas relíquias encontram-se neste local [4].

Basílica de São Sebastião fora-dos-muros, sobre as catacumbas da via Ápia

As celebrações de 29 de junho reuniam sempre uma grande multidão de fiéis. O poeta Prudêncio (†410), que peregrinou a Roma em 398, compôs alguns versos em louvor desse dia: “Plus solito coeunt ad gaudia...” (Uma multidão extraordinária acorre alegre). São Paulino de Nola (†431), em uma de suas Cartas, afirma venerar todos os anos os túmulos dos Apóstolos Pedro e Paulo no dia de sua festa, sempre encontrando grande multidão.

2. Breve descrição das celebrações

a) A vigília em São Pedro:

À semelhança das grandes solenidades, a festa dos Apóstolos começava com uma solene vigília na noite do dia anterior, 28 de junho. Até o século VIII essa vigília era dupla: na Basílica de São Paulo fora-dos-muros, celebrada pelos monges beneditinos; e na Basílica de São Pedro no Vaticano, sob a presidência do Bispo de Roma, o Papa.

Basílica de São Pedro no Vaticano

Segundo testemunha certo Bento (Benedictus), cônego da Basílica de São Pedro no séc. XII, a vigília iniciava-se à meia noite e era celebrada junto à entrada do túmulo de São Pedro (abaixo do altar da Confissão). Essa era composta de três salmos e nove leituras (tomadas sobretudo dos Atos dos Apóstolos e das Cartas de Pedro e Paulo), sendo que a última, o Evangelho, era proclamada pelo próprio Pontífice, que em seguida proferia sua homilia. A celebração concluía com o canto do hino Te Deum e a bênção do Papa.

O Papa Francisco incensa o nicho sobre o túmulo de São Pedro
(Missa de início do ministério petrino, 19 de março de 2013) 

b) As três Missas:

Ao amanhecer eram recitadas as Laudes no altar da Confissão, seguidas da Missa solene presidida pelo Papa, durante a qual os cantores entoavam a primeira parte das “Laudes Regiae” em sua honra.

O Cardeal Schuster atesta em seu Liber Sacramentorum que nessa Missa sempre estavam presentes os Bispos das dioceses suburbicárias, isto é, as dioceses vizinhas a Roma, em sinal de comunhão com o Papa [5].

A segunda “estação” tinha lugar nas catacumbas da via Ápia, como vimos anteriormente. Porém, a partir do século V essa celebração é mencionada apenas como recordação histórica e a visita às catacumbas limitava-se à devoção popular.

A terceira “estação” era celebrada pelo Papa na Basílica de São Paulo. Até o século VIII, após presidir a Missa matutina na Basílica Vaticana, o Pontífice dirigia-se diretamente à Basílica Ostiense para “repetir” a Missa solene (“duplicatque vota”, como atesta Prudêncio). As orações dessa Missa faziam referência aos dois Apóstolos, enquanto as leituras eram próprias de Paulo.

Basílica de São Paulo fora-dos-muros

A partir do século VIII, porém, dada a distância entre as duas igrejas, as celebrações em honra de São Paulo foram transferidas para o dia seguinte, 30 de junho. Assim, apesar de perder-se o sentido original da festa, que comemorava os dois Apóstolos como as colunas inseparáveis sobre as quais foi edificada a Igreja, tal gesto favorecia a participação do Papa e dos fiéis nas celebrações na Basílica de São Paulo fora-dos-muros. Do “dia duplamente festivo” mencionado por Prudêncio (dies bifestus), passa-se a “dois dias de festa” (bidui festus).

c) A vigília em São Paulo:

A partir do século VIII, com a passagem da comemoração de São Paulo para o dia 30, o Papa presidia a vigília na Basílica Ostiense na noite do dia 29 de junho.

Essa vigília seguia basicamente a mesma estrutura daquela celebrada no dia anterior em São Pedro. Uma particularidade era a deposição pelo Papa de um incensário fumegante diante do túmulo de São Paulo durante a vigília.

Na manhã do dia 30 de junho, por fim, era celebrada a Missa na Basílica de São Paulo. Com o tempo, porém, esta deixou de ser presidida pelo Papa, que a delegava a um Bispo da Cúria Romana.

O Papa Francisco reza diante do altar sobre o túmulo de Paulo
(Celebração Ecumênica, 25 de janeiro de 2020)

3. A difusão da festa

Fora de Roma, a festa de 29 de junho rapidamente difundiu-se para as demais igrejas. Já no século IV era celebrada no resto da Itália e no norte da África, como testemunham os Santos Ambrósio, Máximo de Turim e Agostinho.

A partir do século VI foi acolhida também pela França e pelas Igrejas Orientais, que já celebravam os Apóstolos, porém em datas distintas: na França eram recordados nos dias 18 e 25 de janeiro (Festas da Cátedra de São Pedro e da Conversão de São Paulo), enquanto em Constantinopla os Apóstolos eram celebrados no dia 27 de dezembro [6].

Os Sacramentários dos séculos seguintes oferecem diversos formulários In natali Apostolorum Petri et Pauli (“natal” no sentido de “dies natalis”, dia do nascimento para o céu). O Sacramentário Veronense (séc. V-VI) traz nada menos que 28 formulários, embora alguns estejam incompletos.

Cabe ressaltar que três desses formulários faziam referência a uma festa em honra dos Doze Apóstolos, que se celebrava em alguns lugares no dia seguinte à Solenidade de São Pedro e São Paulo (30 de junho) ou na sua oitava (o oitavo dia após a festa, isto é, 06 de julho).

Esta festa é conservada no Rito Bizantino no dia 30 de junho com o nome de “Sinaxe dos Doze santos, gloriosos e ilustres Apóstolos”. A palavra “sinaxe” significa “reunião” ou “assembleia litúrgica”, sendo usada para as celebrações de grupos de santos.

Adolf Adam defende que, sobretudo no Oriente, uma festa em honra dos Doze Apóstolos deveria ter precedido suas celebrações individuais. Vale ressaltar que o Rito Romano conserva uma Missa votiva em honra de “Todos os Santos Apóstolos” (Missal Romano, p. 956).

Ícone bizantino dos Doze Apóstolos
Pedro e Paulo, ao centro, são as “colunas” a Igreja

4. A celebração atual

Com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II a Solenidade de São Pedro e São Paulo, Apóstolos recuperou sua unidade original, celebrada por toda a Igreja no dia 29 de junho (sendo suprimidas a comemoração do dia 30 de junho e a Oitava, conservada apenas para a Páscoa e o Natal).

Conforme o antigo costume, essa Solenidade é enriquecida por uma Missa da Vigília, a ser celebrada na tarde do dia 28 de junho - ou na tarde do sábado, onde é transferida para o domingo [7].

Para essa Missa da Vigília foram conservadas as leituras previstas no Missale Romanum de 1962 (At 3,1-10; Sl 18; Jo 21,15-19), sendo acrescentada a 2ª leitura de Gl 1,11-20, já atestada no Lecionário de Würzburg, de meados do século VII. As orações são de nova composição.

Para a Missa do Dia, por sua vez, à 1ª leitura e ao Evangelho do Missal de 1962 (At 12,1-11; Mt 16,13-19), centradas em Pedro, foi acrescentada a 2ª leitura (2Tm 4,6-8.17-18), dedicada a Paulo. O Sl 44 foi substituído pelo Sl 33, como eco à 1ª leitura.

As orações, que em sua maioria remontam ao Sacramentário Veronense, foram ligeiramente retocadas. Por exemplo, à oração após a Comunhão foram acrescentadas referências ao texto dos Atos dos Apóstolos: “perseverando na fração do pão e na doutrina dos Apóstolos...” (At 2,42); “sejamos um só coração e uma só alma” (At 4,32).

Destaque também para o novo Prefácio próprio, “A dupla missão de Pedro e Paulo na Igreja” (Missal Romano, p. 609) e para o formulário de bênção solene (ibid., p. 527) [8].

Vidro dourado com a imagem de São Pedro e São Paulo
(Museus Vaticanos - século IV)

A Liturgia das Horas da Solenidade também é enriquecida com vários textos, incluindo quatro hinos próprios:
I Vésperas: Aurea luce et decóre róseo (Ó áurea luz, ó esplendor de rosa);
Ofício das Leituras: Felix per omnes festum (A festa dos Apóstolos);
Laudes: Apostolórum pássio (A paixão dos Apóstolos);
II Vésperas: O Roma felix (Roma feliz, tornada cor de púrpura).

O célebre Notker Balbulus (†912) teria composto também uma sequência para a Missa da Solenidade, que figura em seu Liber Sequentiarum: “Petre, summe Christi pastor” (Pedro, pastor excelso de Cristo), às vezes referida como “Ecclesiam vestris doctrinis illuminatam” (A Igreja, iluminada pela vossa doutrina).

Por fim, cabe ressaltar que na Missa de São Pedro e São Paulo o Papa abençoa os pálios que serão impostos aos Arcebispos Metropolitanos.

Além disso, a celebração de 29 de junho no Vaticano possui um alcance ecumênico, com a presença de representante do Patriarca de Constantinopla. O Papa, por sua vez, envia um representante para a Divina Liturgia da Festa de Santo André, irmão de Pedro, no dia 30 de novembro em Istambul (Turquia).

São Pedro e São Paulo
(Raúl Berzosa Fernández - século XXI)

Confira também:
Notas:

[1] “Hodie Simon Petrus ascendit crucis patibulum, aleluia; hodie clavicularius regni gaudens migravit ad Christum; hodie Paulus apostolus, lumen orbis terrae, inclinato capite martyrio coronatus est, aleluia” (cf. RIGHETTI, p. 960).

[2] O Papa São Paulo VI convocou um “Ano da Fé” para celebrar o XIX Centenário do Martírio dos Apóstolos Pedro e Paulo em Roma entre 1967 e 1968. Na conclusão desse Ano, proclamou o célebre “Credo do Povo de Deus”.

[3] EUSÉBIO DE CESAREIA. História Eclesiástica. São Paulo: Paulus, 2000, p. 111 (Coleção: Patrística, v. 15).

[4] A Basílica de São Sebastião fora-dos-muros é uma das “sete igrejas de peregrinação” em Roma. As outras seis igrejas são as quatro Basílicas Maiores (Arquibasílica do Latrão, São Pedro no Vaticano, São Paulo fora-dos-muros e Santa Maria Maior), além de São Lourenço fora-dos-muros e Santa Cruz “em Jerusalém”.

[5] As Dioceses Suburbicárias (sob a urbe, isto é, a cidade de Roma) são Óstia, Albano, Frascati, Palestrina, Porto-Santa Rufina, Sabina-Poggio Mirteto e Velletri-Segni. Posteriormente os títulos dessas igrejas foram assignados aos Cardeais-Bispos.

[6] Vale ressaltar que a maioria das Igrejas Orientais (Católicas e Ortodoxas) utiliza o calendário juliano, com uma diferença de 13 dias em relação ao calendário gregoriano (utilizado no Rito Romano). Assim, o dia 29 de junho no calendário juliano corresponde ao dia 12 de julho no gregoriano.

[7] Atualmente oito solenidades possuem uma Missa da Vigília: as cinco maiores solenidade do Senhor (Páscoa, Natal, Pentecostes, Epifania e Ascensão - estas duas últimas recuperadas na 3ª edição do Missal Romano), a Assunção de Maria, a Natividade de São João Batista e a Solenidade de São Pedro e São Paulo.

[8] Além de São Pedro e São Paulo há apenas outros três santos com Prefácio próprio: São José, São João Batista e, mais recentemente, Santa Maria Madalena.

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 173-175.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 953-961.

SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber sacramentorum, v. VII: Le Feste dei Santi dalla Quaresima all'ottava dei Principi degli Apostoli. Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 295-316.

Postagem publicada originalmente em 27 de junho de 2013, Ano da Fé. Revista e ampliada em 24 de junho de 2021.

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