“Santa Maria, sempre
Virgem, Mãe de Deus, Senhora nossa; sois o templo do Senhor, santuário do
Espírito! Mais que todas agradastes a Jesus, nosso Senhor” [1].
Nas festas em honra da Virgem Maria distribuídas ao longo do
Ano Litúrgico a Igreja celebra o mistério de Cristo, uma vez que ela “está
unida por um vínculo indissolúvel à obra salvífica de seu Filho” (Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 103).
Além disso, várias celebrações marianas “espelham” festas
cristológicas. É o caso da Memória da Apresentação
da Virgem Maria, no dia 21 de novembro,
diretamente relacionada à Festa da Apresentação do Senhor no Templo (02 de fevereiro).
Apresentação da Virgem Maria (Luca Giordano) |
1. As origens da festa
Como no caso da Natividade de Maria, o conteúdo dessa celebração não
se encontra explicitado na Sagrada Escritura, mas sim no Protoevangelho
de Tiago, um texto apócrifo que, mesmo não tendo sido acolhido na
Sagrada Escritura, contém alguns elementos que fazem parte da tradição da
Igreja.
O texto, escrito em grego na metade do século II e atribuído
a Tiago, o “Irmão do Senhor”, é chamado de “Protoevangelho” porque narra
sobretudo acontecimentos que ocorreram antes do relato dos quatro Evangelhos
canônicos, influenciando posteriormente outros textos apócrifos.
De acordo com o relato, os pais de Maria, chamados Joaquim e
Ana, eram estéreis. Ana então reza, prometendo que se gerasse um filho o consagraria
ao Senhor. Quando Maria completa três anos, com efeito, é levada por seus pais
ao Templo de Jerusalém, acompanhada por um cortejo de virgens com lâmpadas
acesas.
Chegando à escadaria do Templo, a menina, que sobe os
degraus sem olhar para trás, para admiração de seus pais, é recebida pelo
sacerdote, que a abençoa. Maria permanece no Templo por doze anos, até ser
prometida em casamento a José [2].
Para saber mais, confira nossa postagem sobre o culto a São Joaquim e Santa Ana.
Cabe dizer, antes de tudo, que não era costume em Israel que
as jovens habitassem no Templo. O autor do Protoevangelho,
portanto, se inspira em alguns relatos do Antigo Testamento, dos quais faz uma
“releitura” teológica:
- a referência mais evidente é à história do profeta Samuel,
consagrado por sua mãe ao Senhor (1Sm
1–3). Note-se que a mãe da Virgem Maria possui o mesmo nome da mãe do profeta:
Ana;
- as “virgens” que a acompanham (cf. Sl 44) nos situam em
um contexto nupcial (Mt 25,1-11): a
entrada de Maria no Templo, com efeito, simboliza sua total consagração a Deus;
- o mesmo se aplica ao fato de que a menina “não olha para
trás” ao subir os degraus do Templo (cf.
Lc 9,62), colocando toda a sua vida
sob o “sinal” da obediência ao Senhor. Os degraus, além disso, são símbolo da
ascensão espiritual (Ez 40,22.26), da
qual Maria é exemplo para todos.
A celebração litúrgica desse mistério teve sua origem como
uma comemoração da dedicação da igreja
de Santa Maria “Nova” em Jerusalém,
às vezes referida simplesmente como “Nea”
(“nova” em grego), no dia 21 de novembro
de 543.
A igreja foi edificada entre as ruínas do antigo Templo de Jerusalém e o monte Sião, sob o patrocínio do Imperador bizantino Justiniano I (†565). Infelizmente foi destruída pelos persas sassânidas que invadiram a cidade no ano de 614. Posteriormente, sob domínio muçulmano, os restos da igreja seriam saqueados para a construção de mesquitas.
2. A difusão da festa
no Oriente
Após a destruição da “Nea”,
a festa, enquanto comemoração local da igreja de Jerusalém, correu o risco de
ser esquecida. Com efeito, quando o Papa Sérgio I (†701) popularizou diversas
festas orientais em Roma no final do século VII, a Apresentação de Maria não
estava entre elas [3].
Nas homilias de alguns Padres da Igreja - como Romano, o
Melodista (†560) e João Damasceno (†749) - a Apresentação de Maria é mencionada
junto à sua Natividade, o que nos leva a supor que a celebração do dia 08 de
setembro fosse a mais importante.
Outros Padres, em contrapartida, como André de Creta (†740),
Germano de Constantinopla (†740) e Jorge de Nicomédia (séc. IX), proferiram
homilias próprias sobre o mistério da entrada da Theotókos (Mãe de Deus) no Templo, de modo que a celebração foi
acolhida no Rito Bizantino no início do século VIII.
A partir de Constantinopla, a celebração foi difundida entre
os demais Ritos Orientais, sobretudo entre siríacos e coptas. Posteriormente
foi incluída entre as Doze Grandes Festas do Rito Bizantino, sendo promovida
por Imperadores como Manuel I Comneno (†1180).
Cabe recordar, porém, que a maioria das Igrejas Orientais (tanto
Católicas quanto Ortodoxas) segue até hoje o calendário juliano, com 13 dias de
diferença em relação ao gregoriano. Assim, o dia 21 de novembro no calendário
juliano corresponde a 04 de dezembro no gregoriano.
Em grego, o nome da festa é Εἴσοδος τῆς Παναγίας Θεοτόκου εις τον Ναόν,
isto é, a Entrada da Santíssima Mãe de Deus no Templo.
A Apresentação do Senhor, em contrapartida, não recebe o
nome de “Eisodos”, (“Entrada”), mas
sim de Hypapanté (Υπαπαντή),
“Encontro”, expressando assim o desígnio salvífico de Deus que vem ao encontro
do seu povo e de toda a humanidade.
Ícone da Apresentação de Maria (séc. XV) Para conhecer o simbolismo desse ícone, clique aqui. |
Cristo, com efeito, não tinha necessidade de ser apresentado no Templo, pois Ele mesmo é o Templo da nova e eterna aliança (Jo 2,19-22), firmada em seu Corpo entregue e em seu Sangue derramado no altar da cruz.
A Apresentação de Maria, portanto, serve de “prelúdio” ao
mistério da salvação: ela é o verdadeiro “templo do Senhor”, a “arca da nova
aliança”, pois foi em seu ventre que “o Verbo se fez carne e habitou entre nós”
(Jo 1,14). No “sim” da Mãe e do Filho
cumpriram-se as promessas feitas pelo Senhor aos patriarcas e profetas.
“Hoje é o prelúdio da benevolência de Deus e a proclamação
preliminar da salvação dos homens. A Virgem apresenta-se com esplendor no
templo de Deus e antecipadamente anuncia Cristo a todos. A ela, nós também
clamemos em alta voz: Salve, ó realização da economia do Criador!”
(Tropárion da festa no Rito Bizantino) [4].
3. A difusão da festa
no Ocidente
No Ocidente, a celebração da “Apresentação de Nossa Senhora”
nunca teve a mesma popularidade que no Oriente. No Rito Romano, seu conteúdo
teológico - isto é, a total consagração de Maria a Deus - é destacado na Solenidade da Imaculada Conceição, celebrada poucos dias depois (08 de dezembro).
A festa da Apresentação de Maria foi acolhida no século IX em alguns mosteiros do sul da Itália, sob influência oriental, sendo
em seguida atestada na Inglaterra (século XI).
Em 1372, durante o “Papado de Avignon”, período no qual os
Papas residiram nessa cidade francesa, Gregório XI (†1378) autorizou sua
celebração em alguns lugares (pro
aliquibus locis). Essa decisão foi apoiada por Philippe de Mézières (†1405),
diplomata francês que teve contato com a celebração durante suas visitas a
Jerusalém e à ilha de Chipre.
Atribui-se a Philippe de Mézières, com efeito, a composição de
uma sequência para a festa (In festo
praesentationis Virginis Benedictae), intitulada “Altissima providente”, que seria acolhida em algumas regiões do
centro da Europa.
Um século depois, em 1471, o Papa Sisto IV (†1484) permitiu
que a festa da Apresentação fosse celebrada em toda a Igreja de Rito Romano.
Contudo, no contexto da reforma litúrgica do Concílio de Trento, Pio V (†1572) se
negou a inseri-la no novo Missale Romanum
promulgado em 1570, dada a origem apócrifa da celebração.
Não obstante, ao ser eleito em 1585, o Papa Sisto V (†1590)
inscreveu definitivamente a celebração do dia 21 de novembro no Calendário Romano Geral, adaptando os
textos da festa da Natividade de Maria. Pouco depois, Clemente VIII (†1605)
aprovou os textos próprios para a Missa e a Liturgia das Horas.
Apresentação da Virgem Maria (Giotto - Cappella degli Scrovegni, Pádua) |
4. A reforma do Concílio Vaticano II
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II conservou a celebração da Apresentação da Bem-aventurada Virgem Maria (In Praesentatione Beatae Mariae Virginis) no dia 21 de novembro, com o grau de Memória obrigatória.
São Paulo VI (†1978), com efeito, indica em sua Exortação Apostólica Marialis cultus que, apesar de sua origem apócrifa, essa celebração “propõe conteúdos de elevado valor exemplar e continua uma venerável tradição, radicada sobretudo no Oriente” (n. 08).
A Missa da Memória conta apenas com a oração do dia
(coleta) própria, a qual infelizmente é bastante “genérica”. As demais orações,
por sua vez, tomam-se do Comum de Nossa Senhora. Também na edição anterior do Missale Romanum essa celebração contava
apenas com a coleta:
Deus, qui beátam
Maríam semper Vírginem, Spíritus Sancti habitáculum, hodierna die in templo
praesentári voluísti: praesta, quaésumus; ut, ejus intercessióne, in templo
glóriae tuae praesentári mereámur.
Ó Deus, que quisestes que a Bem-aventurada e sempre Virgem
Maria, santuário do Espírito Santo, fosse hoje apresentada no templo,
concedei-nos, por sua intercessão, que possamos ser um dia apresentados no
templo da vossa glória.
Quanto às leituras, são indicados atualmente os seguintes
textos: Zc 2,14-17, prefigurando o mistério da Encarnação, isto é, do Deus que vem habitar no meio
do seu povo; Lc 1,46-55, o cântico da Virgem Maria (Magnificat),
no lugar do salmo; e Mt 12,46-50, celebrando
Maria como aquele que acolheu a Palavra de Deus, fazendo a sua vontade.
Em relação à Liturgia das Horas, além da 2ª leitura do
Ofício das Leituras, na qual Santo Agostinho (†430) comenta o Evangelho da
Missa, vale destacar os dois hinos próprios, ambos textos
anônimos do final da Idade Média:
- Ofício das Leituras:
Salve, mater misericórdiae (Salve, ó
Mãe da esperança);
- Laudes: María, virgo régia (Do Rei Esposa e
Filha).
Para as Vésperas, por sua vez, toma-se o célebre hino do
Comum de Nossa Senhora, Ave Maris stella
(Ave, do mar Estrela).
Confira a homilia de Santo Agostinho lida no Ofício dessa Memória clicando aqui.
Por fim, uma vez que a celebração de 21 de novembro “realça
a primeira doação que Maria fez de si própria, tornando-se modelo de toda alma
que se consagra ao Senhor” [5], esse dia costuma ser escolhido por algumas
congregações, sobretudo femininas, para a celebração da Profissão Religiosa.
Assim, em 1953 o Papa Pio XII (†1958) instituiu a Jornada Pro orantibus, a ser celebrada na
Memória da Apresentação da Bem-aventurada Virgem Maria. Trata-se de um convite
a rezarmos nesse dia pelas comunidades monásticas, também ditas “de vida
contemplativa”.
Em 21 de novembro de 2013, por ocasião do Ano da Fé, o Papa
Francisco celebrou essa data visitando o Mosteiro de Santo Antônio Abade all’Aventino em Roma, participando da
oração das Vésperas com as monjas camaldolenses. Como canta, pois, a célebre “Marcha da Igreja”: “Com nossos irmãos e irmãs nos claustros, nós
iremos a Ti!”.
Notas:
[1] Antífona do cântico evangélico das Vésperas da Memória
da Apresentação de Nossa Senhora.
[2] cf. PROENÇA,
Eduardo de [org.]. Apócrifos e
pseudo-epígrafos da Bíblia, vol. I. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, pp. 520-522.
[3] Sérgio I nasceu em Palermo (Itália), em uma família de origem síria. Após sua eleição como Bispo de Roma em 687, popularizou diversas festas orientais: Apresentação do Senhor (02 de fevereiro), Anunciação (25 de março), Natividade de Maria (08 de setembro), Dormição ou Assunção (15 de agosto), Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro). Também se lhe atribuiu a introdução do Agnus Dei (Cordeiro de Deus) na Missa.
[4] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto [org.]. Liturgikon: Próprio das Festas no Rito
Bizantino. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 15.
[5] cf. MISSAL
ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 705.
Referências:
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 162-163.
DONADEO, Madre Maria. O
Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 41-45.
LODI, Enzo. Os Santos
do Calendário Romano: Rezar com os Santos na Liturgia. São Paulo: Paulus,
1992, pp. 546-549.
GHARIB, Georges. Apresentação
de Maria. in: DE FIORES, Stefano;
MEO, Salvatore [org.]. Dicionário de
Mariologia. São Paulo; Paulus, 1995, pp. 140-145.
RIGHETTI, Mario. Historia
de la Liturgia, vol. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario.
Madrid: BAC, 1955, p. 915.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; v.
VIII: I Santi nel Mistero della Redenzione (Le Feste dei Santi dalla Dedicazione di S. Michele all’Avvento).
Torino-Roma: Marietti, 1932, pp. 167-168.
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