“Que Nazaré nos ensine
o que é a família” (São Paulo VI).
No domingo após a Solenidade do Natal do Senhor a Igreja de
Rito Romano celebra a Festa da Sagrada
Família de Jesus, Maria e José [1].
Complementando as postagens que
realizamos no ano de 2020 sobre a história do culto a São José, gostaríamos de
analisar brevemente a história da Festa da Sagrada Família.
Sagrada Família de Jesus, Maria e José (Les Grandes Heures d'Anne de Bretagne, fol 159v - início do séc. XVI) |
A origem da devoção
Com efeito, José foi o último dos membros da Família a
receber uma particular devoção: enquanto o culto a Jesus Cristo está na própria
origem da nossa fé e a devoção à Virgem Maria desenvolve-se sobretudo a partir
do século III, a “devoção josefina” começa a ganhar destaque apenas no século XV.
A partir desse período, a Sagrada Família tornou-se um tema
recorrente na arte sacra, o que levou ao florescimento do seu culto a partir
dos séculos XVI e XVII.
Este foi promovido sobretudo pelos jesuítas na Itália, na França
e na Bélgica. Com efeito, uma vez que os Exercícios Espirituais propostos por Santo Inácio
de Loyola (†1556) centram-se na contemplação da vida de Cristo, os jesuítas
acabaram por difundir também a devoção à Sagrada Família.
Dentre os promotores da devoção cabe destacar São François
de Laval (†1708), primeiro Bispo de Québec, então um território de missão que
abrangia boa parte do atual Canadá e parte dos Estados Unidos da América [2].
São François Laval criou uma confraria para promover a
devoção à Sagrada Família na Diocese de Québec, celebrando pela primeira vez a sua
Festa no II Domingo após a Epifania de 1665.
São François de Laval, 1º Bispo do Canadá Promotor da devoção à Sagrada Família |
A partir do século XIX diversas congregações religiosas
(masculinas e femininas) foram fundadas sob o título da Sagrada Família. Nesse
período, outro grande promotor da devoção foi o Papa Leão XIII (†1903), que, através
do Breve Neminem fugit (14 de junho
de 1892), criou a Pia Associação da Sagrada Família [3].
Exatamente um ano depois, no dia 14 de junho de 1893, o Papa
instituiu a Festa da Sagrada Família, a ser celebrada no III Domingo após a Epifania, porém
apenas para as Congregações e Dioceses que solicitassem a autorização à Sagrada
Congregação dos Ritos [4].
A Festa só seria estendida para toda a Igreja de Rito Romano
pelo Papa Bento XV (†1922) na edição do Missale
Romanum de 1920, transferindo-a para o domingo dentro da oitava da
Epifania, isto é, o domingo seguinte ao dia 06 de janeiro.
A edição do Missale
Romanum de 1962, por sua vez, suprimiu a oitava da Epifania, conservando
porém a Festa da Sagrada Família no domingo seguinte a essa Solenidade.
A celebração atual
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, por fim,
transferiu a Festa da Sagrada Família para o domingo após o Natal do Senhor
(isto é, o domingo dentro da oitava do Natal).
Como testemunha Dom Annibale Bugnini em sua obra sobre A reforma litúrgica, a Festa da Sagrada
Família foi um tema particularmente discutido pelo Consilium ad exsequendam Constitutionem de Sacra Liturgia,
organismo encarregado de implementar a reforma litúrgica [5].
Ícone bizantino da Sagrada Família |
Antes de tudo o Consilium buscou manter a sequência das “três epifanias” (adoração dos Magos, Batismo do Senhor e bodas de Caná), prescrevendo a Festa do Batismo do Senhor para o domingo após o dia 06 de janeiro. Assim, seria necessária outra data para a Sagrada Família.
Apesar de ser uma “festa de ideia” ou “devocional” [6], o Consilium considerou seu valor pastoral, propondo a família de Nazaré como modelo para as famílias cristãs, e sua natural inserção no Tempo do Natal, como autêntica festa do mistério da Encarnação, concluindo portanto que deveria ser conservada:
“Esta festa recorda que o mistério da Encarnação é um
mistério de partilha. O Filho de Deus veio partilhar em tudo, exceto no pecado,
da nossa condição humana; veio para fazer parte da família humana, vivendo na
obediência e no trabalho dentro de uma família concreta, embora única e
irrepetível. Emergem nessa família, porém, os valores e as virtudes que devem
caracterizar qualquer família cristã” [7].
Um dos grandes méritos da reforma da Festa está na sua maior
quantidade de leituras:
- um Evangelho próprio para cada ano:
Ano A: Mt 2,13-15.19-23 (fuga para o Egito);
Ano B: Lc 2,22-40 (Apresentação no Templo);
Ano C: Lc 2,41-52 (perda e reencontro do Menino
no Templo);
- um ciclo de leituras próprio (ano A), que pode ser
retomado todos os anos, e dois ciclos de leituras à escolha para os anos B e C
[8].
Antes da reforma litúrgica, o Evangelho era sempre Lc 2,42-52, destacando a obediência de
Jesus a Maria e José: “et erat súbditus
illis” (v. 51). Como testemunha o Bem-aventurado Cardeal Alfredo Ildefonso Schuster (†1954) em seu Liber Sacramentorum, este já era o
Evangelho do domingo após a Epifania mesmo antes da inserção da Festa da
Sagrada Família no calendário.
“No Ciclo de Natal, o mistério de Cristo obediente sublinha
a sua inserção concreta em uma família, em uma tradição e em uma história,
aspectos concretos do mistério da Encarnação” [9].
Cristo conduzido pela mão por Maria e José: “era-lhes submisso” (Lc 2,51) (Claudio Coello - séc. XVII) |
A eucologia da Festa também foi revista: a coleta (oração do
dia) e a oração sobre as oferendas foram adaptadas do Missal anterior, enquanto
a oração após a Comunhão é nova. As três orações buscam reafirmar a Sagrada Família
como exemplo de virtudes.
Destaque para a ausência de um Prefácio próprio para a
Festa, tomando-se um dos Prefácios do Natal, o que corrobora sua inserção
natural dentro desse Tempo.
Por fim, cabe destacar os textos próprios para a Liturgia
das Horas: primeiramente a 2ª leitura do Ofício das Leituras, do célebre discurso proferido pelo Papa São Paulo VI (†1978) em sua visita a Nazaré no dia 05 de janeiro de 1964, no qual o Pontífice destaca as três “lições de Nazaré”: o silêncio, o valor da família e o trabalho.
Além da homilia de Paulo VI, destacam-se os três hinos próprios, sendo os dois primeiros atribuídos ao Papa Leão XIII e o terceiro de nova composição (elaborado pelo Consilium):
- I e II Vésperas: O lux beáta caelitum (Ó luz bendita dos céus);
- Ofício das Leituras: Dulce fit nobis memoráre parvum (A vida oculta de Jesus);
- Laudes: Christe, splendor Patris (Ó Cristo, luz do Pai).
O Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia (n. 112) recomenda ainda valorizar nesse dia algumas das bênçãos ligadas ao mistério da família: além da própria bênção de família, as bênçãos dos filhos, dos cônjuges, de noivos... [10].
Papa Leão XIII: Grane promotor da devoção à Sagrada Família |
Algumas
particularidades
Após centrarmo-nos no Rito Romano nas seções anteriores, cabe
destacar algumas particularidades litúrgicas ligadas ao culto da Sagrada
Família em alguns ritos e Congregações religiosas.
O Rito Ambrosiano,
próprio da Arquidiocese de Milão (Itália), celebra a Festa da Sagrada Família
no último domingo do mês de janeiro.
Em vários lugares, com efeito, conservaram-se celebrações em
honra do Menino Jesus no mês de janeiro, em atenção à antiga data da Festa da
Sagrada Família, fazendo a “ponte” entre Natal/Epifania e a Festa da
Apresentação do Senhor (02 de fevereiro).
Por exemplo, nas Filipinas celebra-se a Festa do “Santo Niño” no terceiro domingo de
janeiro. Tanto São João Paulo II quanto o Papa Francisco presidiram a Missa
dessa Festa em suas viagens ao país (1995 e 2015).
Algumas Congregações
religiosas ligadas à Sagrada Família, por sua vez, possuem celebrações
próprias em honra desse mistério.
A Congregação dos Filhos da Sagrada Família, fundada em 1864
por São José Manyanet (†1901) [11] e aprovada pelo Papa Leão XIII, possui em
seu calendário próprio, as seguintes celebrações:
- Sábado após a Epifania (dia anterior à Festa do Batismo do
Senhor): Memória do encontro do Menino Jesus no Templo;
- 17 de fevereiro: Memória da fuga para o Egito de nosso
Senhor Jesus Cristo [12].
Ícone copta (moderno) da Entrada da Sagrada Família no Egito |
Por fim, uma vez referida a fuga para o Egito, cumpre recordar aqui os coptas, isto é, os cristãos do Egito (católicos e ortodoxos) que celebram segundo o Rito Alexandrino, um dos cinco grandes Ritos Orientais.
Os coptas celebram como uma de suas festas próprias a Entrada de nosso Senhor Jesus Cristo no Egito no dia 24 de Bashans (ou Pashons), que corresponde ao dia 19 de maio no calendário juliano e 01 de junho no calendário gregoriano [13].
Com efeito, alguns relatos apócrifos da infância do Senhor,
como o Evangelho do Pseudo-Mateus (século
VII), descrevem as várias etapas da presença da Sagrada Família no “país de Kemet” (antigo nome do Egito, em
referência à “terra negra” fertilizada pelo rio Nilo), destacando os feitos
miraculosos do Menino: palmeiras que se inclinam para alimentá-lo, animais
selvagens que o reverenciam, estátuas dos deuses que se quebram em sua
presença... [14].
Recentemente as igrejas cristãs no Egito têm buscado promover
o “Caminho da Sagrada Família”, um itinerário de peregrinação a alguns lugares
ligados ao culto de Jesus, Maria e José.
Oração final
À guisa de conclusão dessa postagem, reproduzimos aqui a
coleta alternativa para a Festa proposta no apêndice do Missal Romano em
italiano:
“Ó Deus, nosso criador e Pai, vós quisestes que o vosso
Filho, gerado antes da aurora do mundo, se tornasse membro da família humana;
reavivai em nós a veneração pelo dom e mistério da vida, para que os pais se
sintam participantes da fecundidade do vosso amor e os filhos cresçam em
sabedoria, piedade e graça, louvando o vosso santo nome” [15].
Notas:
[1] Quando o dia 25 de dezembro cai em um domingo, porém, a
Festa da Sagrada Família é celebrada no dia 30 de dezembro, uma vez que o domingo
seguinte, 01 de janeiro, será a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus.
[2] São François Laval foi canonizado de maneira equipolente
(isto é, por decreto do Papa) no dia 03 de abril de 2014, junto com Santa Maria
da Encarnação Guyart, religiosa canadense, e São José de Anchieta. O Papa Francisco celebrou uma Missa em ação de graças pela canonização dos dois santos
canadenses no dia 12 de outubro de 2014.
[3] Acta Sanctae Sedis,
vol. XXV, 1892-1893, pp. 08-20. Incluem-se os Estatutos da Associação e
algumas indulgências especiais para as famílias.
[4] Acta Sanctae Sedis,
vol. XXVI, 1893-1894, pp. 52-53.
[5] cf. BUGNINI,
Annibale. A reforma litúrgica: 1948-1975.
São Paulo: Paulinas; Paulus; Loyola, 2018, pp. 274.279.281.
[6] As festas “dinâmicas” celebram eventos da história da
salvação: (Páscoa, Natal, Anunciação...), enquanto as festas “estáticas”
celebram ideias teológicas ou devoções: Santíssima Trindade, Corpus Christi, Sagrado Coração de Jesus... (cf. BERGER, Rupert. Festas de ideias. in: Dicionário de Liturgia Pastoral: Obra de consulta
sobre todas as questões referentes à Liturgia. São Paulo: Loyola, 2010, p.
166).
[7] BERGAMINI, Augusto. Cristo,
festa da Igreja: O Ano Litúrgico. São Paulo: Paulinas, 2004, p. 222.
[8] Ano A: Eclo
3,3-7.14-17a / Sl 127 (128) / Cl 3,12-21.
Ano B (à escolha):
Gn 15,1-6; 21,1-3 / Sl 104 (105) / Hb 11,8.11-12.17-19.
Ano C (à escolha):
1Sm 1,20-22.24-28 / Sl 83 (84) / 1Jo 3,1-2.21-24.
Essas leituras podem ser usadas também na Missa “pela
família”, um dos formulários de Missas para diversas necessidades (que, porém,
possui orações próprias).
[9] AUGÉ, Matias. Ano
Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas,
2019, pp. 277.
[10] cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 102-103.
[11] São José Manyanet y Vives, canonizado pelo Pap João Paulo II em 2004, foi também um dos promotores da
célebre Basílica da Sagrada Família em Barcelona (Espanha), projetada pelo grande arquiteto Antoni Gaudí (†1926),
cuja construção iniciou-se em 1882 e prossegue até hoje. No dia 08 de dezembro de 2021, com efeito, foi inaugurada a torre da Virgem Maria.
Imagem do Nascimento de Jesus na Basílica da Sagrada Família |
[11] O Calendário próprio dos Filhos da Sagrada Família foi
aprovado pela Congregação para o Culto Divino entre 1981 e 1982 e publicado no
ano de 1986 (em espanhol).
[12] St. Takla: Coptic Orthodox Church Heritage: Daily Coptic Synaxarium.
[13] cf. PROENÇA,
Eduardo de (Org.) Apócrifos e
pseudo-epígrafos da Bíblia, v. I. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, pp.
503-508.
[14] BERGAMINI, op. cit., p. 223. Na tradução italiana
da 3ª edição do Missal Romano esta oração foi ligeiramente modificada.
Referências (além dos textos já citados nas notas acima):
ADAM, Adolf. O Ano
Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica.
São Paulo: Loyola, 2019, pp. 104-105.
AUGÉ, Matias. Ano
Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas,
2019, pp. 276-279.
SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; v. VI:
La Chiesa Trionfante (Le Feste dei Santi durante il Ciclo Natalizio).
Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 133-140.
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