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sexta-feira, 9 de outubro de 2020

O culto aos santos do Antigo Testamento

Foi a fé que valeu aos antepassados um bom testemunho” (Hb 11,2)

A Constituição Dogmática Lumen Gentium, do Concílio Vaticano II, em seu n. 50, destaca a particular devoção da Igreja aos Apóstolos, aos Mártires, à Virgem Maria e aos anjos. A estes podemos acrescentar ainda João Batista e José, o esposo de Maria.

Nota-se nesta lista a preponderância de personagens do Novo Testamento, aos quais somamos os anjos, mencionados já no Antigo (inclusive os três arcanjos). Mas, e os demais personagens do Antigo Testamento (AT), podem ser venerados como santos?

A esta pergunta responde o Catecismo da Igreja Católica: “Os patriarcas, os profetas e outros personagens do Antigo Testamento foram, e serão sempre, venerados como santos em todas as tradições litúrgicas da Igreja” (n. 61).

Fundamentação bíblica e teológica

A veneração dos santos do AT remonta aos “elogios dos antepassados” presentes no Livro do Eclesiástico (cap. 44–50) e no cap. 11 da Carta aos Hebreus. Os dois grandes hinos lucanos - que a Igreja recita diariamente na Liturgia das Horas - recordam que Deus “falou pela boca de seus santos, os profetas” (Lc 1,70) e “mostrou misericórdia a nossos pais” (v. 72), isto é, Abraão e sua descendência (v. 55.73).

Mas é no Livro do Apocalipse, com sua linguagem simbólica, que sua presença é destacada: na “Liturgia do trono” (cap. 4–5) há 24 anciãos (Ap 4,4), que podem ser interpretados como as doze tribos de Israel, simbolizando todos os justos da primeira aliança, e os doze Apóstolos, isto é,  todo o novo Israel, a Igreja.

O Cordeiro e os 24 anciãos (Altar da Basílica de Ars, França)

No cap. 7, os servos de Deus são 144 mil: 12 mil (número que indica aqui totalidade) de cada uma das tribos de Israel (Ap 7,4-8), além de “uma multidão enorme, que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas” (v. 9).

Comentando especificamente este texto, o Papa Bento XVI esclarece: “Este povo compreende os santos do Antigo Testamento, a partir do justo Abel e do fiel Patriarca Abraão, os do Novo Testamento, os numerosos mártires do início do cristianismo e também os beatos e os santos dos séculos seguintes, até às testemunhas de Cristo desta nossa época” (Homilia na Solenidade de Todos os Santos, 01 de novembro de 2006).

Além da Sagrada Escritura, há um texto (provavelmente do século III), posteriormente inserido no Evangelho de Nicodemos, que narra a descida de Cristo ao Hades após sua morte para resgatar os justos do AT [1]. Este texto inspirou a célebre homilia anônima do século IV lida no Ofício das Leituras do Sábado Santo [2].

Tal tradição foi acolhida pela fé da Igreja, como testemunha mais uma vez o Catecismo da Igreja Católica, confirmando que Cristo desceu à “mansão dos mortos” “para libertar os justos que O tinham precedido” (n. 633).

Arte sacra

Expressão visível dessa crença são os ícones bizantinos da Crucificação e da Ressurreição. No primeiro vemos como o sangue de Cristo desce simbolicamente sobre o crânio de Adão, redimindo nele toda a humanidade. No segundo, à luz dos textos acima citados, o Senhor toma pela mão os primeiros pais para conduzi-los ao paraíso.

Ícone da Ressurreição (Igreja do Salvador em Chora, Istambul)

O AT é, com efeito, um tema particularmente caro à arte sacra. Suas cenas são retratadas à luz da interpretação “tipológica”, isto é, como prefigurações dos mistérios de Cristo (por exemplo, o sacrifício de Isaac é profecia da Paixão; a passagem do mar Vermelho aponta para o Batismo...). Destaca-se, a partir dos séculos V-VI, a presença da típica auréola ou halo nos personagens veterotestamentários [3].

Um tema recorrente na arte é o paralelo entre os Apóstolos ou Evangelistas e os Profetas (ou, mais raramente, os doze filhos de Jacó). Podemos encontrar de um lado da igreja os quatro Evangelistas e do outro os quatro “Profetas Maiores”; ou de um lado os doze Apóstolos e do outro os doze “Profetas Menores” [4].

Os quatro evangelistas sobre os ombros dos quatro profetas maiores
(Vitral da Catedral de Chartres, França)

Orações litúrgicas

Além da arte sacra, os justos do AT estão presentes nas orações litúrgicas. O Cânon Romano (Oração Eucarística I), que remonta ao século IV, no momento da oblação, ao pedir a Deus que acolha a oferenda do pão e do vinho apresentada pela Igreja, recorre a três personagens ligados ao tema do sacrifício:

“Recebei, ó Pai, esta oferenda, como recebestes a oferta de Abel, o sacrifício de Abraão e os dons de Melquisedeque” (Missal Romano, p. 474).

Dada a pobreza da atual tradução brasileira, vamos recorrer mais uma vez à versão de Portugal (como fizemos na postagem sobre os arcanjos):

“Olhai com benevolência e agrado para esta oferenda e dignai-Vos aceitá-la como aceitastes os dons do justo Abel, vosso servo, o sacrifício de Abraão, nosso pai na fé, e a oblação pura e santa do sumo sacerdote Melquisedec” (Ordinário da Missa, site do Secretariado Nacional de Liturgia de Portugal).

Os sacrifícios de Abel, Melquisedec e Abraão
(Mosaico da Basílica de Santo Apolinário em Ravena)

No Rito de Encomendação dos Agonizantes, por sua vez, há uma série de invocações que mencionam oito personagens do Antigo Testamento que teriam sido livrados por Deus de suas tribulações. Assim, o texto pede que o Senhor livre também o fiel por quem se reza de seu sofrimento:

“Livrai, Senhor, o vosso servo (a vossa serva), como livrastes Noé das águas do dilúvio.
(...) como livrastes Abraão da cidade de Ur da Caldeia.
(...) como livrastes Jó dos seus sofrimentos.
(...) como livrastes Moisés das mãos do faraó.
(...) como livrastes Daniel da cova dos leões.
(...) como livrastes os três jovens da fornalha acesa e das mãos de um rei injusto.
(...) como livrastes Suzana do falso testemunho.
(...) como livrastes Davi do rei Saul e das mãos de Golias” [5].

Existem várias outras orações nas quais os santos do AT são “evocados”, como a Bênção para o início de uma viagem, que menciona as peregrinações de Abraão [6]. Porém, nessas orações eles não são “invocados”, ou seja, a oração não é dirigida a eles, mas a Deus. Não obstante, o Livro do Apocalipse testemunha sua participação ativa na Liturgia celeste: os 24 anciãos têm cítaras nas mãos, para entoar o louvor de Deus, e taças de incenso, para apresentar-Lhe nossas orações (Ap 5,8).

Destaca-se na Escritura a figura de Moisés como intercessor em favor do povo, imagem de Cristo, único Mediador entre nós e o Pai (1Tm 2,5). Moisés intercede pelo povo durante a batalha (Ex 17,8-13) e mesmo após a sua infidelidade (Ex 32,30-32).

Na Liturgia encontramos a invocação direta aos justos do AT, pedindo-lhes sua intercessão, em versões mais antigas da Ladainha de Todos os Santos. Nestas, após a Virgem Maria e os anjos, eram recordados Abraão, Moisés e Elias [7], além de uma invocação genérica a todos os Patriarcas e Profetas:

Sancte Abraham, ora pro nobis (Santo Abraão, rogai por nós).
Sancte Moyses, ora pro nobis (São Moisés, rogai por nós)
Sancte Elia, ora pro nobis (Santo Elias, rogai por nós).
Omnes sancti Patriarchae et Prophetae, orate pro nobis (Todos os santos Patriarcas e Profetas, rogai por nós).

Na versão da Ladainha para as Exéquias, por sua vez, eram invocados Abel, Abraão e o “coro dos Justos”:

Sancte Abel, ora pro eo (Santo Abel, rogai por ele).
Omnis chorus Justórum, ora pro eo (Todo o coro dos Justos, rogai por ele).
Sancte Abraham, ora pro eo (Santo Abraão, rogai por ele).

Merecem destaque aqui os títulos de “Patriarcas” e “Profetas”, que englobam todos os santos da primeira aliança. Com efeito, de modo análogo ao que aconteceu aos anjos, buscou-se classificar os santos em “coros”, como atesta a anáfora das Constituições Apostólicas (final do século IV):

“Nós Te apresentamos ainda a nossa oblação por todos os santos que desde as origens Te foram agradáveis: Patriarcas, Profetas, Justos, Apóstolos, Mártires, Confessores (...) e por todos aqueles cujos nomes Tu mesmo conheces” [8].

O Cordeiro ladeado por Patriarcas e Profetas
(Batistério de Florença)

Com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, as invocações genéricas aos “coros” dos santos foram suprimidas da Ladainha, assim como os próprios santos do AT. Permanecem, porém, os máximos representantes dos seus dois coros, que fazem a ponte entre Antigo e Novo Testamento: São João Batista, o último e maior dos Profetas, e São José, o maior dos Patriarcas.

A invocação dos santos do AT (Abraão, Moisés e Elias), bem como aos coros dos Patriarcas e Profetas conserva-se na Ladainha entoada na Quarta-feira de Cinzas em Roma, que acompanha a procissão penitencial presidida pelo Papa na forma das antigas estações quaresmais romanas.


Além disso, na Ladainha de Nossa Senhora foram conservadas suas invocações como Rainha dos “coros” dos santos, dentre os quais os Patriarcas e Profetas:

Regina Patriarcharum, ora pro nobis (Rainha dos Patriarcas, rogai por nós).
Regina Prophetarum, ora pro nobis (Rainha dos Profetas, rogai por nós).

Martirológio Romano

Não obstante, o maior testemunho a respeito dos santos do AT nos é oferecido pelo Martirológio Romano (Martyrologium Romanum). Este é um livro litúrgico que contém a lista dos santos venerados pela Igreja, remontando às listas de nomes dos mártires que eram elaboradas no início do cristianismo.

Para cada um dos santos o Martirológio apresenta um “elogio”, isto é, um breve resumo da sua vida. Santos mais importantes (celebrados com solenidades, festas ou memórias no Calendário) possuem “elogios” mais completos, enquanto os demais possuem ao menos o nome, o local e a data da morte.

O elenco dos santos de cada dia pode ser lido no final da Liturgia das Horas (não, porém, na Missa) ou como ato de devoção pessoal. Em algumas comunidades religiosas há o costume de ler o Martirológio em uma das refeições.

A atual edição do Martirológio foi publicada em sua forma típica (em latim) em 2001 e revisada em 2004. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) até o momento não se preocupou em traduzi-la. Felizmente o Secretariado Nacional de Liturgia de Portugal não apenas traduziu o Martirológio como também o disponibilizou na íntegra em seu site.


É a partir desta versão que identificamos as comemorações de diversos santos do Antigo Testamento, que serão temas das próximas postagens aqui no blog. Nelas elencaremos os “elogios” de todos os Patriarcas e Profetas celebrados atualmente no Rito Romano, além de traçar alguns paralelos com sua celebração no Rito Bizantino, onde são particularmente venerados, e na igreja luterana, que também os comemora, invocando-os como “justos”.

A pesquisa será dividida em três partes:




Cumpre notar que a comemoração dos personagens do AT não é uma afirmação dogmática de sua existência histórica, uma vez que temos figuras que a maioria dos estudiosos considera como lendárias, como é o caso de Jó. O mais importante dessas comemorações é meditar sobre sua mensagem, deixando-nos iluminar pela sabedoria das Sagradas Escritura.

Cenas do Antigo Testamento ladeadas pelos Profetas
(Catedral anglicana da Santíssima Trindade em Ely, Inglaterra)

Notas:

[1] Descida de Cristo ao Inferno: Versão grega. in: PROENÇA, Eduardo de [Org.] Apócrifos e pseudo-epígrafos da Bíblia, v. I. São Paulo: Fonte Editorial, 2005, pp. 563-569.

[2] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 2000, v. II, pp. 439-440.

[3] cf. HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos símbolos: Imagens e sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994, p. 44. Inicialmente a auréola era restrita a Cristo (séc. II), sendo posteriormente estendida à Virgem Maria, aos anjos, aos Apóstolos e Evangelistas (séc. IV-V).

[4] Os “Profetas Maiores” são Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel, assim chamados pela maior extensão dos respectivos livros. Os “Profetas Menores” são: Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias.

[5] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia: Princípios e orientações. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 89.

[6] RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 162.

[7] A santidade destes três personagens é de certa forma atestada pelos próprios Evangelhos: a bem-aventurança após a morte é chamada de “seio de Abraão” (Lc 16,22); Moisés e Elias, por sua vez, aparecem junto a Jesus na glória da sua Transfiguração (Mt 17,3 e paralelos).

[8] Constituições Apostólicas, VIII, 12, 43. in: CORDEIRO, José de Leão (Org.). Antologia Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio. Secretariado Nacional de Liturgia: Fatima, 2003, p. 435.

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