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quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Leitura litúrgica do Livro do Deuteronômio (1)

Ouve, Israel, o Senhor nosso Deus é o único Senhor” (Dt 6,4)

Em nossa série de postagens sobre leitura litúrgica, já analisamos livros de três blocos da Sagrada Escritura: proféticos (Joel e Miqueias), sapienciais (Sabedoria e Provérbios) e epístolas (Cartas de João e Cartas de Paulo aos Tessalonicenses). Em sintonia com o tema do “Mês da Bíblia” proposto pela Igreja no Brasil para este ano de 2020, contemplaremos agora um escrito do Pentateuco: o Livro do Deuteronômio (Dt).

1. Breve introdução ao Livro do Deuteronômio

O Livro do Deuteronômio (grego para “segunda lei”) é o último dos cinco escritos que formam o Pentateuco ou Torá (hebraico para “Lei”), fazendo a transição entre a caminhada do povo de Israel pelo deserto e a entrada na terra de Canaã.

Os primeiros versículos do livro nos situam no quadragésimo ano desta peregrinação e indicam conter as últimas instruções de Moisés ao povo antes de sua morte, sobre o monte Nebo (na atual Jordânia).

O livro, com efeito, estrutura-se em quatro discursos de Moisés, introduzidos pelas expressões “estas são” (‘elleh) ou “esta é” (wezo’t):

- “Estas são as palavras de Moisés” (1,1–4,43): O primeiro discurso é mais narrativo, marcado pela recordação da caminhada no deserto. Dessa expressão vem o nome do livro em hebraico: Debarim, "as palavras";

- “Esta é a Lei” (4,44–28,68): Este discurso, o mais longo, constitui o núcleo do livro. Depois de recordar o Decálogo (Dt 5,1-22), seguem-se leis sobre diversos assuntos, concluindo-se com uma série de maldições e bênçãos;

- “Estas são as palavras da aliança” (28,69–32,52): O terceiro discurso, conjugando narrativas e prescrições legais, centra-se sobre no tema da aliança, e encerra com um cântico de Moisés;

- “Esta é a bênção” (33–34): O capítulo 33 contém bênçãos às doze tribos de Israel e o capítulo 34 traz a narração da morte de Moisés.


A evolução histórica do Dt é bastante complexa. A parte mais antiga seria o Código Deuteronômico propriamente dito (cap. 12–25). Parte de suas leis seria do Reino do Norte (Israel), levadas ao Reino do Sul (Judá) na iminência da invasão assíria e sistematizadas no tempo de Ezequias (séc. VIII a. C.).

O material original teria sido ampliado na reforma do rei Josias (séc. VII; ver 2Rs 22), incluindo-se os cap. 6–10 e 26, centrados no tema da aliança. Posteriormente, sucessivas “molduras” foram acrescidas: por exemplo, os textos narrativos e poéticos elaborados durante e após o exílio da Babilônia (séc. VI).

Como vimos, o livro é formado por diversos gêneros literários, sobressaindo os textos legais (leis), além de narrativas, parêneses (exortações morais), poesias (hinos), bênçãos e maldições.

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem [1].

2. Leitura litúrgica de Dt: Composição harmônica

Como temos feito nas postagens desta série, analisaremos a leitura litúrgica do Dt a partir dos critérios propostos no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa: a composição harmônica e a leitura semicontínua [2]. Começamos pela composição harmônica, isto é, pelos textos escolhidos por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.


a) Celebração Eucarística

O Tempo da Quaresma, seguindo o ciclo do Ano Litúrgico, é o primeiro a conter leituras do nosso livro, presente em quatro celebrações.

Nos domingos deste tempo, “as leituras do Antigo Testamento referem-se à história da salvação (...). Cada ano há uma série de textos que apresentam os principais elementos desta história” [3]. Assim, no I Domingo da Quaresma do ano C a 1ª leitura é o texto de Dt 26,4-10, que recorda a libertação do Egito e exorta a oferecer a Deus as primícias da terra após a entrada em Canaã.

Nos dias de semana da Quaresma, “as leituras do Evangelho e do Antigo Testamento foram escolhidas de modo que tivessem uma relação mútua; elas tratam de diversos temas próprios da catequese quaresmal” [4].

Seguindo este critério, já no início desse tempo, na Quinta-feira depois das Cinzas, lemos Dt 30,15-20, que traz o tema dos dois caminhos, da vida e da morte. O caminho da vida é proposto por Cristo no Evangelho deste dia (Lc 9,22-25): “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz cada dia, e siga-me” (v. 23).

No Sábado da I semana da Quaresma, por sua vez, lê-se Dt 26,16-19, quando Moisés exorta a cumprir os mandamentos. À exortação do profeta responde Jesus no Evangelho (Mt 5,43-48) dando-nos o seu mandamento: “Amai os vossos inimigos e rezai por aqueles que vos perseguem” (v. 44)

Moisés com os Dez Mandamentos (Phillipe de Champaigne, séc. XVII)

Por fim, na Quarta-feira da III semana da Quaresma somos exortados duas vezes a cumprir os mandamentos: por Moisés na leitura de Dt 4,1.5-9 e pelo Senhor no Evangelho (Mt 5,17-19), que veio para dar à Lei “pleno cumprimento” (v. 17).

Após o Ciclo da Páscoa, encontramos o nosso escrito nas três Solenidades do Senhor no Tempo Comum celebradas na sequência do Pentecostes. A primeira delas, no domingo seguinte, é a Solenidade da Santíssima Trindade que, no ano B, tem como 1ª leitura o texto de Dt 4,32-34.39-40. Aqui Moisés recorda os grandes feitos do Senhor em favor do seu povo: a criação, a libertação do Egito, a eleição de Israel.

A próxima solenidade, na quinta-feira seguinte, é o Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi), que no ano A traz-nos a perícope de Dt 8,2-3.14b-16a, uma recordação da travessia do deserto e de como Deus alimentou o seu povo com o maná.

Enfim, na sexta-feira da semana seguinte, celebramos a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus, que, novamente no ano A, oferece-nos a leitura de Dt 7,6-11, na qual Moisés recorda a eleição do povo e o amor de Deus: “o Senhor vos amou (...) um Deus fiel que guarda a aliança e a misericórdia” (vv. 8-9).

Passando aos domingos do Tempo Comum, encontramos o Dt em seis (sendo quatro deles no ano B), sempre em sintonia com o Evangelho proclamado [5]:

No ano A (ano do Evangelho de Mateus), temos uma ocorrência do nosso livro, no IX Domingo do Tempo Comum. Aqui se lê Dt 11,18.26-28, retomando a metáfora dos dois caminhos: o da bênção (obediência a Deus) e o da maldição (desobediência). No Evangelho (Mt 7,21-27), por sua vez, Jesus usa a imagem da casa construída sobre a rocha ou sobre a areia.

No ano B (ano do Evangelho de Marcos), encontramos quatro leituras do Dt. A primeira delas no IV Domingo do Tempo Comum: Dt 18,15-20, quando Moisés anuncia que Deus enviará outro profeta como ele. No Evangelho (Mc 1,21-28), Jesus é apresentado como este “novo Moisés”, com uma dupla referência à sua “autoridade”.

A leitura do IX Domingo do Tempo Comum é tomada da narração do Decálogo no Dt, particularmente o 3º mandamento, sobre a observância do sábado: Dt 5,12-15. No Evangelho (Mc 2,23–3,6), Jesus amplia a reflexão sobre este dia: “O sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado” (v. 27).

No XXII Domingo do Tempo Comum retoma-se um trecho já lido na Quaresma, Dt 4,1-2.6-8, no qual se exorta a cumprir os mandamentos. No Evangelho (Mc 7,1-8.14-15.21-23), Jesus mais uma vez amplia a reflexão, discernindo entre os mandamentos de Deus e as tradições dos homens (v. 8), além de ensinar sobre o tema da pureza.

Memorial de Moisés no Monte Nebo (Jordânia)

O último dos domingos desse ano que contêm uma leitura do Dt é o XXXI Domingo do Tempo Comum, quando se lê Dt 6,2-6. Este é um texto fundamental, o chamado “Shemá, Israel” (“Ouve, Israel”), que Jesus cita no Evangelho (Mc 12,28b-34) como o primeiro dos mandamentos, unido ao amor ao próximo (cf. Lv 19,18).

Ouve, Israel, o Senhor, nosso Deus, é o único Senhor. Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças. E trarás gravadas em  teu coração todas estas palavras que hoje te ordeno” (Dt 6,4-6)

Por fim, no ano C (ano do Evangelho de Lucas), lemos o Dt apenas no XV Domingo do Tempo Comum. Trata-se de Dt 30,10-14, mais uma exortação a cumprir os mandamentos que não são difíceis demais, nem estão fora do nosso alcance (v. 11), corroborando a “parábola do bom samaritano”, narrada no Evangelho (Lc 10,25-37).

* * *

Concluímos assim a primeira parte do nosso estudo sobre a leitura litúrgica do Livro do Deuteronômio. Na próxima postagem continuaremos analisando sua leitura em composição harmônica nas celebrações dos Santos e outras Missas especiais, nos demais sacramentos, nos sacramentais e na Liturgia das Horas.

[Para acessar a segunda parte desse estudo, publicada no dia 09 de setembro, clique aqui]

[Para acessar a terceira parte desse estudo, publicada no dia 16 de setembro, clique aqui]

Segue abaixo uma versão musicada do Shemá, Israel (em hebraico e português):



Notas
[1] LÓPEZ, Félix Gárcia. O Livro do Deuteronômio. - in: O Pentateuco: Introdução à leitura dos cinco primeiros livros da Bíblia. São Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 229-270 (Coleção: Introdução ao estudo da Bíblia, v. 3A).
ROSE, Martin. Deuteronômio. - in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 260-279.
[2] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] ibid., p. 97.
[4] ibid.
[5] cf. ibid., pp. 103-104.

[Observação: Devido ao distanciamento social ocasionado pela atual pandemia de coronavírus (Covid-19), não temos acesso aos Lecionários I-III para indicar as páginas das leituras. Assim que a situação se normalizar, atualizaremos a postagem com as devidas referências]

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