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segunda-feira, 26 de junho de 2023

Hinos de São Pedro e São Paulo: I Vésperas

O Apóstolo Pedro e Paulo, o doutor das nações, nos ensinaram, Senhor, a vossa lei” [1].

No ano de 2022 publicamos uma postagem sobre o hino “Iam, bone pastor, entoado na Liturgia das Horas (LH) das Festas da Cátedra de São Pedro (22 de fevereiro) e da Conversão de São Paulo (25 de janeiro) e na Memória da Dedicação das suas Basílicas (18 de novembro).

São Pedro e São Paulo
(El Greco)

Nesta postagem gostaríamos de dar continuidade à proposta apresentando o primeiro dos quatro hinos da Solenidade de São Pedro e São Paulo (29 de junho) na LH:
I Vésperas: Aurea luce (Ó áurea luz);
Ofício das Leituras: Felix per omnes festum (A festa dos Apóstolos);
Laudes: Apostolórum pássio (A paixão dos Apóstolos);
II Vésperas: O Roma felix (Roma feliz).

Como indica Felix Arocena em sua obra Los himnos de la Liturgia de las Horas, as três estrofes de “Iam bone pastor” são na verdade parte do hino das I Vésperas da Solenidade de São Pedro e São Paulo: “Aurea luce et decóre róseo (Ó áurea luz, ó esplendor de rosa).

Esta composição anônima realizada entre os séculos VIII e IX possui seis estrofes: Aurea luce; Iánitor caeli; Iam, bone pastor; Doctor egrégie; Olívae binae; Sit Trinitáti.

Desde o tempo do Papa São Pio V (†1572) se omitia a estrofe “Olívae binae”, que era substituída por “O Roma felix”, adaptada do hino “Felix per omnes festum”, atualmente entoado no Ofício das Leituras e nas II Vésperas da Solenidade.

Além disso, no antigo Breviarium Romanum entoava-se tanto nas I quanto nas II Vésperas de São Pedro e São Paulo uma versão do hino realizada pelo Papa Urbano VIII (†1644), intitulada Decóra lux aeternitátis [2].

A Comissão encarregada pela revisão dos hinos da LH após o Concílio, encabeçada pelo Padre Anselmo Lentini (†1989), recuperou o texto original da composição, incluindo a estrofe “Olívae binae”, conservando ao mesmo tempo a estrofe “O Roma felix”, como veremos a seguir.

Com efeito, como já fizemos com outros hinos da LH aqui no blog, reproduzimos a seguir o texto original do hino (em latim), composto por cinco estrofes de quatro versos, e sua tradução oficial para o português do Brasil, seguidos de alguns breves comentários sobre sua teologia.

São Pedro
(Coluna de Trajano, Roma)

Sancti Petri et Pauli, Apostolorum (Solemnitas)
I Vesperae: Aurea luce et decóre róseo

1. Aurea luce et decóre róseo,
lux lucis, omne perfudísti saeculum,
décorans caelos ínclito martýrio
hac sacra die, quae dat reis véniam.

2. Iánitor caeli, doctor orbis páriter,
iúdices saecli, vera mundi lúmina,
per crucem alter, alter ense triúmphans,
vitae senátum laureáti póssident.

3. O Roma felix, quae tantórum príncipum
es purpuráta pretióso sánguine,
non laude tua, sed ipsórum méritis
excéllis omnem mundi pulchritúdinem.

4. Olívae binae pietátis únicae,
fide devótos, spe robústos máxime,
fonte replétos caritátis géminae
post mortem carnis impetráte vívere.

5. Sit Trinitáti sempitérna glória,
honor, potéstas atque iubilátio,
in unitáte, cui manet impérium
ex tunc et modo per aetérna saecula. Amen [3].


São Pedro e São Paulo, Apóstolos (Solenidade)
I Vésperas: Ó áurea luz, ó esplendor de rosa

1. Ó áurea luz, ó esplendor de rosa,
o azul vestis de sangue e de fulgor,
quando, tombando, os príncipes sagrados,
abrem do céu a porta ao pecador.

2. Doutor das gentes e do Céu Porteiro,
luzeiros sois, Juízes das Nações;
um pela espada, o outro pela cruz,
sobem do céu às eternais mansões.

3. Ó feliz Roma, por precioso sangue
cingida assim de púrpura e nobreza;
não por ti mesma, mas por tal martírio,
o mundo inteiro excedes em beleza.

4. Dupla oliveira, Pedro, Paulo viestes
na eterna Roma uma fronde erguer:
numa só fé e caridade acesos,
após a morte, dai-nos reviver!

5. Dê-se à Trindade sempiterna glória,
honra, poder e júbilo também;
pois na Unidade tudo e a todos rege,
agora e sempre, eternamente. Amém [4].

São Paulo
(Coluna de Marco Aurélio, Roma)

Comentário:

a) 1ª estrofe: Aurea luce

Embora não fique claro na tradução brasileira, a 1ª estrofe é dirigida a Cristo, invocado no segundo verso como “Luz da luz” (Lux lucis).

Esta expressão nos remete ao próprio Evangelho (cf. Jo 1,9; 8,12), ao Símbolo Niceno-Constantinopolitano e ao antiquíssimo hino “Phos hilaron” (Φῶς Ἱλαρόν), das Vésperas do Rito Bizantino: “Ó Luz jubilosa da glória santa...”.


Nesta mesma estrofe é indicado o motivo do louvor: o ilustre martírio (ínclito martýrio) dos Apóstolos Pedro e Paulo, que é, com efeito, o que celebramos na Solenidade do dia 29 de junho. A celebração dos santos é, em geral, a memória do seu dies natalis, do dia do seu nascimento para o céu.

Retornando ao 1º verso, que dá título ao hino, este atesta que “neste dia sagrado” do martírio dos Apóstolos (hac sacra die), o céu e a terra são ornados com “luz dourada e beleza rubra” (Aurea luce et decóre róseo).

A “luz dourada” remete ao caráter festivo deste dia, além de estar associada à luz do sol e, portanto, a Cristo (cf. Lc 1,78): a Mulher do Apocalipse, imagem da Igreja, aparece “vestida de sol” (Ap 12,1), isto é, revestida de Cristo, como os Apóstolos que hoje celebramos. Paulo, com efeito, nos exorta: “Revesti-vos do Senhor Jesus Cristo” (Rm 13,14; cf. Gl 3,27; Ef 4,24; Cl 3,10).

A “beleza rubra”, “púrpura”, vermelha, por sua vez, indica o sangue derramado pelos Apóstolos. Se seguirmos seus passos, configurando-nos cada vez mais a Cristo, o hino nos promete o perdão dos pecados (dat reis véniam). Como mais uma vez exorta Paulo: “Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo” (1Cor 11,1).

b) 2ª estrofe: Iánitor caeli

A 2ª estrofe prossegue cantando o martírio dos Apóstolos: Pedro é referido como “porteiro do céu” (iánitor caeli) - em alusão à promessa de Jesus: “Eu te darei as chaves do Reino dos Céus” (Mt 16,19) - e Paulo como “doutor do mundo” (doctor orbis), ou “doutor das nações” (cf. 1Tm 2,7; At 9,15), uma vez que anunciou o Evangelho a vários povos.

Pedro e Paulo sentados na assembleia dos santos
(Abadia de Marienborn, Alemanha)

O hino indica que aos dois é atribuída a mesma honra (páriter) como luzeiros e juízes deste mundo (iúdices saecli, vera mundi lúmina).

Jesus, com efeito, exorta seus seguidores a ser “luz do mundo” (Mt 5,14-16) e promete aos Apóstolos: “Vós, que me seguistes, havereis de sentar-vos em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel” (Mt 19,28; cf. Lc 22,30; 1Cor 6,2; Ap 2,26; 3,21).

Por seu testemunho de Cristo (a palavra grega martyria significa literalmente “testemunho”), ambos receberam “a coroa da justiça” (2Tm 4,8), foram recompensados com a participação no “senado da vida” (vitae senátum laureáti póssident), isto é, na assembleia dos santos no Reino dos Céus.

A 2ª estrofe recorda ainda a forma do martírio: “um pela cruz, o outro triunfando pela espada” (per crucem alter, alter ense triúmphans). De acordo com a tradição, Pedro teria sido crucificado na colina Vaticana e Paulo decapitado junto à via Ostiense durante a perseguição do Imperador Nero (†68) aos cristãos de Roma.

c) 3ª estrofe: O Roma felix

É a Roma, pois, que se dirige a 3ª estrofe que, como vimos, não pertence à composição original, sendo adaptada do hino “Felix per omnes festum”.

A estrofe celebra Roma como “bem-aventurada” (O Roma felix) não por seus próprios méritos, mas porque “manchada com o precioso sangue” dos “príncipes dos Apóstolos” (quae tantórum príncipum es purpuráta pretióso sánguine).

d) 4ª estrofe: Olívae binae

O texto do hino “Aurea luce” é retomado com a 4ª estrofe, “Olívae binae”. Como vimos, esta anteriormente era omitida, sendo resgatada durante a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II.

Pedro e Paulo são referidos aqui como “dupla oliveira”, unida na mesma piedade (Olívae binae pietátis únicae). Na Antiguidade, os vencedores eram coroados com ramos de oliveira; portanto, a metáfora vegetal reitera aqui sua vitória pelo martírio.

Pedro e Paulo recebem as coroas e as palmas do martírio

O ramo de oliveira como sinal do fim do dilúvio (Gn 8,11) indica a fidelidade de Deus à aliança, a proteção divina ao homem justo que n’Ele confia: “Eu, porém, como oliveira verdejante na casa do Senhor, confio na clemência do meu Deus agora e para sempre!” (Sl 51,10; cf. Jr 11,16).

O símbolo da “dupla oliveira”, porém, nos remete sobretudo à visão do Profeta Zacarias: “Estes são os dois ungidos com óleo que ladeiam o Dominador da terra” (Zc 4,14). No relato, as duas oliveiras, isto é, os dois ungidos, seriam o sacerdote Josué e o governador Zorobabel, promotores da reconstrução do Templo de Jerusalém (simbolizado pelo candelabro) após o retorno do exílio.

A imagem das “duas oliveiras” é retomada no Apocalipse, onde estão são associadas às duas testemunhas “que estão diante do Senhor” (Ap 11,4). As duas testemunhas foram tradicionalmente interpretadas como dois profetas (geralmente Moisés e Elias ou então Enoc e Elias).

Contudo, sobretudo no final da Idade Média, alguns teólogos as associaram a Pedro e Paulo, considerando sobretudo os vv. 6-8: as duas testemunhas têm o poder de “fechar o céu”, são mortas pela Besta e seus cadáveres permanecem na “Grande Cidade”.

Além do rico simbolismo da oliveira, a 4ª estrofe contém ainda uma súplica aos Apóstolos Pedro e Paulo: eles, que venceram a “morte da carne” (post mortem carnis), nos ajudem a viver devotos na fé, fortalecidos na esperança e repletos da caridade que brota deles como de uma dupla fonte (fide devótos, spe robústos máxime, fonte replétos caritátis géminae).

Na sua Primeira Carta aos Coríntios Paulo apresenta a fé, a esperança e a caridade, as três virtudes teologais, como as maiores de todas as virtudes (1Cor 13,13). O mesmo Apóstolo nos exorta a permanecermos “firmes na fé” (1Cor 16,13), “alegres na esperança” (Rm 12,12) e “solícitos na caridade” (cf. Cl 3,14).

A “dupla fonte” ou “dupla caridade”, além disso, parece indicar o “resumo da Lei” oferecido pelo Senhor: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo” (cf. Mt 22,37-39). Santo Inácio de Antioquia (†108), além disso, exortava a comunidade de Roma, sede dos Apóstolos, a ser aquela que presidia as demais “na caridade”, “no amor” [5].

e) 5ª estrofe: Sit Trinitáti

Por fim, como é costume nos hinos da LH, a última estrofe é uma doxologia (breve fórmula de louvor) dirigida à Santíssima Trindade.

A doxologia “Sit Trinitáti” é a mesma utilizada no hino “Iam bone pastor”, composto, como vimos, por duas estrofes do nosso hino. A tradução oficial para o português do Brasil, contudo, oferece aqui uma versão ligeiramente distinta, mais fiel ao texto original, o qual celebra a Unidade da Trindade e proclama sua autoridade que permanece eternamente.

São Pedro e São Paulo
(El Greco)

Notas:

[1] cf. Solenidade de São Pedro e São Paulo, Apóstolos (29 de junho), Missa da Vigília: Antífona de entrada. in: MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 607.

[2] cf. BREVIARIUM ROMANUM. Ex Decreto Sacrosancti Concilii Tridentini Restitutum. Pars aestiva. Tournai: Desclée, 1942, p. 676.
The Hymns of the Breviary and Missal: Decora lux aeternitatis. in: CatholicCornucopia.

[3] CATTOLICI ROMANI: Thesaurus Liturgiae: Inni della «Liturgia Horarum» - 2. Proprium de Sanctis & Communia.

[4] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, vol. III, p. 1387.

[5] cf. INÁCIO DE ANTIOQUIA. Carta aos Romanos, Saudação. in: Padres Apostólicos. São Paulo: Paulus, 1995, p. 103. Coleção: Patrística, vol. 1.

Referências

AROCENA, Félix. Los himnos de la Liturgia de las Horas. Madrid: Ediciones Palabra, 1992, pp. 242-243.

COMBA, Júlio. Hinos do Breviário Romano. São Paulo: Livraria Editora Salesiana, 1963, pp. 221-223.

Imagens: Wikimedia Commons.

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