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sexta-feira, 13 de agosto de 2021

A devoção às dores e às alegrias da Virgem Maria

“A alegria cristã vem daqueles lugares onde Alegria e Pesar são um só, reconciliados” (J. R. R. Tolkien) [1].

Em seu Ensaio Sobre Estórias de Fadas, John Ronald Reuel Tolkien (†1973), o célebre autor de O Hobbit e O Senhor dos Anéis, cria o termo “eucatástrofe”, isto é, a “boa catástrofe”, a “virada”, a graça repentina que, diante da tristeza e do fracasso, traz a alegria da libertação.

Tolkien afirma: “O Nascimento de Cristo é a eucatástrofe da história do Homem. A Ressurreição é a eucatástrofe da história da Encarnação. Essa história começa e termina em alegria” [2]. Com efeito, da kenosis, isto é, do esvaziamento do Deus que se fez homem na pobreza da manjedoura, brota a alegria da nossa salvação; da kenosis da Morte e da Sepultura de Cristo brota a alegria eterna da Ressurreição (cf. Fl 2,6-11).

Sete Dores de Nossa Senhora
(Adriaen Isenbrandt - século XVI)

Esse aparente paradoxo percorre toda a tradição cristã. Por exemplo, no mês de março de 2021 publicamos aqui em nosso blog uma postagem sobre a devoção às sete dores (ou sete angústias) e às sete alegrias de São José.

Nessa devoção, os mesmos acontecimentos da vida de Cristo são motivo tanto de dor (ou angústia) quanto de alegria para José. Como canta o célebre hino das Vésperas do dia 19 de março (Te, Joseph, célebrent), em sua participação nos mistérios de Cristo José “miscens gáudia flétibus”, mistura alegria e pranto.

Essa devoção, porém, deriva do culto às dores e alegrias de Maria, cuja origem remonta ao século XI. Nesta postagem, portanto, apresentaremos brevemente a participação da Mãe na eucatástrofe do Filho, isto é, no mistério das suas dores e alegrias.

“Uma espada transpassará tua alma” (Lc 2,35): História da devoção às Dores de Maria

O Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, promulgado pela Congregação para o Culto Divino em dezembro de 2001, destaca que, sobretudo durante a Quaresma e a Semana Santa, o “Cristo Crucificado” e a “Virgem das Dores” estão naturalmente associados, tanto na Liturgia quanto na devoção dos fiéis (cf. nn. 136-137.145) [3].

A devoção à Mater Dolorosa, como afirmamos acima, remonta ao final do século XI, quando os fiéis começam a centrar-se nas “cinco dores de Maria” (talvez em paralelo com as cinco Chagas de Cristo), representadas por cinco espadas em seu coração (em alusão à profecia de Simeão em Lc 2,35).

Com o tempo, porém, o número de “dores” contempladas passa de “cinco” a “sete”, símbolo da completude na tradição bíblica. Celebrar “sete dores” ou “sete alegrias” de Maria significa, pois, celebrar todas as suas dores e alegrias.

A Virgem Maria com cinco espadas, ao invés das sete tradicionais
(Absolon Stumme - século XV)

Embora a devoção às dores de Maria faça referência também a episódios da infância de Jesus, ela centra-se naturalmente na presença de Maria na Paixão do seu Filho. Portanto, essa devoção logo “ganhou” duas festas litúrgicas, ambas ligadas ao evento da cruz.

A primeira celebração em honra das dores de Maria remonta a um Sínodo Provincial da Arquidiocese de Colônia (Alemanha) que, em 1423, fixa a festa na sexta-feira da IV semana da Páscoa. Com o tempo a celebração espalhou na Alemanha e em outros países da Europa, sendo celebrada em diferentes datas.

Em 1727 o Papa Bento XIII estendeu a Festa das Sete Dores da Bem-aventurada Virgem Maria (Septem Dolorum Beatae Mariae Virginis) para toda a Igreja, a ser celebrada na sexta-feira da V semana da Quaresma, isto é, a sexta-feira antes do Domingo de Ramos.

Em 1233, sete religiosos fundam em Florença (Itália) a Ordem dos Servos de Maria (Ordo Servorum Beatae Virginis Mariae). Os servitas, como ficaram conhecidos, têm como sua principal devoção justamente a Addolorata, isto é, a Virgem das Dores.

Os Sete Santos Fundadores dos Servitas
(Memória facultativa: 17 de fevereiro)

Em 1668 essa Ordem conseguiu a permissão da Santa Sé para celebrar uma festa em honra das Dores de Maria no terceiro domingo de setembro, associada à Festa da Exaltação da Santa Cruz (14 de setembro).

O Papa Pio VII estendeu essa celebração para toda a Igreja em 1814. Em 1913, porém, o Papa Pio X, buscando recuperar a centralidade do domingo, a transferiu para o dia 15 de setembro.

A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II manteve a Memória obrigatória de Nossa Senhora das Dores (Beatae Mariae Virginis Perdolentis) no dia 15 de setembro. A 3ª edição típica do Missal Romano (ainda sem tradução para o Brasil), por sua vez, propõe uma oração do dia opcional em honra da participação da Virgem Maria no mistério da Paixão na sexta-feira da V semana da Quaresma.

“Alegra-te, cheia de graça!” (Lc 1,28): História da devoção às Alegrias de Maria

A devoção às “sete alegrias de Maria”, em paralelo às suas dores, foi promovida pela Ordem dos Frades Menores (franciscanos) a partir de 1422, através da “Coroa das Sete Alegrias de Nossa Senhora”, também conhecida como “Rosário Franciscano”.

Este rosário contempla mistérios ligados tanto à infância do Senhor quanto à sua Ressurreição, culminando no episódio da Assunção de Maria. Portanto, ao contrário das “sete dores” de Maria, suas “sete alegrias” nunca tiveram uma festa litúrgica própria.

"Rosário Franciscano" ou "Coroa das sete alegrias de Nossa Senhora"

A celebração das “alegrias” de Maria se distribui, pois, ao longo do Ano Litúrgico: sua participação na Encarnação com a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus (01 de janeiro); sua participação na Ressurreição com a Memória de Maria, Mãe da Igreja, instituída pelo Papa Francisco na segunda-feira após o Pentecostes; culminando na Solenidade da sua Assunção (15 de agosto) e na Memória da sua Coroação como Rainha do céu e da terra (22 de agosto).

A representação das sete alegrias de Maria na arte sacra também é incipiente, se comparada à representação da “Mater Dolorosa”. Além disso, como veremos adiante, algumas das “alegrias” de Maria podem variar conforme a tradição.

Cabe ressaltar ainda que, em 1495, uma edição dos poemas do franciscano Jacopone da Todi trazia duas sequências atribuída à sua autoria: o Stabat Mater Dolorosa (Estava a Mãe Dolorosa), contemplando a dor de Maria junto à cruz; e o Stabat Mater Speciosa (Estava a Mãe Graciosa), cantando sua alegria junto à manjedoura do Menino. Este último, porém, permaneceu esquecido por muitos séculos.

Adaptação do Stabat Mater Speciosa em polonês para um Oratório de Natal:


A lista das Dores e das Alegrias de Maria

Indicamos a seguir a lista das sete dores e das sete alegrias da Virgem Maria. Como afirmamos anteriormente, enquanto a primeira é mais fixa, a segunda pode variar.

Essa devoção pode estar recitada na forma de um “rosário”, com sete “mistérios”, como o “Rosário Franciscano”, ou, como indica o Diretório sobre Piedade Popular, na forma de uma Via Matris, isto é, um itinerário processional similar à popular Via Sacra (Via Crucis ou Via Lucis), com leituras, meditações e cantos ao longo das sete “estações”.

Porém, o mais importante sempre será a meditação dos relatos do Evangelho associados a cada mistério ou estação. Para os episódios não mencionados no Evangelho, por sua vez, podem tomar-se outros textos da Escritura, como sugerimos a seguir.

Além disso, para cada “mistério” ou “estação” pode ser tomada uma oração adequada da Coletânea de Missas de Nossa Senhora.

As sete dores de Maria

1. A profecia de Simeão (Lc 2,22-35)

2. A fuga para o Egito (Mt 2,13-15)

3. A perda do Menino Jesus no Templo (Lc 2,41-45)

4. O encontro de Maria e Jesus a caminho do Calvário (Lc 23,26-27; Lm 1,12)

5. Maria aos pés da Cruz (Jo 19,25-27)

6. Maria recebe o corpo de Jesus descido da Cruz (Jo 19,38-40)

7. Sepultamento de Jesus (Jo 19,41-42)

Sete Dores de Nossa Senhora
(Mestre anônimo do século XVI)

As sete alegrias de Maria

1. Anunciação (Lc 1,26-38)

2. Visitação (Lc 1,39-45)
(Quando não se lê o Magnificat na sétima alegria, convém incluí-lo aqui: Lc 1,39-55)

3. Nascimento de Jesus (Lc 2,1-14)

4. Adoração dos Magos (Mt 2,1-12)

5. Encontro do Menino Jesus no Templo (Lc 2,41-43.46-50)

6. Ressurreição de Jesus (Mt 28,1-10)

7. Assunção e Coroação de Maria como Rainha do Céu e da Terra (Lc 1,46-55 ou Ap 12,1-2.5-6a)

Algumas versões, omitindo algum dos mistérios anteriores (como a Visitação ou o Encontro do Menino Jesus no Templo) ou unindo o Nascimento de Jesus e a Adoração dos Magos, incluem:

Ascensão de Jesus (Mt 28,16-20 ou At 1,8-11)

Pentecostes (At 1,13-14; 2,1-4)

Pessoalmente (e esta é apenas a opinião do autor deste blog) creio que o mistério de Pentecostes nunca deve faltar, dada a clara referência das Escrituras à presença de Maria junto aos Apóstolos em oração (At 1,14).

Tríptico das Sete Dores e das Sete Alegrias
(Bernard van Orley - século XVI)

Notas:
[1] TOLKIEN, John Ronald Reuel. Carta 89: Para Christopher Tolkien. 07-08 de novembro de 1944. in: As Cartas de J. R. R. Tolkien. Curitiba: Arte e Letra, 2006, p. 101.

[2] idem. Sobre Estórias de Fadas. in: Árvore e Folha. Rio de Janeiro: Harper Collins Brasil, 2020, p. 78.

[3] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 120-121.126-127.

Fontes:

DONOVAN, Stephen. Franciscan Crown. The Catholic Encyclopedia, vol. 4, 1908. Disponível em: New Advent.

LODI, Enzo. Os Santos do Calendário Romano: Rezar com os Santos na Liturgia. São Paulo: Paulus, 1992, pp. 376-379.

HOLWECK, Frederick. Feasts of the Seven Sorrows of the Blessed Virgin Mary. The Catholic Encyclopedia, vol. 14, 1912. Disponível em: New Advent.

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