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segunda-feira, 2 de abril de 2012

A história da Missa da Ceia do Senhor

“Com a Missa celebrada nas horas vespertinas da Quinta-feira Santa, a Igreja dá início ao Tríduo Pascal e recorda a Última Ceia...” (cf. Carta Circular Paschalis Sollemnitatis, n. 44).

Na tradição hebraica, o dia começa na tarde da véspera (como vemos, por exemplo, no 1º relato da criação em Gn 1: “Houve uma tarde e uma manhã...”). Assim, na Liturgia cristã os domingos e solenidades começam sempre na tarde do dia anterior, com as chamadas I Vésperas.

Nesse sentido, a Quinta-feira da Semana Santa se encontra na “encruzilhada” entre a Quaresma e o Tríduo Pascal: até o pôr-do-sol estamos ainda o último dia da Quaresma; a partir pôr-do-sol, por sua vez, começa o Tríduo Pascal do Cristo Crucificado, Sepultado e Ressuscitado.

A Missa da noite da Quinta-feira Santa, portanto, chamada “in Coena Domini” (Missa da Ceia do Senhor), integra o 1º dia do Tríduo Pascal, o “dia do Crucificado”, que se estende do pôr-do-sol da Quinta ao pôr-do-sol da Sexta.

Última Ceia (Antoni Estruch)
Note-se que a sombra do Senhor prefigura a coroa de espinhos e, portanto, a Paixão

A integração da Missa da Ceia do Senhor no 1º dia do Tríduo é, pois, bem expressa a antífona de entrada: “A cruz de nosso Senhor Jesus Cristo deve ser a nossa glória: n’Ele está nossa vida e ressurreição...” (cf. Gl 6,14).

Na Última Ceia, com efeito, nosso Senhor antecipa sacramentalmente o sacrifício da cruz: “Este é o meu Corpo que será entregue... Este é o meu Sangue que será derramado...” (cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 606-611: “Toda a vida de Cristo é oblação”).

As origens da Missa da Ceia do Senhor na Quinta-feira Santa

Como vimos em nossa postagem sobre as estações quaresmais, nos primeiros séculos, sobretudo em Roma, não se celebrava a Eucaristia na quinta-feira, dia dedicado ao deus Júpiter.

A partir do século V, em contrapartida, encontramos três formulários de Missa para a Quinta-feira da Semana Santa:
- a Missa para a reconciliação dos penitentes (Pro reconciliatione paenitentium), celebrada pela manhã;
- a Missa para a bênção dos Santos Óleos (dos Enfermos, dos Catecúmenos e do Crisma) ou Missa Crismal (Missa Chrismalis) também pela manhã;
- e a Missa da Ceia do Senhor (in Coena Domini), celebrada no fim da tarde.

Nesta época a Missa da Ceia do Senhor não possuía a Liturgia da Palavra, começando diretamente com a Liturgia Eucarística, uma vez as outras duas celebrações já ocupavam grande parte do dia.

Com o tempo, porém, a penitência comunitária foi dando lugar à confissão individual, de modo que a Missa pela reconciliação dos penitentes caiu em desuso [1]. Além disso, os outros dois formulários desse dia acabaram fundindo-se em um só: a Missa da Ceia do Senhor, que, na Catedral, contava também com a bênção dos óleos.

Última Ceia (Giotto - Capela Scrovegni, Pádua)

Nesta Missa da Ceia do Senhor confluem vários mistérios, embora o Rito Romano tenha sempre destacado a dupla “traditio” (entrega): Jesus que entrega o sacramento da Eucaristia aos seus discípulos e Judas que entrega o Mestre aos seus captores.

A ênfase eucarística está presente nas orações, como a nova coleta: “Ó Pai, estamos reunidos para a santa ceia...” (Missal Romano, p. 247); e pelos textos próprios da Oração Eucarística I (Cânon Romano), como o Hanc ígitur (“Recebei, ó Pai...”) e inclusive narrativa da instituição (Qui, prídie...), com o eloquente “hódie”, “hoje”.

A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, além disso, propõe para essa Missa o Prefácio da Santíssima Eucaristia I, “Eucaristia, sacrifício e sacramento de Cristo” (Missal, p. 439). O Missale Romanum anterior indicava por sua vez o Prefácio da Santa Cruz, reforçando a integração dessa Missa no 1º dia do Tríduo Pascal, o “Dia do Cristo Crucificado” [2].

Além disso, como testemunha a peregrina Etéria (ou Egéria) já no século IV, a frequência à Comunhão nessa Missa sempre foi bastante significativa: “o Bispo oferece a oblação e todos comungam” [3].

Cabe recordar ainda as leituras: Ex 12,1-8.11-14, sobre a instituição da Páscoa judaica (perícope anteriormente lida na Sexta-feira Santa); Sl 115; e 1Cor 11,23-26, o mais antigo relato sobre a instituição da Eucaristia. O Evangelho, por sua vez, é dedicado ao Lava-pés: Jo 13,1-15.

Apesar do caráter festivo da celebração, marcado pelo uso dos paramentos brancos e pelo canto do Glória, acompanhado pelo toque dos sinos (que em seguida se calarão até o Glória da Vigília Pascal), também está presente a memória da traição de Judas: por exemplo, na tradicional omissão do beijo da paz nessa celebração, como que um “protesto” pelo beijo do traidor (Lc 26,47-48 e paralelos).

O beijo de Judas (Giotto - Capela Scrovegni, Pádua)

Dei-vos o exemplo...”: O Rito do Lava-pés

Algumas décadas após a peregrinação de Etéria, em meados do século V, surge a partir de Jerusalém o rito do Lava-Pés, também conhecido como Mandatum, uma vez que exprime o “mandamento novo do amor” (cf. Jo 13,34-35).

Este rito, que costumava ser realizado nos mosteiros e nas igrejas como gesto de acolhida e de caridade para com os irmãos [4], logo se difundiu pelas igrejas do Oriente e do Ocidente. Em algumas Igrejas o Lava-pés chegou inclusive a constar entre os ritos complementares do Batismo, como atestado, por exemplo, por Santo Ambrósio de Milão (†397) [5].

Em Roma, após a Missa na Basílica do Latrão, o Papa costumava lavar os pés de alguns pobres em sua residência junto à Catedral da urbe, os quais em seguida partilhavam uma refeição com o seu Bispo e dele recebiam uma esmola.

Tradicionalmente, com efeito, esse rito tinha lugar fora da Missa: após a celebração, como no Rito Hispano-Mozárabe (Espanha), ou mesmo antes dela, como no Rito Ambrosiano (Arquidiocese de Milão, Itália). A reforma da Semana Santa promovida pelo Papa Pio XII (†1958) em 1955, por sua vez, situa o Lava-pés após a homilia, como “eco” do Evangelho proclamado.

Com o Decreto In Missa in Cena Domini, de janeiro de 2016, a Congregação para o Culto Divino indica que o rito não seja restrito a homens, mas que sejam “pessoas escolhidas entre o povo de Deus”:

“Os pastores poderão escolher um pequeno grupo de fiéis que sejam representantes da variedade e da unidade de cada porção do povo de Deus. Tal grupo poderá ser constituído por homens e mulheres, e de modo conveniente, por jovens e idosos, pessoas sãs ou doentes, clero, consagrados ou leigos”.

Lava-pés (Giotto - Capela Scrovegni, Pádua)

Note-se que nem o Decreto nem os livros litúrgicos mencionam o número “doze”: com efeito, o Lava-pés não é uma “encenação” (mimese), mas sim “atualização” (anamnese) do mandamento do Senhor hoje (cf. Jo 13,12-15).

Nesse sentido, o Lava-pés era tradicionalmente acompanhado pelo canto do célebre hino Ubi caritas est vera (Onde o amor e a caridade), cuja melodia, segundo alguns estudiosos, remonta aos primeiros cristãos (atualmente esse hino é indicado para a procissão das oferendas da Missa da Ceia do Senhor).


Em memória de mim!”: A reposição do Santíssimo Sacramento

A Sexta-feira Santa sempre foi considerado um dia “alitúrgico”, isto é, um dia que não se celebra a Eucaristia. Assim, logo surge o costume de conservar as espécies consagradas na Missa da Ceia do Senhor para a Comunhão do dia seguinte.

Inicialmente a Eucaristia era conservada em uma caixa simples na sacristia e, como indica o Sacramentário Gelasiano (séc. VII-VIII), sob as duas espécies, do pão e do vinho. A partir do século XI, porém, se proíbe a conservação do vinho consagrado após a Missa.

A partir do século XII, com a crescente devoção ao Santíssimo Sacramento, as sagradas espécies conservam-se não na sacristia, mas sim em um altar preparado na nave da igreja: o altar da reposição.

Logo a própria transladação foi particularmente solenizada, com o uso de incenso, velas ou tochas e ao canto do hino Pange lingua gloriósi (Vamos todos louvar juntos), atribuído a Santo Tomás de Aquino (†1274), mais conhecido por suas duas últimas estrofes: Tantum ergo, Sacraméntum (Tão sublime, Sacramento).

Altar da reposição na Basílica do Santo Sepulcro
(Quinta-feira Santa de 2021)

A partir do final da Idade Média até a reforma da Semana Santa de 1955 apenas o sacerdote comungava na Sexta-feira Santa. Portanto, era conservada apenas uma hóstia no altar da reposição, depositada dentro do cálice coberto por um véu e atado com uma fita.

Atualmente, ao invés do cálice, se prevê o uso da âmbula. “Nunca se pode fazer a exposição com o ostensório” (Paschalis Sollemnitatis, n. 55).

Posteriormente, o altar da reposição foi entendido erroneamente em referência ao túmulo do Senhor, sendo chamado “monumentum” (sepulcro). Tal equívoco se deve à tradição das 40 horas de jejum que deviam ser feitas entre a Sexta-feira e o Sábado, recordando as “40 horas que Jesus ficou no sepulcro” [6].

Com a antecipação da Vigília Pascal para a manhã do Sábado Santo, o início do “jejum das 40 horas” também foi antecipado, começando já na Quinta-feira Santa, o que levou à confusão do altar da reposição com o sepulcro do Senhor. Este era então ornado com símbolos fúnebres e contava até mesmo com uma “guarda”.

A Carta Circular Paschalis Sollemnitatis indica que “o tabernáculo não deve ter a forma de um sepulcro. Evite-se o termo sepulcro (monumentum): com efeito, a capela da reposição é preparada não para representar a sepultura do Senhor, mas para conservar o pão eucarístico para a Comunhão, que será distribuída na Sexta-feira da Paixão do Senhor” (n. 55).

Com efeito, a “vigília eucarística” entre a noite da Quinta-feira Santa e o início da tarde da Sexta-feira Santa não um “velório”, nem tampouco uma adoração solene, mas sim a “resposta da Igreja” à exortação dirigida pelo Senhor aos Apóstolos no Horto das Oliveiras: “Vigiai e orai” (Mt 26,38.40-41 e paralelos). O Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia (n. 141) fala de “austera solenidade” [7].

"Vigiai e orai" (Duccio - Maestà di Siena)

Essa vigília prolongada é atestada já pela peregrina Etéria no século IV em Jerusalém: a partir da “primeira hora da noite” (19h) todos se reúnem no Monte das Oliveiras, na gruta onde, segundo a tradição, o Senhor costumava rezar com os Apóstolos.

Até às 23h “dizem-se continuamente hinos e antífonas apropriados ao dia e ao lugar, e também se fazem leituras, intercalando orações; leem-se também os passos do Evangelho em que o Senhor falou aos discípulos no dia em que ficou sentado naquela gruta”, isto é, o “discurso de despedida” e a “oração sacerdotal” (Jo 13–17), que a tradição de Jerusalém situava não no Cenáculo, mas no próprio Monte das Oliveiras.

À vigília estendia-se para além da meia-noite, com a leitura dos Evangelhos da agonia do Senhor e da sua prisão, enquanto o povo caminhava processionalmente, à luz de velas, desde o alto do Monte das Oliveiras até retornar à cidade.

A celebração concluía-se pouco antes do nascer do sol da Sexta-feira, na Basílica do Santo Sepulcro, onde o Bispo abençoava os fiéis e os elogiava por sua perseverança, tendo permanecido a noite toda em vigília [8].

Atualmente, a “Hora Santa” celebrada na noite da Quinta-feira Santa no Getsêmani (Vigilantes cum Christo in Hortu Gethsemani) recorda três mistérios: o anúncio da negação de Pedro, a agonia de Jesus e a prisão do Senhor.

Gruta dos Apóstolos no Monte das Oliveiras (Jerusalém)

Eles repartem entre si as minhas vestes”: O rito da desnudação dos altares

Além da transladação do Santíssimo Sacramento e da “vigília eucarística” se indica para o final da Missa in Coena Domini o rito da desnudação dos altares.

No início da Igreja a toalha do altar era retirada após cada celebração. Logo, porém, a toalha passou a permanecer sempre sobre o altar, sendo removida apenas nos dias em que é proibida a celebração da Eucaristia (Sexta-feira e Sábado Santos) ou se porventura a igreja for profanada.

A desnudação dos altares na Quinta-feira Santa implica a remoção da toalha, das flores, dos castiçais com velas e da cruz. Além de ser um “jejum dos olhos”, esse gesto remete ao despojamento do Senhor em sua Paixão, à luz do Sl 21 (22), que era recitado durante esse rito (atualmente executado em um eloquente silêncio).

No Rito Hispano-Mozárabe esse rito é particularmente solene, com o canto do Sl 108 (109) intercalado por versículos do Evangelho, o progressivo apagar de 12 velas (simbolizando o abandono dos Apóstolos), a prostração diante do altar... No Rito Ambrosiano, por sua vez, a desnudação do altar tem lugar na Celebração da Paixão do Senhor, ao anúncio da Morte do Senhor.

Na Idade Média, após a remoção da toalha e dos demais elementos, o altar era lavado com vinho e água. Inicialmente um gesto prático (lavar o altar para a celebração da grande solenidade da Páscoa), logo foi interpretado como “homenagem fúnebre” a Cristo e em alusão ao sangue e água que jorraram do seu lado aberto (Jo 19,34).

Rosas vermelhas sobre a Pedra da Agonia na Basílica do Getsêmani
(Quinta-feira Santa de 2021)

Notas:

[1] Não obstante, a Carta Circular Paschalis Sollemnitatis, promulgada pela Congregação para o Culto Divino em 1988, recomenda concluir o Tempo da Quaresma com uma Celebração Penitencial, que também prepare os fiéis para uma celebração mais intensa do Tríduo Pascal (n. 37).

[2] Os grandes historiadores da Liturgia, como o abade Mario Righetti (†1975) e o Cardeal Alfredo Ildefonso Schuster (†1954) lamentam que o Missale Romanum do Concílio de Trento não tenha conservado o antigo Prefácio próprio dessa Missa, atestado nos Sacramentários Gelasiano (séc. VII-VIII) e Gregoriano (séc. VIII).
Este Prefácio cantava a condescendência do Senhor ao instituir o sacramento da Eucaristia, memorial perpétuo da sua presença entre nós (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 06), ao mesmo tempo em que lamentava a traição de Judas.

[3] ETÉRIA. Peregrinação ou Diário de Viagem (Itinerarium ad loca sancta), n. 35; in: CORDEIRO, José de Leão [org.]. Antologia Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio. Secretariado Nacional de Liturgia: Fatima, 2003, p. 455.

[4] Como indica, por exemplo, a Regra de São Bento (séc. VI) em seu capítulo 53: “Da recepção dos hóspedes”.

[5] cf. AMBRÓSIO DE MILÃO. Os Sacramentos (De Sacramentiis), III, 4-5. in: CORDEIRO, op. cit., pp. 522-523.

[6] O número 40 é simbólico, sendo recorrente na Sagrada Escritura: 40 dias do dilúvio, 40 anos da peregrinação de Israel no deserto, 40 dias de jejum de Jesus no deserto...

[7] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 124.

[8] ETÉRIA. Peregrinação ou Diário de Viagem, nn. 35-36; in: CORDEIRO, op. cit., pp. 455-457.

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 44-48.

AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 143-146.164-166.

BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: O ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, pp. 306-307.315-327.

CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Paschalis Sollemnitatis: A preparação e celebração das festas pascais. Brasília: Edições CNBB, 2018. Coleção: Documentos da Igreja, n. 38.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 785-802.

SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; vol. III: Il Testamento Nuovo nel Sangue del Redentore (La Sacra Liturgia dalla Settuagesima a Pasqua). Torino-Roma: Marietti, 1933, pp. 11-18.206-212.

Postagem publicada originalmente em 02 de abril de 2012. Revista e ampliada em 04 de março de 2022.

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