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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Os sete salmos penitenciais

Tende piedade, ó meu Deus, misericórdia!” (Sl 50,3).

O Tempo da Quaresma, como recorda a Constituição Sacrosanctum Concilium (n. 109), possui uma dupla característica: batismal e penitencial. Sobretudo à luz desta última, esse tempo é particularmente adequado para a recitação dos sete salmos penitenciais (septem psalmi paenitentiales ou poenitentiales).

Davi em oração (Pieter de Grebber)

1. A origem dos sete salmos penitenciais

Ao percorrermos os 150 cânticos que integram o Livro dos Salmos (Sl), encontramos diversos gêneros literários: louvor, ação de graças, súplica, textos sapienciais... Dentre os salmos de súplica, a Igreja selecionou sete para expressar de maneira particular o arrependimento dos pecados, o pedido de perdão a Deus, com a confiança na sua misericórdia, e o propósito de conversão: Sl 6, 31(32), 37(38), 50(51), 101(102), 129(130) e 142(143).

A tradição dos “salmos penitenciais” remonta ao menos ao século V. Na biografia de Santo Agostinho (†430) escrita por seu discípulo Possídio (Vita Sancti Augustini), se menciona que esse, antes de morrer, “mandou copiar para si os salmos de Davi chamados penitenciais” [1].

O texto, porém, não diz quais seriam esses salmos nem o seu número. Certamente dentre esses estava o Salmo 50 (Miserere), que desde o início da Igreja foi considerado o “salmo penitencial” por excelência, associado ao pedido de perdão do rei Davi após o seu pecado e a repreensão do profeta Natã (cf. 2Sm 11,1–12,9).

Posteriormente ganharia destaque também o Salmo 129 (De profundis), associado tanto a ritos penitenciais quanto aos ofícios pelos defuntos.

De toda forma, o primeiro a propor a lista dos sete salmos penitenciais como a conhecemos parece ter sido o célebre escritor romano Cassiodoro (580). Em sua Exposição sobre o Saltério (Expositio in Psalterium), ao tratar do Salmo 6, exorta o leitor a lembrar que este é “o primeiro salmo ‘dos penitentes’” (“Memento autem quod hic poenitentium primus est psalmus”), elencando em seguida os outros seis [2].

A exortação a “lembrar” dá a entender que a lista já era conhecida nessa época (século VI). O autor ainda interpreta o número “sete” em alusão às diversas formas pelas quais obter o perdão dos pecados: pelo Batismo, o martírio, as obras de caridade, etc.

A fixação dos “sete salmos”, com efeito, certamente está relacionada ao amplo simbolismo que esse número possui na tradição judaico-cristã, representando a “plenitude”: sete dias da semana, sete dons do Espírito Santo, sete sacramentos... [3].

Cassiodoro (†580) na biblioteca do seu mosteiro, chamado Vivarium
(Miniatura do século VIII)

2. Os sete salmos penitenciais na Liturgia

Ao longo da Idade Média, a recitação dos salmos penitenciais foi ganhando cada vez mais espaço na Liturgia de Rito Romano. Em diversas celebrações, com efeito, esses eram recitados na sequência, às vezes acompanhados da Ladainha de Todos os Santos, além de antífonas, responsórios e orações:

- Nas Laudes (oração da manhã da Liturgia das Horas ou Ofício Divino) dos dias de semana da Quaresma. Tal costume é atestado ao menos desde o tempo do Papa Inocêncio III (†1216). Com a reforma do Breviário sob São Pio V (†1572), porém, essa oração ficou restrita às sextas-feiras, sendo abolida por São Pio X (†1914).

- No rito de admissão dos penitentes à penitência pública, inicialmente celebrado na segunda-feira da I semana da Quaresma e posteriormente na Quarta-feira de Cinzas. Após receberem as cinzas (gesto que depois seria estendido a todos os fiéis), os penitentes se prostravam enquanto todos recitavam ou cantavam os sete salmos.

- Nas procissões dasestações quaresmais”. Sobretudo em Roma, durante a Quaresma (principalmente nas quartas, sextas e sábados) se celebrava a Missa nas principais igrejas da cidade, precedida de uma procissão penitencial ao canto da Ladainha de Todos os Santos e dos salmos penitenciais.

- Em outras procissões penitenciais, como aquelas realizadas nas Rogações.

- Antes da dedicação de igreja ou altar. O Bispo e os demais clérigos recitavam privadamente os sete salmos antes da Missa, preparando-se para esse importante rito.

- Na bênção de um novo cemitério. A recitação dos sete salmos era distribuída ao longo do rito.

- No rito solene da excomunhão, quando o fiel que havia sido excomungado desejava reconciliar-se com a Igreja.

- Após a primeira tonsura e na recepção das Ordens Menores (Ostiário, Leitor, Exorcista e Acólito). No final da Missa, o Bispo exortava aqueles que haviam recebido a tonsura ou uma das Ordens Menores a rezar os sete salmos privadamente.

Salmo 6, primeiro dos sete salmos penitenciais
(Livro de orações do século XV)

Vale dizer ainda que através da Bula Supremi omnipotentis Dei, de 11 de março de 1572, o Papa São Pio V concedeu uma indulgência parcial a quem recitasse os sete salmos penitenciais.

Entre o final da Idade Média e o início da Idade Moderna, com efeito, esses sete salmos costumavam ser impressos nos livros de orações, unidos inclusive a uma espécie de “oferecimento”:
Suscipere digneris, omnipotens Deus, hos septem psalmos consecratos, quos ego indigno et peccator decantavi in ​​honore Nominis tui... - Dignai-vos receber, ó Deus onipotente, esses sete salmos consagrados que eu, indigno e pecador, entoei em honra do vosso Nome... [4].

Dentre as interpretações musicais, por sua vez, vale destacar aquela de Orlando di Lasso (†1594), Psalmi Davidis poenitentiales.


Atualmente não se prevê a recitação dos sete salmos penitenciais em conjunto na Liturgia romana. Não obstante, esses aparecem individualmente em diversas ocasiões: na Liturgia das Horas, na Missa, nos demais sacramentos, nos sacramentais.

Ademais, permanece válida a indulgência para o fiel que recitar os sete salmos em sua oração privada (sobretudo em preparação para a Confissão sacramental), ou mesmo em uma celebração comunitária fora da Missa (por exemplo, em uma celebração penitencial ou procissão, especialmente na Quaresma) [5].

3. Sete salmos para sete igrejas (e sete pecados)

Uma vez mencionada a concessão da indulgência em 1571, vale destacar ainda outro lugar onde eram recitados os sete salmos penitenciais: durante a peregrinação às sete igrejas (Giro delle Sette Chiese) em Roma.

Certamente inspirada nas antigas “estações quaresmais” e no rico simbolismo do número “sete”, como vimos anteriormente, incluindo aqui a referência às “sete igrejas do Apocalipse” (Ap 2–3), essa peregrinação foi promovida por São Filipe Néri (†1595), envolvendo as quatro Basílicas maiores e outras três importantes igrejas da cidade de Roma: São João do Latrão, São Pedro no Vaticano, São Paulo fora-dos-muros, Santa Maria Maior, São Lourenço fora-dos-muros, São Sebastião fora-dos-muros e Santa Cruz “em Jerusalém”.

Peregrinação às sete igrejas de Roma
(Gravura realizada para o Jubileu de 1575)

A peregrinação às sete igrejas era particularmente solene durante os Jubileus, quando eram abertas as “Portas Santas” das quatro Basílicas Maiores, sobretudo a parit do Jubileu de 1575. Não obstante, a Congregação do Oratório, fundada por São Filipe Néri, continuou promovendo-a mesmo fora dos Anos Santos, especialmente na Quaresma.

Durante essa peregrinação, os fiéis rezavam os sete salmos penitenciais, pedindo perdão pelos sete pecados capitais, suplicando as virtudes que ajudavam a combatê-los, e invocando os sete dons do Espírito Santo.

A “lista” dos sete pecados capitais (gula, luxúria, avareza, preguiça, ira, inveja e orgulho) foi formulada pelo Papa São Gregório Magno (†604) em seus comentários morais sobre o Livro de Jó (Moralia in Job), a partir das reflexões de outros Padres da Igreja, como Evágrio Pôntico (†399) [6].

Retomada por Santo Tomás de Aquino (†1274), a lista seria popularizada, por exemplo, por Dante Alighieri (†1321) em sua Divina Comédia.

A associação do pecado com o número “sete”, o número da plenitude, nos recorda que o mal também pode assumir a aparência do bem para nos enganar, como no caso do “Dragão” do Livro do Apocalipse, símbolo de Satanás, que possui “sete cabeças” e “sete coroas” (Ap 12,3).

A oração dos sete salmos penitenciais para combater os sete pecados capitais, independentemente da peregrinação às sete igrejas, seria sistematizada no século XVII pelo sacerdote jesuíta alemão Wilhelm Nakatenus (†1682), em seu Coeleste Palmetum (“Jardim de palmeiras celestial”), um popular livro de orações.

Os sete pecados capitais e os quatro "novíssimos"
(Hieronymus Bosch)

Septem psalmi poenitentiales cum orationibus contra septem vitia capitalia:
Psalmus VI (Domine ne in furore tuo arguas me): Oratio contra superbiam;
Psalmus XXXI (Beati quorum remissae sunt iniquitates): Oratio contra avaritiam;
Psalmus XXXVII (Domine ne in furore tuo arguas me): Oratio contra iram;
Psalmus L (Miserere mei, Deus): Oratio contra luxuriam;
Psalmus CI (Domine, exaudi orationem meam): Oratio contra gulam;
Psalmus CXXIX (De profundis clamavi ad te, Domine): Oratio contra invidiam;
Psalmus CXLII (Domine, exaudi orationem meam): Oratio contra acediam [7].

Salmo 6 (Repreendei-me, Senhor, mas sem ira): Oração contra a soberba;
Salmo 31 (Feliz o homem que foi perdoado): Oração contra a avareza;
Salmo 37 (Repreendei-me, Senhor, mas sem ira): Oração contra a ira;
Salmo 50 (Tende piedade, ó meu Deus): Oração contra a luxúria;
Salmo 101 (Ouvi, Senhor, e escutai minha oração): Oração contra a gula;
Salmo 129 (Das profundezas eu clamo a vós, Senhor): Oração contra a inveja;
Salmo 142 (Ó Senhor, escutai minha prece): Oração contra a acídia (preguiça) [8].

No início e no final dos salmos e orações é indicada a antífona Ne reminiscaris Domine, a mesma que era prevista na recitação dos sete salmos penitenciais na Liturgia, inspirada em um trecho do Livro de Tobias (Tb 3,3-4):
Ne reminiscaris, Domine, delicta nostra, vel parentum nostrorum: neque vindictam sumas de peccatis nostris - Não recordeis, Senhor, os nossos delitos, ou os de nossos pais: nem tomeis vingança por nossos pecados.

Também as orações propostas no Coeleste Palmetum possuem várias reminiscências bíblicas. Contudo, refletindo a espiritualidade própria da época (devotio moderna), caracterizam-se por um excessivo individualismo, sentimentalismo e por uma visão bastante negativa da pessoa humana.

Portanto, tais orações são mais indicadas para a oração pessoal, sendo pouco adequadas para a celebração litúrgica, que possui um caráter eminentemente comunitário, além de uma visão mais equilibrada da pessoa humana e da relação entre razão e sentimentos.

Assim, aqueles que desejam recitar os sete salmos penitenciais para combater os sete pecados capitais, sobretudo durante a Quaresma ou no contexto do iminente Jubileu Ordinário de 2025, podem fazê-lo preferencialmente rezando a versão dos salmos aprovada para a Liturgia das Horas (incluindo as antífonas próprias no início e no final de cada salmo) [9], seguidos por orações adequadas, sobretudo as do Tempo da Quaresma ou do Ritual da Penitência.

Tampouco é necessário seguir a ordem dos pecados elencada acima. Após cada salmo, ao invés da oração, também é possível propor a leitura de textos bíblicos adequados, exortando contra o pecado.

“Assisti, ó Deus, aqueles que vos suplicam, e guardai com solicitude os que esperam em vossa misericórdia, para que, libertos dos nossos pecados, levemos uma vida santa e sejamos herdeiros das vossas promessas. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo. Amém”.
(Coleta da quinta-feira da V semana da Quaresma; Missal Romano, 2ª edição, p. 217).

Procissão penitencial em Roma
(Quarta-feira de Cinzas, 2020)

Notas:

[1] POSSÍDIO. Vida de Santo Agostinho, 31. in: CORDEIRO, José de Leão (org.). Antologia Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio. Secretariado Nacional de Liturgia: Fatima, 2003, p. 994.

[2] CASSIODORUS. Expositio in Psalterium, Psalmum VI. in: MIGNE, J. P. Patrologiae: Cursus Completus, Series Latina, 1865, vol. 70, p. 60.

[3] Sobre o simbolismo bíblico e teológico do número “sete”, confira:
HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos Símbolos: Imagens e sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994, pp. 344-345.
LÉON-DUFOUR, Xavier et al. Vocabulário de Teologia Bíblica. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, pp. 672-674.
LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993, pp. 227-228.

[4] cf. DIPIPPO, Gregory. The Penitential Psalms in the Liturgy of Lent. 03 de março de 2023. Disponível em: New Liturgical Movement.

[5] cf. INDULGÊNCIAS: Orientações litúrgico-pastorais. São Paulo: Paulus, 2005, p. 51.

[6] Para saber mais, confira: VOST, Kevin. Os sete pecados capitais: Um guia tomista para derrotar o vício e o pecado. Campinas: Ecclesiae, 2019.

[7] NAKATENUS, Wilhelm. Coeleste Palmetum. 7ª edição, 1879, pp. 343-350. Disponível também em: Preces latinae.

[8] Disponível no site do Padre Paulo Ricardo de Azevedo Júnior.

[9] Salmo 6: Ofício das Leituras da segunda-feira da I semana do Saltério;
Salmo 31(32): Vésperas da quinta-feira da I semana;
Salmo 37(38): Ofício das Leituras da sexta-feira da II semana;
Salmo 50(51): Laudes das sextas-feiras;
Salmo 101(102): Ofício das Leituras da terça-feira da IV semana;
Salmo 129(130): I Vésperas do domingo da IV semana e Completas das quartas-feiras;
Salmo 142(143): Laudes da quinta-feira da IV semana e Completas das terças-feiras.

Confira também as Catequeses sobre os salmos e cânticos das Laudes e Vésperas da Liturgia das Horas, nas quais os Papas São João Paulo II (†2005) e Bento XVI (†2022) comentam alguns dos salmos penitenciais.

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