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quarta-feira, 29 de junho de 2022

História do culto aos Santos Protomártires da Igreja de Roma

“Esses são os que vieram da grande tribulação: lavaram e alvejaram as suas vestes no sangue do Cordeiro” (Ap 7,14).

A Solenidade de São Pedro e São Paulo, Apóstolos (29 de junho) é seguida pela Memória dos Santos Protomártires da Igreja Romana, no dia 30 de junho, cuja história gostaríamos de traçar nesta postagem.

"O triunfo da fé" (Eugène Romain Thirion)

1. Quem são os Protomártires da Igreja de Roma?

A palavra mártir (μάρτυς) significa “testemunha” em grego. Na tradição cristã, este termo é aplicado àqueles que testemunharam a sua fé usque ad effusionem sanguinis (até a efusão do sangue), preferindo morrer a renegar a Cristo durante as perseguições.

O prefixo πρότος, por sua vez, significa “primeiro”. O “Protomártir” por excelência é o próprio Cristo, a “Testemunha fiel, o Primogênito dos mortos” (Ap 1,5), que ofereceu o sacrifício da sua vida para a nossa salvação.

Dentre os discípulos de Cristo, por sua vez, o “protomártir” é o diácono Santo Estêvão (At 6–7), cuja festa celebramos no dia 26 de dezembro [1].

Os Protomártires da Igreja de Roma são os primeiros cristãos que foram martirizados nessa cidade, entre os anos 64 e 68, durante a perseguição do Imperador Nero (†68), após o grande incêndio que teve início na noite de 18 de julho de 64 e se prolongou por dias, destruindo boa parte da urbe.

Uma vez que o Imperador aproveitou a destruição de alguns edifícios para construir um grande palácio para si, a Domus Aurea (Casa dourada), a população romana logo o acusou de ter provocado o incêndio. Segundo o testemunho do historiador romano Tácito (†117-120), a fim de se livrar de tais acusações, Nero utilizou os cristãos como “bode expiatório”, jogando sobre eles a culpa do incêndio.

Grande Incêndio de Roma (Hubert Robert)

Por que os cristãos?

O próprio Tácito define o Cristianismo como “superstição perniciosa”, indicando que os cristãos eram “detestados pelos cidadãos romanos por suas abominações”.

É importante recordar que os romanos eram muito religiosos, considerando qualquer calamidade como castigo dos deuses, cuja ira devia ser aplacada com sacrifícios expiatórios.

Os cristãos, assim como os judeus, consideravam que prestar culto aos deuses romanos - incluindo a cidade de Roma divinizada (dea Roma) e, posteriormente, o próprio Imperador - era idolatria, uma violação ao primeiro mandamento: “Eu sou o Senhor teu Deus... Não terás outros deuses além de mim” (Ex 20,1-6; Dt 5,6-10; Mt 4,10; cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 2084-2141).

Assim, uma vez que os cristãos se negavam a cultuar os deuses (por exemplo, recusando-se a oferecer incenso diante de suas imagens), os romanos os acusavam de impiedade, sacrilégio e ateísmo, considerando que as calamidades infligidas sobre a cidade eram o castigo divino por violarem a pax deorum (paz com os deuses).

A perseguição de Nero

Apesar de considerar o Cristianismo uma “superstição perniciosa”, como vimos, Tácito faz notar o excesso de crueldade com o qual os seguidores de Cristo foram perseguidos:

“Nero culpou e castigou, com supremos refinamentos da crueldade, uma casta de homens detestados por suas abominações e vulgarmente chamados cristãos. (...) uma vez condenados a morrer, sua morte devia servir de distração, de sorte que alguns, costurados em peles de animais, expiravam despedaçados por cães, outros morriam crucificados, outros foram transformados em tochas vivas para iluminar a noite. Nero, para estes festejos, abriu de par em par seus jardins, organizando espetáculos circenses em que ele mesmo aparecia misturado com o populacho ou, vestido de cocheiro, conduzia sua carruagem. Suscitou-se assim um sentimento de comiseração até para com homens cujos delitos mereciam castigos exemplares, tanto mais quanto se pressentia que eram sacrificados não para o bem público, mas para satisfação da crueldade de um indivíduo” [2].

"As tochas de Nero" (Henryk Siemiradzki)

Também o Papa São Clemente I (†97-100) menciona a perseguição em sua Carta aos Coríntios, apontando como exemplos de fidelidade “da nossa geração” os Apóstolos Pedro e Paulo e a “imensa multidão de eleitos que sofreram muitos ultrajes e torturas, e se tornaram entre nós belíssimo exemplo” [3].

Uma vez que boa parte dos primeiros cristãos eram estrangeiros ou escravos, estes eram punidos com as mortes mais vis, como testemunha Tácito: crucificação (damnatio in crucem), exposição à fogueira (damnatio ad flammas) e aos animais selvagens (damnatio ad bestias). Os cidadãos romanos, em contrapartida, geralmente eram executados por decapitação (ad gladium).

Isso se verifica no martírio dos Apóstolos: segundo a tradição, Pedro, sendo estrangeiro, teria sido crucificado no circo de Nero, próximo à colina do Vaticano, enquanto Paulo, como cidadão romano, fora decapitado junto à via Ostiense.

Uma vez que o Circo Máximo, principal arena da cidade, havia sido danificado pelo incêndio, Nero teria “aberto seus jardins” para a execução dos “criminosos”, como indica Tácito. O “Circo de Nero” (Circus Neronis), com efeito, cuja construção havia sido iniciada por Calígula (†41), situava-se nos terrenos privados do Imperador.

O circo romano, do latim “circulus”, era uma grande arena em forma de elipse, destinada sobretudo às corridas de carruagens (ludi circenses). Por isso Tácito indica que o Imperador tomou parte da execução dos cristãos “conduzindo sua carruagem”. Não obstante, tanto o Circo de Nero quanto o Circo Máximo acolhiam também outros espetáculos, incluindo, no caso, a execução de prisioneiros.

"Circus Neronis" (Pietro Santi Bartoli)

Confira nossa postagem sobre a história do Coliseu (Anfiteatro Flaviano) e sua relação com o Cristianismo clicando aqui.

Vale recordar, por fim, que a perseguição aos primeiros cristãos após o incêndio de Roma foi a inspiração para o romance “Quo vadis?”, do escritor polonês Henryk Sienkiewicz (†1916), que lhe rendeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1905. A obra foi adaptada diversas vezes para o cinema, sendo a versão mais famosa a de 1951.

2. O culto aos Protomártires da Igreja de Roma

Nos séculos seguintes, os cristãos da “Cidade Eterna” cultivaram o culto ao “luminoso exército dos santos Mártires” (Te Deum) sepultados nos diversos cemitérios e catacumbas da Urbe.

Não conhecemos os nomes ou o número exato dos Protomártires da Igreja Romana: Tácito e São Clemente falam simplesmente de uma “grande multidão” (multitudo ingens). Edições do Martirológio Jeronimiano (Martyrologium Hieronymianum) do século VIII, indicam que seriam 979 mártires (número certamente hipotético e exagerado), os quais eram comemorados no dia 29 de junho, junto aos Apóstolos Pedro e Paulo.

A partir da edição do Martirológio Romano (Martyrologium Romanum) de 1584, promulgada pelo Papa Gregório XIII (†1585), por sua vez, a comemoração dos Sancti Protomartyres Romani passou para o dia 24 de junho, qualificados como “muitos santos Mártires” (“sanctorum plurimorum Martyrum”). Contudo, uma vez que no dia 24 de junho se celebra a Solenidade da Natividade de São João Batista, sua comemoração limitava-se à leitura do Martirológio.

"A última prece dos mártires cristãos" (Jean-Léon Gérôme):
A obra retrata o martírio dos cristãos no Circo Máximo

O culto aos Protomártires Romanos receberia um maior impulso apenas a partir do final do século XIX, com o desenvolvimento da Arqueologia sacra, tendo como um dos seus “pioneiros” o grande arqueólogo romano Giovanni Battista de Rossi (†1894).

Nesse período, com efeito, foram instituídos diversos organismos da Santa Sé relacionados ao tema: a Academia Romana de Arqueologia (1816), a Comissão de Arqueologia Sacra (1852), o Instituto de Arqueologia Cristã (1925)...

Em relação aos Protomártires Romanos, destaca-se a Pontifícia Academia Cultorum Martyrum, fundada em 1879 como “Collegium Cultorum Martyrum” por quatro estudiosos das “antiguidades cristãs”: Mariano Armellini (†1896), Orazio Marucchi (†1931), Adolfo Hytreck (†1899) e Enrico Stevenson (†1898). Destaca-se também a contribuição do Monsenhor Carlo Respighi (†1947).

O Collegium foi elevado a “Pontifícia Academia” em 1995, pelo Papa João Paulo II (†2005), vinculado ao Pontifício Conselho para a Cultura, tendo como escopo zelar pelo culto dos mártires romanos.

A sede histórica do Collegium é a igreja de Santa Maria della Pietà in Camposanto dei Teutonici. Construída no final do século XV junto ao Campo Santo Teutônico, um cemitério para peregrinos alemães, esta situa-se ao sul da Basílica de São Pedro, sobre o local do antigo Circo de Nero, justamente onde foram martirizados os Protomártires Romanos.

Complexo do Campo Santo Teutônico visto da Basílica de São Pedro
Interior da igreja de Santa Maria della Pietà

Assim, como testemunha o Beato Cardeal Alfredo Ildefonso Schuster (†1954) em seu Liber Sacramentorum, a partir de 1923 o Collegium começou a promover nessa igreja a celebração dos Protomártires no primeiro dia livre antes da Solenidade de São Pedro e São Paulo: 27 de junho [4].

Nesse dia celebrava-se a Missa na igreja de Santa Maria della Pietà ao pôr-do-sol, seguida de uma procissão luminosa, ao canto de salmos, até o célebre Obelisco Vaticano.

Este obelisco, trazido do Egito por Calígula, decorava a “espinha” (spina) do Circo de Nero, a linha no centro da arena que era circundada nas corridas. Após a destruição do Circo, o obelisco permaneceu em seu lugar, até ser transladado para a Praça de São Pedro em 1586.

Obelisco Vaticano (Praça de São Pedro)

Na base do obelisco de granito, encimado por uma cruz de bronze, foram gravadas inscrições em latim que, como nota Schuster, são perfeitamente adequadas à celebração dos Santos Mártires:

Ecce Crux Domini, fugite partes adversae, vicit Leo de Tribu Iuda.
Christus vincit, Christus regnat, Christus imperat; ab omni malo plebem suam defendat.

Eis a cruz do Senhor, fugi forças inimigas, venceu o Leão da Tribo de Judá.
Cristo vence, Cristo reina, Cristo impera; que Ele defenda seu povo contra todo mal.


3. A Memória dos Santos Protomártires da Igreja de Roma

A reforma do Calendário Romano Geral realizada após o Concílio Vaticano II suprimiu diversas celebrações de santos que careciam de fundamentação histórica. Assim, com a promulgação do novo Calendário em 1969, foi instituída para toda a Igreja de Rito Romano a Memória facultativa dos Santos Protomártires da Igreja de Roma no dia 30 de junho [5].

Nesse dia, a Pontifícia Academia Cultorum Martyrum conserva a tradição da Missa na igreja de Santa Maria della Pietà e da procissão.

Os textos próprios da Memória incluem a oração do dia (coleta), a 2ª leitura do Ofício das Leituras (um trecho da Carta aos Coríntios de São Clemente) e antífonas para o cântico evangélico das Laudes e Vésperas (orações da manhã e da tarde da Liturgia das Horas). As demais orações e leituras tomam-se do Comum dos Mártires.

Procissão eucarística na Memória dos Santos Protomártires no Vaticano

Destacamos ainda o “elogio” da festa presente no Martirológio Romano (2001), que é basicamente o mesmo texto da edição de 1584:

“Os santos protomártires da Santa Igreja Romana, que, acusados de provocar o incêndio da Urbe, por ordem do imperador Nero foram cruelmente mortos com vários suplícios: uns foram expostos aos cães cobertos com peles de animais e por eles devorados; outros crucificados e outros lançados ao fogo, para que, ao declinar o dia, servissem de lâmpadas noturnas. Todos eles eram discípulos dos Apóstolos e primícias dos mártires que a Igreja Romana ofereceu ao Senhor” [6].

Notas:

[1] Sobre o culto dos mártires, confira:
ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 147-150.
AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 304-312.
BERGAMINI, Augusto. Cristo, festa da Igreja: O ano litúrgico. São Paulo: Paulinas, 2004, pp. 480-484.
MORA, Afonso. Os santos no Ano Litúrgico. in: CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO (CELAM). Manual de Liturgia, vol. IV: A celebração do Mistério Pascal: Outras expressões celebrativas do Mistério Pascal e a Liturgia na vida da Igreja. São Paulo: Paulus, 2007, pp. 82-88.

[2] TÁCITO. Anais (Annales), XV, 44. in: BETTENSON, Henry [org.] Documentos da Igreja Cristã. São Paulo: ASTE, 1967, pp. 26-27.

[3] CLEMENTE ROMANO. Carta aos Coríntios, 5-6. in: PADRES APOSTÓLICOS. São Paulo, Paulus, 1995, p. 27. Coleção: Patrística, vol. 1.

[4] No dia 28 de junho celebra-se pela manhã a Memória de Santo Irineu, Bispo e Mártir, e, a partir do pôr-do-sol, a Missa da Vigília de São Pedro e São Paulo. Vale lembrar que no Brasil a Solenidade de São Pedro e São Paulo é celebrada no domingo que cai entre os dias 28 de junho e 04 de julho.

[5] Antes da reforma litúrgica, o dia 30 de junho era dedicado a uma “Comemoração de São Paulo, Apóstolo”, “duplicação” da Solenidade do dia anterior, que foi sabiamente suprimida.


Referências:

LODI, Enzo. Os Santos do Calendário Romano: Rezar com os Santos na Liturgia. São Paulo: Paulus, 1992, pp. 234-235.

SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber Sacramentorum: Note storiche e liturgiche sul Messale Romano; v. VII: I Santi nel Mistero della Redenzione (Le Feste dei Santi dalla Quaresima all'ottava dei Principi degli Apostoli). Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 285-289.

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