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sexta-feira, 25 de março de 2022

Sequência da Anunciação: Ave Maria, Virgo serena

“Eis que uma virgem conceberá e dará à luz um filho” (Is 7,10).

Como vimos em postagens anteriores aqui em nosso blog, a partir dos séculos IX e X tornaram-se muito populares no Rito Romano as “sequências”, composições poéticas a serem entoadas antes da aclamação do Evangelho na Missa.

Nesse período praticamente todas as grandes celebrações do Ano Litúrgico possuíam uma sequência, até que, infelizmente, a reforma litúrgica do Concílio de Trento (séc. XVI), as reduzisse a apenas quatro [1].

No esforço de resgatar esse precioso patrimônio da Igreja, que é um tesouro que pertence a todos nós, no ano de 2021 publicamos aqui em nosso blog três sequências para as celebrações dos santos:
- Sancti Baptistae, Christi praeconis, para a Solenidade da Natividade de São João Batista (24 de junho);
- Petre, summe Christi pastor, para a Solenidade de São Pedro e São Paulo (29 de junho);
- Psallite regi nostro, para a Memória do Martírio de São João Batista (29 de agosto).

As duas primeiras remontam ao século X, sendo atribuídas ao monge beneditino Notker Balbulus, enquanto a terceira é do século XI, atribuída ao sacerdote Gottschalk de Aachen.

Também do século XI é a sequência Ave Maria, gratia plena (Ave Maria, cheia de graça), às vezes referida como Ave Maria, Virgo serena (Ave Maria, Virgem serena) para distingui-la da própria oração da “Ave Maria”.

Anunciação: "Ave Maria, gratia plena"
(Vitral da igreja do Sagrado Coração - Edimburgo, Escócia)

Esta sequência, uma composição anônima realizada no sul da Alemanha, é indicada para a Solenidade da Anunciação do Senhor (In festo Annuntiationis gloriosae Virginis Mariae), no dia 25 de março. No Missal de Sarum, por sua vez, o qual era utilizado na Inglaterra durante a Idade Média (particularmente na Diocese de Salisbury), é prescrita para a oitava da Solenidade da Assunção de Maria [2].

Para acessar nossa postagem sobre a história da Solenidade da Anunciação do Senhor, clique aqui.

Essa sequência se popularizou por toda a Europa a partir dos séculos XII e XIII. Sua primeira estrofe, com efeito, foi utilizada pelo compositor francês Josquin des Prez (†1521) para seu célebre moteto de mesmo nome: “Ave, Maria, gratia plena; Dominus tecum, Virgo serena”.

A composição de Josquin, porém, contempla toda a vida de Maria, desde sua Concepção até sua Assunção aos céus. A sequência do século XI, por sua vez, trata especificamente da Anunciação, celebrando-a como mistério da Mãe e do Filho (cf. Paulo VI, Exortação Apostólica Marialis cultus, n. 6).

A primeira parte da sequência é uma reelaboração da oração da “Ave Maria”, que na época era formada apenas saudações do Anjo e de Isabel (Lc 1,28.42) [3].

Após uma “ladainha” de títulos da Virgem e do Senhor Jesus Cristo, a composição conclui-se com uma súplica invocando a intercessão de Maria junto ao seu Filho.

Destacam-se também as rimas, ora emparelhadas oraintercaladas, que dão grande musicalidade ao texto, dividido em sete estrofes com um número desigual de versos (2, 4, 6 ou 8).

Anunciação (Anônimo do séc. XIV)

Confira a seguir, pois, o texto original da sequência, em latim, seguido de uma tradução nossa bastante livre:

Sequentia: Ave Maria gratia plena (Ave Maria, Virgo serena)

1. Ave, Maria, gratia plena;
Dominus tecum, Virgo serena.

2. Benedicta tu in mulieribus,
Quae peperisti pacem hominibus
Et angelis gloriam.
Et benedictus fructus ventris tui,
Qui, coheredes ut essemus sui
nos, fecit per gratiam.

3. Per hoc autem “ave”,
Mundo tam suave,
Contra carnis iura
Genuisti prolem,
Novum stella solem
Nova genitura.

4. Tu parvi et magni,
Leonis et Agni,
Salvatoris Christi
Templum exstitisti,
Sed virgo intacta;
Tu floris et roris,
Panis et pastoris,
Virginum regina,
Rosa sine spina,
Genitrix es facta.

5. Tu civitas Regis iustitiae,
Tu mater es misericordiae,
De lacu faecis et miseriae
Theophilum reformans gratiae.
Te collaudat caelestis curia,
Qui mater es regis et filia;
Per te reis donatur venia,
Per te iustis confertur gratia.

6. Ergo, maris stella,
Verbi Dei cella
Et solis aurora,
Paradisi porta,
Per quam lux est orta,
Natum tuum ora:

7. Ut nos solvat a peccatis
Et in regno claritatis,
Quo lux lucet sedula,
Collocet per saecula. Amen [4].

 Anunciação - Codex de Hitda (séc. XI)

Sequência: Ave, Maria, cheia de graça
(Ave Maria, Virgem serena)

1. Ave, Maria, cheia de graça;
O Senhor é contigo, Virgem serena.

2. Bendita és tu entre as mulheres,
Que geraste [Aquele que é] a paz dos homens
E a glória dos anjos;
E bendito é o fruto do teu ventre,
Que coerdeiros seus
Nos fez pela graça.

3. Por aquele “ave”,
Para o mundo tão suave,
Contra as leis da carne
Concebeste um filho,
Sendo [tu] nova estrela
Que gerou um novo sol.

4. Do pequeno e do grande,
Do Leão e do Cordeiro,
Do Cristo Salvador
Tu és o templo,
Permanecendo virgem intacta;
Da flor e do orvalho,
Do Pão e do Pastor,
Ó Rainha das virgens,
Rosa sem espinho,
Tu te fizeste mãe.

5. Tu és a cidade do Rei da justiça,
Tu és mãe da misericórdia,
Do pântano da miséria
O amigo de Deus trazes de volta à graça
Louva-te o exército celestial,
Porque és mãe e filha do Rei;
Por ti ao pecador é dado o perdão,
Por ti ao justo é concedida a graça.

6. Ó, pois, estrela do mar,
Templo da Palavra de Deus
E aurora do sol,
Porta do paraíso
Através de quem a luz apareceu,
Roga ao teu Filho:

7. Para que nos liberte do pecado
E no reino da claridade,
Cuja luz brilha para sempre,
Coloque-nos pelos séculos. Amém.

Miniatura da Anunciação em um Evangeliário do século XI

Confira nos vídeos a seguir duas interpretações da sequência: a primeira da Schola Cantorum Regina Pacis de Klaipèda (Lituânia) e a segunda do Coro dos Arautos do Evangelho (Brasil):



Confira também uma interpretação do moteto polifônico de Josquin, cuja primeira estrofe, como vimos, é inspirada em nossa sequência. O moteto é executado pelo coro britânico Stile Antico:


Notas:
[1] Victimae paschali laudes (Domingo de Páscoa); Veni, Sancte Spiritus (Pentecostes); Lauda Sion (Corpus Christi); e Dies irae (Missas dos defuntos).
Em 1727 foi a acrescentada a sequência Stabat Mater dolorosa (Memória de Nossa Senhora das Dores).
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II conservou as cinco, transformando, porém, o Dies irae em hino facultativo da Liturgia das Horas para a última semana do Tempo Comum.

[2] O Missal de Sarum prevê uma sequência para cada dia da oitava da Assunção de Maria, do dia 15 ao dia 22 de agosto. A sequência Ave Maria, gratia plena é indicada para o 3º dia, isto é, 17 de agosto (MISSALE ad usum insignis et praeclarae Ecclesiae Sarum. Labore ac studio: Francisci Henrici Dickinson. Burntisland: 1861-1183, p. 871).

[3] A segunda parte da Ave Maria (“Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós...”) desenvolve-se em ambiente monástico a partir dos séculos XIII-XIV, popularizando-se apenas após o Concílio de Trento, no século XVI.

[4] cf. THESAURUS HYMNOLOGICUS sive Hymnorum, canticorum, sequentiarum circa annum MD usitatarum collectio amplissima. Tomus Secundus: Sequentiae, cantica, antiphonae. Lipsiae, 1855, p. 92.

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