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terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Hinos da Festa da Sagrada Família: Vésperas

Adoremos o Filho do Deus vivo, que se dignou tornar-se filho de uma família humana” [1].

Em nossa postagem anterior apresentamos brevemente a história da Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José, celebrada atualmente pela Igreja de Rito Romano no domingo após o Natal.

Como vimos, essa Festa possui três hinos próprios para a Liturgia das Horas, oração oficial da Igreja para a santificação das horas do dia:
- I e II Vésperas: O lux beáta caelitum (Ó luz bendita dos céus);
- Ofício das Leituras: Dulce fit nobis memoráre parvum (A vida oculta de Jesus);
- Laudes: Christe, splendor Patris (Ó Cristo, luz do Pai).

Para acessar o “índice” com todos os hinos do Próprio do Tempo, clique aqui.

Mosaico da Sagrada Família na Catedral de Westminster (Londres)

Os dois primeiros são atribuídos ao Papa Leão XIII (†1903), grande promotor da devoção à Sagrada Família, o qual instituiu a sua Festa em 1893. O terceiro hino, por sua vez, é de nova composição (realizado no contexto da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II).

Como já fizemos aqui em nosso blog com vários dos hinos da Liturgia das Horas, nesta e nas próximas postagens apresentaremos os três hinos da Festa da Sagrada Família, em seu texto original em latim e em sua tradução oficial para o português do Brasil, além de alguns comentários sobre a sua mensagem e teologia.

Começamos pelo hino das Vésperas (oração da tarde), O lux beáta caelitum (Ó luz bendita dos céus):

I e II Vésperas: O lux beáta caelitum

O lux beáta caelitum
et summa spes mortálium,
Iesu, cui doméstica
arrísit orto cáritas;

María, dives grátia,
o sola quae casto potes
fovére Iesum péctore,
cum lacte donans óscula;

Tuque ex vetústis pátribus
delécte custos Vírginis,
dulci patris quem nómine
divína Proles ínvocat:

De stirpe Iesse nóbili
nati in salútem géntium,
audíte nos, qui súpplices
ex corde vota fúndimus.

Qua vestra sedes flóruit
virtútis omnis grátia,
hanc detur in domésticis
reférre posse móribus.

Iesu, tuis oboediens
qui factus es paréntibus,
cum Patre summo ac Spíritu
semper tibi sit glória. Amen [2].

Sagrada Família (Giuseppe Riva - séc. XIX-XX)

I e II Vésperas: Ó luz bendita dos céus

Ó luz bendita dos céus,
dos homens suma esperança.
Jesus, o amor da família
sorriu a vós em criança.

Maria, cheia de graça,
só vós podeis apertar
Jesus ao peito e, com beijos,
materno leite lhe dar.

E vós, ó guarda da Virgem,
feliz eleito dos céus,
o doce nome de Pai
vos deu o Filho de Deus.

Da nobre raiz de Jessé,
para salvar-nos nascidos,
ouvi as preces humildes
dos corações redimidos.

A flor da graça e virtude
em vossa casa nascida,
se reproduza nas nossas,
para enfeitar nossa vida.

Jesus, quisestes ser filho
obediente a seus pais.
A vós, ao Pai e ao Espírito
louvor e glória eternais [3].

Comentário:

Sendo celebrada em um domingo, a Festa da Sagrada Família começa com a oração das I Vésperas, na tarde do dia anterior [4]. Tanto nas I quanto nas II Vésperas nos é proposto o hino O lux beáta caelitum, que, como vimos, teria sido composto pelo Papa Leão XIII em 1893.

Este hino já estava presente, portanto, no Breviarium Romanum anterior à reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, após o Papa Bento XV (†1922) estender a Festa da Sagrada Família para toda a Igreja de Rito Romano em 1920.

O hino originalmente possuía sete estrofes, sendo que a 5ª estrofe fazia referência ao pôr-do-sol: Dum sol redux ad vesperum... [5]. Esta foi suprimida pela reforma litúrgica, permanecendo portanto seis estrofes, como veremos a seguir.

Papa Leão XIII, autor do hino

a) 1ª estrofe:

As primeiras três estrofes são uma invocação a cada um dos três membros da Sagrada Família: Jesus, Maria e José.

Jesus é invocado primeiramente com duas expressões poéticas: “lux beáta caelitum” (luz bem-aventurada dos céus) e “summa spes mortálium” (suma esperança dos mortais). A antítese céu-terra, expressa nessas duas imagens, é recorrente não apenas nos hinos cristãos, mas de várias tradições religiosas.

Destacamos a imagem de Cristo como “Luz”, presente, por exemplo, na literatura joanina (cf. Jo 1,1-10; 8,12; 12,46; 1Jo 1,5-7; Ap 21,23). Quanto ao termo “beáta”, este pode ser traduzido tanto como “bendita”, isto é, “portadora de bênção”, quanto como “bem-aventurada”.

A Sagrada Família, com efeito, é modelo daquele caminho das bem-aventuranças delineado no Evangelho (cf. Mt 5,3-12). Nas palavras do Papa Francisco, as bem-aventuranças “delineiam a face do próprio Jesus, o seu estilo de vida” (Catequese do dia 29 de janeiro de 2020; cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 1716-1717).

Os dois últimos versos da estrofe, por fim, recordam o mistério da Encarnação, através do qual o Senhor foi acolhido no amor da família: “Iesu, cui doméstica arrísit orto cáritas” - “Jesus, em cujo nascimento o amor familiar sorriu”.

A tradução espanhola exprime a mesma ideia com palavras ligeiramente distintas: “no quisiste nacer desposeído del calor humano de un hogar” - “não quiseste nascer sem o calor humano de um lar” [6].

A Sagrada Família sorrindo
(Gerard van Honthorst - séc. XVII)

b) 2ª estrofe:

Após a estrofe dirigida a Cristo, seguem-se os versos à sua Mãe. Esta é saudada primeiramente com um eco às palavras do anjo: “Alegra-te, cheia de graça...” (Lc 1,26). No hino de Leão XIII, com efeito, a Virgem Maria é invocada como “dives grátia”, rica de graça.

Os outros três versos da estrofe dedicam-se a louvar o seu afeto maternal em relação a Jesus: “O sola quae casto potes fovére Iesum péctore, cum lacte donans óscula” - “Ó única que podes acalentar Jesus em casto peito, dando-lhe beijos junto com o leite”.

A devoção à “Virgo Lactans”, isto é, a Maria amamentando o Menino Jesus, está relacionada sobretudo à “Gruta do Leite” em Belém. No final da Idade Média, com efeito, a “Madonna del Latte” era um tema recorrente na arte sacra.

c) 3ª estrofe:

Por fim, concluindo a tríade de membros da Sagrada Família, a próxima estrofe invoca São José.

Este é primeiramente invocado como o último e maior dos Patriarcas, pois foi “escolhido como guardião da Virgem” (delécte custos Vírginis) “entre os antigos pais” (ex vetústis pátribus).

O nosso santo, com efeito, é invocado como “Casto guardião da Virgem” (Custos pudice Virginis) na Ladainha de São José, aprovada pelo Papa São Pio X em 1909. Em 2021 o Papa Francisco acrescentou sete invocações, dentre as quais “Guardião do Redentor” (Custos Redemptoris), expressão que remete a São João Paulo II.

A Virgem Maria amamenta o Menino, tendo junto a si São José, guardião de ambos
(Francisco de Zurbarán - séc. XVII)

É a relação de José com Jesus, pois, que é celebrada nos dois versos seguintes do nosso hino: “dulci patris quem nomine divína Proles ínvocat” - “a quem o Filho Divino chama com o doce nome de pai”.

A expressão remete-nos ao hino das Laudes da Solenidade de São José, Esposo de Maria (19 de março), Caelitum, Ioseph, decus. A 2ª estrofe desse hino indica que o Criador “quis que o Verbo chamasse José de pai” (voluítque Verbi te patrem dici).

Com efeito, embora não fosse seu pai no sentido biológico, José amou Jesus com um coração de pai, como atesta São João Paulo II em sua Exortação Apostólica Redemptoris Custos, afirmando a dimensão afetiva da paternidade de José (n. 08). A mesma expressão abre a Carta Apostólica Patris corde, promulgada pelo Papa Francisco em 2020: “Com coração de pai: assim José amou Jesus”.

d) 4ª estrofe:

Uma vez invocados Jesus, Maria e José nas primeiras estrofes, a 4ª e a 5ª compõem uma súplica aos três, “nascidos da nobre estirpe de Jessé para a salvação das nações” (De stirpe Iesse nóbili nati in salútem géntium).

Jessé era o pai do rei Davi, de cuja descendência viria o Messias (cf. Is 11,1). Embora o Evangelho atribua explicitamente a descendência de Davi apenas a José (Mt 1,1-17; Lc 1,27; 3,23-38), é razoável supor que Maria fosse da mesma tribo, uma vez que era costume que a mulher casasse com um homem da mesma tribo do seu pai (cf. Nm 36).

Jesus, portanto, recebe a “descendência davídica” através de Maria por geração segundo a carne, e através de José por adoção segundo a Lei.

Cumpre notar que o nascimento dos três membros da Sagrada Família é indicado como tendo acontecido “para nossa salvação”. A Jesus isso se aplica em sentido próprio (cf. Mt  1,21; At 4,12; Credo Niceno-Constantinopolitano: “E por nós homens e para nossa salvação desceu dos céus...”), enquanto a Maria e a José em sentido relativo, como “servos” ou “ministros da salvação”.

Nos dois versos seguintes da 4ª estrofe se formula a súplica propriamente dita: “audíte nos, qui súpplices ex corde vota fúndimus”, que poderia ser traduzida como: “Ouvi-nos, a nós que, suplicantes, de coração vos dirigimos nossas preces”.

A Sagrada Família rodeada por uma coroa de flores,
remetendo-nos às virtudes que "floresceram" em seu lar
(Frans Francken II - séc. XVI-XVII)

e) 5ª estrofe:

A 5ª estrofe prossegue e conclui a súplica invocando as virtudes da Sagrada Família, modelo para as famílias cristãs, “tema” central nas orações da Missa da Festa, como já indicado no Breve Neminem Fugit de Leão XIII:

Qua vestra sedes flóruit virtútis omnis grátia, hanc detur in domésticis reférre posse móribus” - “Que a vossa casa, que pela graça floresceu com todas as virtudes, seja modelo dos costumes (comportamentos) das nossas famílias”.

f) 6ª estrofe:

Por fim, como de costume nos hinos da Liturgia das Horas, a última estrofe é uma doxologia, isto é, uma breve fórmula de louvor, dirigida à Santíssima Trindade.

Os três membros da Sagrada Família, com efeito, unem-se aqui às Três Pessoas Divinas, tendo em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, seu ponto de intersecção (axis mundi, o “centro do mundo”).

É a Ele, pois, que o louvor se dirige em primeiro lugar: “Iesu, tuis oboediens qui factus es paréntibus” - “Jesus, que te fizeste obediente a teus pais”. A expressão remete aqui a Lc 2,51: “erat subditus illis”.

Nos dois últimos versos, por sua vez, o Filho recebe a mesma adoração e a mesma glória devidas ao Pai e ao Espírito Santo: “cum Patre summo ac Spíritu semper tibi sit glória. Amen” - “Com o Altíssimo Pai e o Espírito, seja sempre dada glória. Amém”.

A Sagrada Família e a Santíssima Trindade
(Bartolomé Esteban Murillo - séc. XVII)

Notas:

[1] I Vésperas da Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José, Introdução às Preces (OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. I, p. 379).


[3] OFÍCIO DIVINO, v. I, pp. 377.388.

[4] Exceto quando o dia 25 de dezembro cai em um domingo. Nesse caso, a Festa da Sagrada Família é celebrada na sexta-feira, 30 de dezembro, sem I Vésperas (uma vez que no domingo seguinte, 01 de janeiro, celebra-se a Solenidade da Santa Mãe de Deus).


[6] AROCENA, Félix. Los himnos de la Liturgia de las Horas. Madrid: Ediciones Palabra, 1992, p. 121.

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