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quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Hinos da Festa da Sagrada Família: Laudes

“No rosto dos membros da Sagrada Família se reflete toda a beleza do amor dado por Deus ao homem” (São João Paulo II, Carta às Famílias) [1].

Esta é a terceira das nossas postagens dedicadas aos hinos da Liturgia das Horas, oração oficial da Igreja para a santificação das horas do dia, para a Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José.

Para essa Festa - celebrada no domingo após o Natal - como vimos em nossa postagem sobre a sua história, são propostos três hinos próprios: os dois primeiros do Papa Leão XIII (†1903) e o terceiro de nova composição:
- I e II Vésperas: O lux beáta caelitum (Ó luz bendita dos céus);
- Ofício das Leituras: Dulce fit nobis memoráre parvum (A vida oculta de Jesus);
- Laudes: Christe, splendor Patris (Ó Cristo, luz do Pai).

Para acessar o “índice” com todos os hinos do Próprio do Tempo, clique aqui.

Mosaico da Sagrada Família (Centro Aletti)
As mãos de Maria formam os “degraus” pelos quais Cristo desce a nós na Encarnação

Após analisarmos os dois primeiros hinos, nesta postagem nos deteremos no terceiro, elaborado no contexto da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II.

Confira a seguir, portanto, o texto original em latim, a tradução oficial para o português do Brasil, e alguns comentários sobre a mensagem do hino das Laudes (oração da manhã): Christe, splendor Patris (Ó Cristo, luz do Pai).

Laudes: Christe, splendor Patris

Christe, splendor Patris,
Dei mater Virgo,
Ioseph, tam sacrórum
pígnorum servátor,

Nitet vestra domus
flóribus virtútum,
unde gratiárum
fons prománat ipse.

Angeli stupéntes
Natum Dei cernunt
servi forma indútum
servis famulántem.

Imus praees, Ioseph,
humilísque iubes;
iubes et María
et utríque servis.

Cunctis praestant aulis
haec egéna saepta,
salus unde coepit
géneris humáni.

Iesu, Mater, Ioseph,
mansiónis vestrae
nostras date sedes
donis frui sanctis.

Tibi laudes, Christe,
spem qui nobis praebes,
tuos per paréntes
caeli adíre domum. Amen [2].

Sagrada Família
(Bartolomé Esteban Murillo - séc. XVII)

Laudes: Ó Cristo, luz do Pai

Ó Cristo, luz do Pai,
ó Mãe de Deus, Maria,
José, que protegeis
o lar, com alegria.

Com flores de virtude
refulge o vosso lar.
Da graça a própria fonte
aí se vê jorrar.

Os anjos ficam pasmos
ao ver de Deus o Verbo,
vestido em carne humana,
servindo os próprios servos.

Embora sendo o último,
José, vós presidis.
Dais ordens a Maria,
aos dois, porém, servis.

Mais nobre que os palácios,
refulge esta mansão,
pois nela teve origem
do mundo a salvação.

Jesus, Maria, José,
do céu, onde reinais,
fazei que nossos lares
recebam vossa paz.

Por vós, ó Jesus Cristo,
cheguemos nós também,
com vossos pais, à glória
no lar dos céus. Amém [3].

Ícone bizantino da Sagrada Família

Comentário:

Assim como nas Vésperas e Matinas (Ofício das Leituras), também o hino das Laudes da Festa da Sagrada Família era originalmente uma composição do Papa Leão XIII: O gente felix hospita [4]. Esse hino de 08 estrofes era dedicado a louvar a “augusta casa de Nazaré” (Augusta sedes Nazarae), que acolheu os membros da Sagrada Família.

Vale lembrar que a devoção à “Santa Casa” de Nazaré está particularmente ligada, além da própria Basílica da Anunciação em Nazaré, ao Santuário de Loreto (Itália), ao qual o mesmo Leão XIII concedeu especiais indulgências em 1894 (Breve Felix Nazarethana).

O “grupo 7”, encarregado da revisão dos hinos da Liturgia das Horas após o Concílio Vaticano II, coordenado pelo Padre Anselmo Lentini, O.S.B. [5], decidiu elaborar um novo hino para as Laudes da Sagrada Família, centrado no louvor dos seus membros, como veremos a seguir.

Segundo Félix Arocena, este hino foi pensado para ser cantado com o mesmo ritmo do célebre Ave Maris stella, das Vésperas do Comum de Nossa Senhora [6].


a) 1ª estrofe:

Como vimos na respectiva postagem, o hino das Vésperas dedica suas primeiras três estrofes a cada um dos membros da Sagrada Família. No hino das Laudes, por sua vez, os três são invocados já na 1ª estrofe:

- “Christe, splendor Patris” - “Cristo, esplendor do Pai” (ou “luz do Pai” na tradução brasileira). Cristo é referido como “esplendor da glória” do Pai em Hb 1,3 (cf. também o hino das Laudes da Festa dos Arcanjos: Tibi, Christe, splendor Patris).

- “Dei mater Virgo” - “Virgem, Mãe de Deus”. A maternidade divina e a virgindade perpétua são, com efeito, as duas verdades de fé fundamentais a respeito de Maria.

- “Ioseph, tam sacrórum pígnorum servátor” - “José, guardião de tão sacros penhores”. Já vimos no hino das Vésperas a dupla referência, na Ladainha de São José, deste como “custos” (guardião) da Virgem e do Redentor.

Mosaico da Sagrada Família
(Santuário de Torreciudad - Espanha)

b) 2ª estrofe:

Feita a “epiclsese” ou “invocação” dos três membros da Sagrada Família na 1ª estrofe, a partir da 2ª estrofe passa-se à “anamnese”, isto é, ao “memorial” da história da salvação.

Assim como o hino anterior à reforma litúrgica, O gente felix hospita, a 2ª estrofe do nosso hino faz referência ao lar da Sagrada Família (que será retomado na 5ª estrofe), através de duas imagens: o jardim e a fonte.

- “Nitet vestra domus flóribus virtútum” - “A vossa casa resplandece ornada de virtudes”. O lar da Sagrada Família é indicado aqui, pois, como um “jardim” onde florescem as virtudes (“Com flores de virtude refulge o vosso lar”).

Se os primeiros pais, Adão e Eva, pecaram no “jardim do Éden” (Gn 2–3), a casa de Nazaré é o jardim onde florescem a obediência de Cristo, novo Adão, e de Maria, nova Eva (Lc 1,26-38; 2,51). Vale recordar também que no Cântico dos Cânticos a amada é chamada de “hortus conclusus”, “jardim fechado” (Ct 4,12), imagem que a tradição associou à virgindade de Maria e à Igreja, chamada à fidelidade ao Senhor.

- “Unde gratiárum fons prománat ipse” - “Dela brota a própria fonte da graça”. Apesar de também estar presente no Livro do Cântico dos Cânticos (Ct 4,15), enquanto a imagem do “jardim” remete-nos à protologia (criação), a imagem da “fonte” aponta para a escatologia: a consumação dos tempos.

Apocalipse de São João praticamente conclui com a visão do “rio de água viva” que brota do trono do Cordeiro (Ap 22,1). É do lado aberto de Cristo na cruz, com efeito, que jorra a água da salvação (Jo 19,33; cf. Ez 47,1-2; Jo 7,37). Esta fonte de graça, porém, começou a jorrar na Encarnação, quando na casa de Nazaré a Virgem “cheia de graça” acolheu a Palavra do Senhor (Lc 1,26-38) [7].

A dupla referência ao Gênesis e ao Apocalipse aqui nos indica que a Sagrada Família é a síntese de toda a Escritura: Maria e José por sua obediência à vontade de Deus, Jesus sendo a própria “Palavra que se fez carne” (Jo 1,14). Toda a Escritura, pois, aponta para Cristo, “Alfa e Ômega” (Ap 1,8).

Ícone da Virgem Maria, "fonte da salvação":
Por ela nos veio a água viva, que é Cristo

Para acessar os textos da Missa votiva de “Maria, fonte da salvação”, clique aqui.

c) 3ª estrofe:

O “paradoxo da Encarnação”, isto é, o mistério da kenosis, do “rebaixamento” do próprio Deus (cf. Fl 2,6-8), é cantado nas estrofes 3 e 4.

Inspirando-se na 3ª estrofe do hino O gente felix hospita, que cantava a presença dos anjos na casa de Nazaré, a nova composição indica a “admiração” dos seres celestes diante da humildade do Filho:

Angeli stupéntes Natum Dei cernunt servi forma indútum servis famulántem” - “Os anjos contemplam admirados o Filho de Deus revestido da condição de servo, servindo os próprios servos”. Os “servos” aqui são Maria, a “serva do Senhor” (Lc 1,38) e José, sempre obediente à palavra do anjo (Mt 1,24), aos quais Jesus “era submisso” (Lc 2,51).

d) 4ª estrofe:

A 4ª estrofe prossegue admirando-se de tal paradoxo, enfatizando as relações entre os três membros da Sagrada Família:

- “Imus praees, Ioseph, humilísque iubes” - “Sendo o último vais adiante, José, e humildemente comandas”; ou, como canta a tradução brasileira: “Embora sendo o último, José, vós presidis”.

- “Iubes et María” - “Também [tu], Maria, comandas”

- “et utríque servis” - “E tu, [Jesus], submete-se a ambos”

A tradução brasileira, porém, interpreta estes dois últimos versos também em relação a José: “Dais ordens a Maria, aos dois, porém, servis”. A tradução espanhola, por sua vez, atribui ambos os versos a Maria (“y tú, María, si mandas, es para servir a los dos”) [8].

A tradução para o inglês, portanto, seria a mais correta: “The lowly and humble head of the family Joseph commands, Mary also orders, and you, Jesus, obey both” [9].

Os anjos contemplam a kenosis de Cristo, sustentando os instrumentos da Paixão
(Benvenuto Tisi da Garofalo - séc. XV-XVI)

e) 5ª estrofe:

A 5ª estrofe, como afirmamos anteriormente, retoma o louvor da santa casa de Nazaré, como no hino de Leão XIII:

Cunctis praestant aulis haec egéna saepta, salus unde coepit géneris humáni” - “Estas pobres paredes, onde começou a salvação do gênero humano, se elevam sobre todos os palácios”.

O mesmo sentido exprime a tradução oficial da estrofe: “Mais nobre que os palácios, refulge esta mansão, pois nela teve origem do mundo a salvação”.

A salvação que “começa” na casa de Nazaré indica aqui tanto o episódio da Anunciação, quando “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14), quanto a “vida oculta” de Jesus, que também é mistério de salvação (cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 514-521; 531-534).

f) 6ª estrofe:

Uma vez feita a anamnese, isto é, o memorial da história da salvação nas estrofes 2-5, a 6ª estrofe retorna à epiclese: a invocação ou súplica.

Da casa de Nazaré, porém, somos transportados aqui às “mansões celestiais”, onde Cristo reina e onde Maria e José participam de sua glória. Dessa sua morada pedimos que os “santos dons” desçam às nossas casas:

Iesu, Mater, Ioseph, mansiónis vestrae nostras date sedes donis frui sanctis” - “Jesus, Mãe, José, concedei que nossos lares possam gozar dos santos dons de vossas moradas”.

Na tradução brasileira, por sua vez, este dons são sintetizados em uma palavra: “paz” - “Jesus, Maria, José, do céu, onde reinais, fazei que nossos lares recebam vossa paz”.

Glória da Sagrada Família
(Michael Willmann - séc. XVII-XVIII)

g) 7ª estrofe:

Por fim, a sétima estrofe conclui a composição, como de costume, com uma doxologia, uma breve fórmula de louvor. Porém, diferentemente da maioria dos hinos da Liturgia das Horas, o destinatário do louvor aqui não é a Santíssima Trindade, mas a pessoa de Jesus Cristo.

Tibi laudes, Christe, spem qui nobis praebes tuos per parentes caeli adíre domum. Amen” - “Louvor a ti, ó Cristo, que por meio dos teus pais dá-nos a esperança de chegar à morada celeste. Amém”.

A Virgem, Mãe de Jesus Cristo segundo a carne, e São José, seu pai segundo a Lei, são pois nossos intercessores junto ao Filho no céu, “agora e na hora de nossa morte”, como rezamos na Ave-Maria.

Notas:

[1] JOÃO PAULO II. Carta às Famílias (Gratissimam sane), 02 de fevereiro de 1994, n. 20.


[3] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. I, pp. 384-385.


[5] cf. BUGNINI, Annibale. A reforma litúrgica: 1948-1975. São Paulo: Paulinas; Paulus; Loyola, 2018, pp. 461-463. Dos 291 hinos atualmente presentes na Liturgia das Horas, 35 são de nova composição.

[6] AROCENA, Félix. Los himnos de la Liturgia de las Horas. Madrid: Ediciones Palabra, 1992, p. 123.

[7] Sobre o simbolismo bíblico do “jardim” e da “fonte”, cf. LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993, pp. 107-108; 122-123.

[8] AROCENA, op. cit., p. 124.

[9] DOMINI RES GESTAS NARRARE LAUDARE EST: Hymns of the Liturgia Horarum: Holy Family.

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