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quarta-feira, 29 de setembro de 2021

Hinos da Festa dos Arcanjos: Vésperas

Três são os Arcanjos nomeados nas Sagradas Escrituras: Miguel, Gabriel e Rafael. Três são também os hinos para a Liturgia das Horas da sua Festa, celebrada no Rito Romano no dia 29 de setembro:

Ofício das Leituras: Festíva vos, archángeli (Arcanjos, para vós);
Laudes: Tibi, Christe, splendor Patris (Ó Cristo, Luz de Deus Pai);
Vésperas: Angelum pacis Míchael (Lá do alto enviai-nos, ó Cristo).

Após analisarmos os dois primeiros, concluímos esta breve série de postagens com o hino das Vésperas (oração da tarde): Angelum pacis Míchael (Lá do alto enviai-nos, ó Cristo), que, assim como o hino das Laudes, é uma composição anônima do século X.

Confira, pois, a seguir o texto original do hino em latim e sua tradução oficial para o português do Brasil, seguidos de alguns comentários sobre a sua teologia.

Os três Arcanjos: Rafael (com Tobias), Miguel e Gabriel
(Michele Tosini - séc. XVII)

Vésperas: Angelum pacis Míchael

Angelum pacis Míchael ad istam,
Christe, demítti rogitámus aulam,
cuncta quo crebro veniénte crescant
próspera nobis.

Angelus fortis Gábriel, ut hostem
pellat antíquum, vólitet supérne,
saepius templum cúpiens favéndo
vísere nostrum.

Angelum nobis médicum salútis
mitte de caelis Ráphael, ut omnes
sanet aegrótos paritérque nostros
dírigat actus.

Christe, sanctórum decus angelórum,
adsit illórum chorus usque nobis,
ut simul tandem Tríadi per aevum
cármina demus. Amen [1].

Vésperas: Lá do alto enviai-nos, ó Cristo

Lá do alto enviai-nos, ó Cristo,
vosso anjo da paz, São Miguel.
Sua ajuda fará vosso povo
crescer mais, prosperando, fiel.

Gabriel, o anjo forte na luta,
nosso tempo sagrado visite,
lance fora o antigo inimigo
e, propício, conosco habite.

Enviai-nos dos céus Rafael,
o bom anjo que cura os doentes,
para a todos os males sarar
e guiar nossos atos e as mentes.

Cristo, glória dos coros celestes,
vossos anjos nos venham guiar,
para, unidos a eles um dia,
glória eterna ao Deus Trino cantar [2].

Arcanjos Miguel e Gabriel sustentando a imagem de Cristo
(Ícone do século XIII)

Comentário:

Embora o título do hino (formado por suas primeiras palavras) refira-se apenas a Miguel, na verdade essa composição de quatro estrofes de quatro versos cada dedica uma estrofe a cada um dos três Arcanjos, concluindo com uma doxologia (breve fórmula de louvor) dirigida a Cristo.

a) 1ª estrofe: “Angelum pacis”

Paradoxalmente, ao contrário da visão “bélica” que costumamos ter de São Miguel (sobretudo à luz de Ap 12), nosso hino começa invocando-o justamente como “Anjo da paz”: “Angelum pacis Míchael...”.

Como vimos em nossa postagem sobre a história do culto aos Arcanjos, na Idade Média popularizou-se a crença de que o anjo com o turíbulo de ouro em Ap 8,3-5, o qual apresenta a Deus a oração dos santos, é o próprio Miguel. Essa oferenda do incenso, com efeito, é um “sacrifício pacífico”, que reconcilia o céu e a terra, que traça a “ponte” entre o céu e a terra através da coluna de fumaça que sobe.

A estrofe na verdade é uma súplica a Cristo, para que envie Miguel “a esta casa” (“ad istam, Christe, demítti rogitámus aulam”), isto é, ao lugar onde estão aqueles que entoam o hino, a fim de que, com sua “vinda constante”, “enriqueça-nos com a prosperidade” (“cuncta quo crebro veniénte crescant próspera nobis”).

São Miguel
(Vitral da Igreja de Todos os Santos em Leek, Inglaterra)

b) 2ª estrofe: “Angelus fortis”

Fazendo jus à sua etimologia (Fortaleza de Deus), Gabriel é invocado como “Anjo forte” (Angelus fortis). O hino pede a ele, e não a Miguel, que “voe sobre nós” (“vólitet supérne”, “estenda as suas asas” sobre nós na tradução espanhola) para “repelir o antigo inimigo” (ut hostem pellat antíquum).

Uma vez repelido o inimigo, isto é, Satanás (o Tentador) ou Diabo (o Divisor), o hino pede ao Arcanjo Gabriel que “se digne visitar constantemente [este] templo, favorecendo-nos” (saepius templum cúpiens favéndo vísere nostrum).

O “templo” aqui indica o lugar onde estão aqueles que entoam o hino (no mesmo sentido de “aula” na 1ª estrofe). Curiosamente a tradução oficial brasileira utiliza “tempo sagrado” ao invés de “templo”. Porém, uma vez que espaço e tempo são duas dimensões interligadas, a adaptação é válida.

São Gabriel
(Igreja de Todos os Santos em Leek, Inglaterra)

c) 3ª estrofe: “Angelum médicum”

Por fim, o terceiro Arcanjo, Rafael, é invocado como “Anjo médico da nossa saúde” (“Angelum nobis médicum salútis”), como indica tanto sua etimologia (Medicina de Deus) como sua atuação no Livro de Tobias.

A estrofe pede a Cristo - o qual, recordemos, é o “destinatário” de todo o hino - que “envie dos céus Rafael” (“mitte de caelis Ráphael”), para que “cure todos os doentes” (ut omnes sanet aegrótos) e, ao mesmo tempo (paritérque), “guie nossos atos” (“nostros dírigat actus”). Novamente aqui a referência à sua atuação no Livro de Tobias, como anjo taumaturgo (curador) e guia.

São Rafael
(Igreja de Todos os Santos em Leek, Inglaterra)

d) 4ª estrofe: “Decus angelórum”

A última estrofe, por fim, conclui o hino dirigindo uma nova súplica a Cristo, invocado como “sanctórum decus angelórum”, isto é, “glória dos santos anjos”. O termo “decus” pode ser traduzido também como “honra” ou mesmo “beleza” (como na tradução inglesa: “O Christ, the beauty of the angels”).

Esse título é empregado também no célebre hino “Jesu dulcis memoriae”, atribuído a São Bernardo de Claraval (†1153). A terceira parte deste poema começa justamente com a invocação “Jesu, decus angelicum (Jesus, glória dos anjos).

Na sequência, pede-se que “o seu coro (isto é, o coro dos anjos) sempre nos assista” (“adsit illórum chorus usque nobis”). “Adsit” pode ser traduzido tanto como “assistir” (no sentido de prestar assistência) quanto como “defender”.

Cristo em majestade ladeado por quatro Arcanjos (La Martorana - Palermo)
(Aos três Arcanjos "bíblicos" acrescenta-se um quarto para completar o número dos pontos cardeais)

Conclui o poema, como de costume nos hinos da Liturgia das Horas, uma referência à Trindade. Com efeito, expressamos aqui o desejo de cantar o louvor do Deus Trino junto com os anjos: “ut simul tandem Tríadi per aevum cármina demus. Amen” - “para que com eles (com os anjos), enfim, entoemos eternamente um hino de louvor à Trindade. Amém”.

Cármen” designa um canto, um poema, um hino. Foi essa a expressão usada pelo Governador da Bitínia, Plínio, o Jovem, em uma carta ao Imperador Trajano descrevendo as atividades dos cristãos: eles se reúnem em um dia determinado (o domingo) para “cantar hinos a Cristo como a um deus” (carmenque Christo quasi Deo dicere).


Cristo-Emmanuel entre os Arcanjos Miguel e Gabriel
(Ícone do século XII)

Notas:


[2] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. IV, pp. 1323-1324.

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