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domingo, 22 de novembro de 2020

O ícone de Cristo Salvador

“Tu te manifestaste no mundo para iluminar a quantos estavam nas trevas”­ [1]

A Igreja de Rito Romano celebra no último domingo do Ano Litúrgico a Solenidade de Jesus Cristo, Rei do Universo. Aproveitamos esta ocasião para, encerrando nossa série de postagens sobre os ícones das festas litúrgicas, falar sobre o ícone de Cristo Salvador ou Pantocrator.

Origem e conteúdo da festa:

Todas as festas do calendário litúrgico bizantino celebram momentos da história da salvação, da Natividade de Maria até a sua Dormição, tendo seu centro na celebração do Mistério Pascal da Morte e Ressurreição do Senhor.

O Rito Romano, por sua vez, possui uma série de festas que celebram “ideias” teológicas: a Santíssima Trindade, a Eucaristia, o Coração de Jesus, etc. Dentre estas festas encontra-se a Solenidade de Jesus Cristo, Rei do Universo, uma das últimas inseridas no calendário litúrgico.

A festa foi instituída para o Rito Romano em 1925 pelo Papa Pio XI, através da Encíclica “Quas Primas”, inicialmente fixada no último domingo do mês de outubro. Com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II esta celebração foi transferida para o último domingo do Ano Litúrgico, destacando assim o alcance escatológico da realeza de Cristo [2].

Para saber mais, confira nossa postagem sobre a história da Solenidade de Cristo Rei.

É a partir desta índole escatológica da festa de Cristo Rei que queremos meditar sobre o ícone de Cristo Salvador ou Pantocrator (Todo-poderoso). Este ícone exprime a afirmação do Catecismo da Igreja Católica: “toda a vida de Cristo é mistério” (n. 514).

Embora o ícone de Cristo Salvador não faça referência específica a um momento da história da salvação, mas sim à totalidade do mistério, o fundamento para sua veneração é a Encarnação do Verbo. Em Cristo, o Deus invisível se fez visível (Cl 1,15), a ponto de Ele mesmo afirmar: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo 14,9).

Costumamos encontrar este ícone nas absides das igrejas do Oriente e do Ocidente, sintetizando o mistério de Deus que se celebra naquele espaço sagrado. Esta imagem do Pantocrator, geralmente sentado no trono, costuma ocupar três quartos da área icônica “e não é por acaso: 3 é o mistério da vida divina, 4 é o cosmo. Então, o que é figurado é a presença da vida divina na humanidade” [3].

Além disso, encontramos o ícone do Cristo Salvador sempre à direita das portas centrais da iconostase nas igrejas bizantinas, fazendo par com o ícone da Mãe de Deus à esquerda. Diante deste ícone de Cristo o sacerdote recita a seguinte oração antes da Divina Liturgia:

Veneramos teu santo ícone, ó Deus de bondade, implorando o perdão de nossas culpas, ó Cristo, que, voluntariamente, te deixaste suspender na cruz para livrar da escravidão do inimigo os que formaste. Por isso, dando-te graças, a Ti clamamos: Encheste de alegria toda realidade, ó Salvador nosso, quando vieste para salvar o mundo!” [4].

O ícone


As vestes: As cores das vestes de Cristo, como já afirmamos em nossa série, traçam um paralelo com as vestes de Maria: a Mãe veste uma túnica azul, para simbolizar que carregou no ventre o próprio céu, sob um manto vermelho cobrindo-a quase inteiramente, para recordar-nos que ela continua sendo humana.

Cristo, ao contrário, veste uma túnica vermelha (cor do sangue), para indicar que assumiu nossa humanidade (Fl 2,6-8), e um manto azul (cor do céu) para lembrar-nos que não perdeu sua divindade (Hb 1,1-3).

Completa a indumentária do Senhor uma estola dourada pendente do ombro direito (Ap 1,13). A própria estola indica seu múnus sacerdotal, enquanto a cor dourada, reservada na Antiguidade ao rei, indica seu múnus régio.

O rosto: O rosto de Cristo neste ícone pode indicar ora bondade, recordando o grande mistério da misericórdia de Deus, ora severidade, como convite ao arrependimento dos pecados.

Merece destaque neste sentido o célebre Pantocrator do Sinai, venerado no Mosteiro de Santa Catarina, um dos mais antigos ícones do Senhor. Inspirado no julgamento de Mt 25,31-46, o rosto apresenta duas expressões distintas: o lado direito (o lado da mão que abençoa) é bondoso, cheio de misericórdia, ao passo que o lado esquerdo (o lado do livro da Lei) é severo, quase irado.

Ícone original do Pantocrator do Sinai
Versão "espelhada" de cada metade do ícone

De toda forma, atrás da cabeça de Cristo costuma ser representado o nimbo cruciforme, isto é, uma auréola dentro da qual esta desenhada uma cruz. O grande teólogo oriental Pavel Evdokimov explica: “a cruz assim inscrita no círculo sagrado da vida divina é o eixo vivo do amor trinitário. O Pai é o amor que crucifica, o Filho é o amor crucificado, o Espírito Santo é a cruz do amor, seu poder invencível” [5].

Neste halo costumam-se encontrar as letras gregas Ο - Ω - Ν que formam a expressão ὁ ὤν, que significa “Aquele que é”, em referência à autorrevelação de Deus no monte Sinai (Ex 3,14).

A mão: Com a mão direita, o Cristo abençoa aquele que contempla o seu ícone. O gesto de bênção tradicional entre os orientais é com três dedos levantados, em alusão às três Pessoas da Trindade, e com dois dedos juntos, em alusão às duas naturezas de Cristo, divina e humana.

O livro: Com a mão esquerda Cristo sustenta o livro da Palavra de Deus, pois “ao encarnar-se, Ele veio nos trazer a boa notícia, o cumprimento da Lei e dos Profetas” [6], como podemos ver no início do Evangelho de Lucas, quando Jesus faz a leitura do profeta Isaías na sinagoga de Nazaré e conclui: “Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir!” (Lc 4,16-21).
  
A presença do livro completa as referências ao tríplice múnus de Cristo, sacerdote (estola), rei (cor dourada) e profeta (livro).

Em algumas versões do ícone o livro está fechado, para indicar que toda a Escritura aponta para Cristo. Ele costuma segurar o livro então com quatro dedos, para representar que sua mensagem é destinada aos quatro cantos do mundo.

Em outras versões o livro está aberto, acessível a todos, indicando que em Cristo a Revelação completou-se: não há nada mais a ser dito, nada mais está oculto. “O Criador de todas as coisas, ao encarnar-se, compôs um livro novo, saído do coração do Pai, para ser escrito com a pena do Espírito na língua de Deus” [7].

Em cada imagem o iconógrafo escolhe uma frase do Evangelho que quer ressaltar no livro aberto. Geralmente é uma das autoafirmações de Jesus - “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8,12), “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6) - ou um trecho do Prólogo de João: “No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus...” (Jo 1,1), “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1,14).


Cristo, Luz verdadeira que iluminas e santificas a todos os homens que vêm a este mundo, faze com que se grave em nós como um selo a luz de teu rosto, para descobrir nele a luz inacessível, e dirige os nossos passos no cumprimento de teus mandamentos” [8].

[1] PASSARELLI, Gaetano. O ícone de Cristo Salvador. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 34. Coleção: Iconostásio, 02.
[2] Sobre a história desta celebração confira:
ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 130-132.
[3] AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019 (Orelha do livro).
[4] SPERANDIO, João Manoel; TAMANINI, Paulo Augusto (orgs.). Hieratikon: Pequeno Missal bizantino. Teresina: Editora da Universidade Federal do Piauí, 2015, p. 12.
[5] PASSARELLI, op. cit., p. 24.
[6] ibid., p. 29.
[7] ibid., p. 30.
[8] ibid., p. 33.

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