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quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Leitura litúrgica do Livro de Daniel (2)

“Bendito sois, Senhor, no firmamento dos céus! Sois digno de louvor e de glória eternamente” (Dn 3,56).

Na última postagem da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura iniciamos um estudo sobre o Livro de Daniel (Dn), considerado pela tradição cristã como um dos quatro “profetas maiores” do Antigo Testamento (AT), junto com Isaías, Jeremias e Ezequiel.

Na primeira parte, após uma breve introdução, analisamos sua leitura em composição harmônica na Missa e na Liturgia das Horas. Cabe-nos agora considerar o segundo critério de seleção dos textos bíblicos: a leitura semicontínua.

Profeta Daniel (Aleijadinho)
(Santuário de Bom Jesus de Matosinhos - Congonhas, MG)

3. Leitura litúrgica do Livro de Daniel: Leitura semicontínua

Como indica o n. 66 do Elenco das Leituras da Missa (ELM), a leitura semicontínua é a proclamação dos principais textos de um livro na sequência, oferecendo aos fiéis um contato mais amplo com a Palavra de Deus [1].

a) Celebração Eucarística

Na Celebração Eucarística, os livros do AT são lidos de maneira semicontínua nos dias de semana do Tempo Comum, várias semanas cada um, conforme sua extensão (cf. ELM, n. 1110) [2]. Daniel é lido por uma semana: da segunda-feira ao sábado da XXXIV semana do Tempo Comum no ano ímpar, logo após os Livros dos Macabeus.

Esta escolha é feita “em consonância com a índole escatológica deste tempo” (ibid.) [3], uma vez que se trata da última semana do Ano Litúrgico. As seis perícopes selecionadas aqui são:

XXXIV semana do Tempo Comum (ano ímpar):
Segunda-feira: Dn 1,1-6.8-20;
Terça-feira: Dn 2,31-45;
Quarta-feira: Dn 5,1-6.13-14.16-17.23-28;
Quinta-feira: Dn 6,12-28;
Sexta-feira: Dn 7,2-14;
Sábado: Dn 7,15-27 [4].

Como veremos adiante nesta postagem, durante toda essa semana o “salmo” é substituído pelos cânticos do capítulo 3 de Daniel.

b) Liturgia das Horas

Também na Liturgia das Horas a leitura semicontínua de Daniel estende-se por uma semana ao final do Ano Litúrgico, mais especificamente no Ofício das Leituras da XXXII semana do Tempo Comum, igualmente após os Livros dos Macabeus e antes dos profetas Joel e Zacarias (cap. 9–14).

As sete perícopes escolhidas, boa parte das quais não foi lida na Missa, são:

Ofício das Leituras: XXXII semana do Tempo Comum
Domingo: Dn 1,1-21 - “Fidelidade dos jovens israelitas no palácio do rei da Babilônia”;
Segunda-feira: Dn 2,26-47 - “Visão da estátua e da pedra. O Reino eterno de Deus”;
Terça-feira: Dn 3,8-12.19-24.91-97 - “A estátua de ouro do rei. Os jovens salvos da fornalha”;
Quarta-feira: Dn 5,1-2.5-9.13-17.25–6,1 - “Sentença de Deus no banquete de Baltasar”;
Quinta-feira: Dn 9,1-4a.18-27 - “Oração e visão de Daniel”;
Sexta-feira: Dn 10,1-21 - “Visão do homem e aparição do anjo”;
Sábado: Dn 12,1-13 - “Profecia sobre o último dia e a ressurreição” [5].

O banquete de Baltasar (Dn 5) - Rembrandt

No ciclo bienal do Ofício das Leituras, que infelizmente não foi traduzido para o Brasil, nosso livro é lido por dez dias, da quinta-feira da XXXIII semana ao sábado da XXXIV semana do Tempo Comum no ano par, novamente após os Livros dos Macabeus, como no ciclo anual, dando espaço para a leitura da profecia de Ezequiel no ano ímpar.

Destacamos a seguir as três leituras “inéditas” em relação ao ciclo anual [6]:

Ofício das Leituras: XXXIII semana do Tempo Comum (Ano par)
Quinta-feira a sábado: Como no ciclo anual (Domingo a terça-feira).

Ofício das Leituras: XXXIV semana do Tempo Comum (Ano par)
Domingo: Dn 7,1-27 - “Visão do Filho do homem que recebe o reino”;
Segunda-feira: Como no ciclo anual (Quarta-feira);
Terça-feira: Dn 6,4-27 - “Daniel libertado do fosso dos leões”;
Quarta-feira: Dn 8,1-26 - “Visão do carneiro e do bode. Vitória e destruição dos reis gregos”;
Quinta-feira a sábado: Como no ciclo anual (Quinta-feira a sábado).

Além das leituras longas no Ofício, há ainda uma leitura breve do nosso livro na Hora Média (9h) do sábado da IV semana do Saltério: Dn 6,27b-28 [7]. Trata-se de uma confissão da grandeza de Deus: “O nosso Deus é o Deus vivo que permanece para sempre... Ele é o libertador e o salvador...”.

Vale lembrar que essas leituras são proferidas apenas no Tempo Comum, uma vez que os Tempos do Advento, Natal, Quaresma e Páscoa possuem leituras próprias (repetindo apenas os salmos e cânticos do ciclo de quatro semanas do Saltério).

4. Leitura litúrgica do Livro de Daniel: Cânticos

Como afirmamos no final da postagem anterior, há três textos de Daniel que são entoados como cânticos na Liturgia das Horas e em outras celebrações litúrgicas.

Tratam-se das adições em grego ao capítulo 3: a oração penitencial de Azarias (Dn 3,26-45) e a oração de louvor a Deus dos três jovens (Dn 3,52-90), dividida em dois cânticos, como veremos a seguir.

Os três jovens na fornalha ardente

a) Dn 3,26-27.29.34-41:

Na recitação ordinária da Liturgia das Horas, os cânticos do AT foram distribuídos nas Laudes (oração da manhã) das quatro semanas do Saltério. Assim, encontramos o primeiro cântico de Daniel nas Laudes da terça-feira da IV semana [8].

Intitulado “Oração de Azarias na fornalha”, o cântico inicia com uma aclamação ao Senhor (vv. 26-27), seguido pela confissão dos pecados (v. 29) e a súplica a Deus por perdão (vv. 34-41).

b) Dn 3,52-57:

O “hino de louvor” dos três jovens, como afirmamos acima, é dividido em duas partes, ambas intituladas como “Louvor das criaturas ao Senhor”, entoadas na Liturgia das Horas em um lugar eminente: as Laudes dos domingos.

A primeira parte (vv. 52-57) é prevista para as Laudes dos domingos das semanas II e IV do Saltério [9]. Esta parte do cântico está organizada como um “diálogo”: os versos ímpares proclamam o louvor do Senhor, enquanto os versos pares trazem o refrão: “A vós louvor, honra e glória eternamente!”.

Diferentemente da segunda parte do cântico, que convida toda a criação ao louvor, como veremos adiante, esta primeira parte se passa na esfera celeste: Deus é louvado “em seu trono de poder vitorioso”, “sobre os querubins”, “no celeste firmamento”.

Além da Liturgia das Horas, este cântico é entoado também na Celebração Eucarística, substituindo o “salmo”, em cinco ocasiões:

- Quarta-feira da V semana da Quaresma [10], acompanhando a leitura em composição harmônica do relato dos três jovens (Dn 3,14-20.24.49a.91-92.95), como vimos na postagem anterior.

- Vigília de Pentecostes: cântico após a II leitura: Quando se celebra a forma longa da Vigília de Pentecostes, com quatro leituras do AT, a 1ª opção de cântico após a II leitura (Ex 19,3-8.16-20) é Dn 3,52-56 [11].

Destaca-se aqui o primeiro verso do hino, que proclama: “Sede bendito, Senhor Deus de nossos pais!”, uma vez que a leitura faz referência à aliança do Sinai, onde o Senhor se apresenta justamente como “o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó” (Ex 3,15).

- Solenidade da Santíssima Trindade (Ano A): Como na celebração anterior, o cântico de Dn 3,52-56 [12] está aqui em harmonia com uma leitura ligada à aliança do Sinai (Ex 34,4b-6.8-9).

- Quinta-feira da XVI semana do Tempo Comum (Ano ímpar): como acima, na Vigília de Pentecostes, uma vez que aqui se lê Ex 19,1-2.9-11.16-20b. O cântico, porém, inclui aqui o v. 57 [13], como na Liturgia das Horas.

- Segunda-feira da XXXIV semana do Tempo Comum (Ano ímpar): acompanhando aqui o início da leitura semicontínua do Livro de Daniel, como vimos anteriormente. Também nesta celebração se inclui o v. 57 [14].

Além da Liturgia das Horas e da Celebração Eucarística, Dn 3,52-57 consta ainda entre os salmos e cânticos à escolha para a celebração do sacramento da Reconciliação como ação de graças após a absolvição [15].

Benedicite”: O louvor das criaturas ao Senhor
(Edward Arthur Fellowes Prynne)

c) Dn 3,57-88.56:

Por fim, a segunda parte do “Louvor das criaturas ao Senhor” (vv. 57-88.56) é indicada para as Laudes dos domingos das semanas I e III do Saltério [16]. Vale recordar que os salmos e o cântico do I domingo são entoados também nas Laudes das solenidades e festas.

Como afirmamos anteriormente, nesta parte do cântico toda a criação é convidada ao louvor de Deus: os anjos, os astros celestes, os fenômenos climáticos, as plantas, os animais, a humanidade. A todos é dirigido o convite, repetido a cada verso: “Bendizei o Senhor!”. Trata-se, com efeito, de um cântico “ecológico” ou “cósmico”.

Este é um dos poucos cânticos do AT na Liturgia das Horas para o qual são propostas duas opções de refrão facultativo, tomadas do próprio cântico: “Louvai-o e exaltai-o pelos séculos sem fim!” (v. 57) ou “A Ele glória e louvor eternamente!” (v. 56).

Além disso, outra particularidade do cântico é que ele não termina com a tradicional pequena doxologia trinitária (“Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo...”), uma vez que esta é inserida na última estrofe, junto ao v. 56: “Ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo louvemos e exaltemos pelos séculos sem fim! Bendito sois, Senhor, no firmamento dos céus! Sois digno de louvor e de glória eternamente!”.

Além da Liturgia das Horas, o cântico é entoado na Celebração Eucarística, substituindo o “salmo”, durante a XXXIV semana do Tempo Comum (Ano ímpar), como vimos anteriormente, acompanhando a leitura semicontínua do Livro de Daniel.

Aqui o cântico foi dividido em cinco partes, correspondentes aos dias da semana (na segunda-feira, como vimos acima, entoa-se Dn 3,52-57):
Terça-feira: Dn 3,57-61;
Quarta-feira: Dn 3,62-67;
Quinta-feira: Dn 3,68-74;
Sexta-feira: Dn 3,75-81;
Sábado: Dn 3,82-87 [17].

Por fim, Dn 3,52-57 consta ainda como cântico à escolha substituindo as Preces na Bênção em ação de graças [18].

Daniel (Gianlorenzo Bernini)

Notas:
[1] cf. ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] ibid., p. 105.
[3] ibid., p. 106.
[4] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995.
[5] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, vol. IV, pp. 433-457.
[6] Os títulos das leituras foram traduzidos livremente do texto espanhol divulgado pelo site Dei Verbum.
[7] OFÍCIO DIVINO, vol. III, p. 1157; vol. IV, p. 1111.
[8] ibid., vol. I, p. 934; vol. II, p. 1336; vol. III, p. 1076; vol. IV, p. 1030
[9] ibid., vol. I, pp. 715.908; vol. II, pp. 1090.1308; vol. III, pp. 762.1040; vol. IV, pp. 716.994.
[10] LECIONÁRIO II, op. cit.
[11] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994. A outra opção é o Sl 18,8-11.
[12] ibid.
[13] LECIONÁRIO II, op. cit.
[14] ibid.
[15] RITUAL DA PENITÊNCIA. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus: 1999, p. 71.
[16] OFÍCIO DIVINO, vol. I, pp. 622.808; vol. II, pp. 984.1202; vol. III, pp. 627.900; vol. IV, pp. 581.854.
[17] LECIONÁRIO II, op. cit.
[18] RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 458. O texto do cântico encontra-se no Apêndice (p. 495).

Imagens: Wikimedia Commons.

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