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terça-feira, 14 de março de 2023

Catequese do Papa Bento XVI: A oração (17)

Quase concluindo suas meditações sobre alguns salmos dentro das suas Catequeses sobre a oração, o Papa Bento XVI refletiu sobre o Salmo 118 (119).

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Papa Bento XVI
Audiência Geral
Quarta-feira, 09 de novembro de 2011
A oração (17):
O grande canto da “Lei” (Sl 118)

Prezados irmãos e irmãs,
Nas últimas Catequeses refletimos sobre alguns salmos que são exemplos dos gêneros típicos da oração: lamentação, confiança e louvor. Na Catequese de hoje gostaria de meditar sobre o Salmo 118 (119) - 119 segundo a tradição judaica e 118 segundo a tradição greco-latina -, um Salmo muito particular, único no seu gênero. Antes de tudo, pela sua extensão: com efeito, é composto por 176 versículos, divididos em 22 estrofes de oito versículos cada uma. Além disso, tem a peculiaridade de ser um «acróstico alfabético»: ou seja, é construído segundo o alfabeto hebraico, que é composto por 22 letras. Cada estrofe corresponde a uma letra daquele alfabeto, e com tal letra começa a primeira palavra dos oito versículos da estrofe. Trata-se de uma construção literária original e muito difícil, em que o autor do Salmo teve de demonstrar toda a sua habilidade.


Mas aquilo que para nós é mais importante é a temática central deste Salmo: com efeito, trata-se de um imponente e solene canto sobre a Torah do Senhor, ou seja, sobre a sua Lei, um termo que na sua acepção mais ampla e completa, deve ser compreendido como ensinamento, instrução, diretriz de vida; a Torah é revelação, é Palavra de Deus que interpela o homem e suscita a sua resposta de obediência confiante e de amor generoso. E este Salmo está inteiramente impregnado de amor pela Palavra de Deus: celebra a sua beleza, a sua força salvífica, a sua capacidade de doar alegria e vida. Porque a Lei divina não é um jugo pesado de escravidão, mas um dom de graça que nos torna livres e nos leva para a felicidade. «Minha alegria é fazer vossa vontade; eu não posso esquecer vossa palavra», afirma o salmista (v. 16); e depois: «Guiai meus passos no caminho dos vossos preceitos, pois só nele encontrarei felicidade» (v. 35); e ainda: «Quanto eu amo, ó Senhor, a vossa lei! Permaneço o dia inteiro a meditá-la» (v. 97). A Lei do Senhor, a sua Palavra, é o centro da vida do orante; aí encontra consolação, dela faz objeto de meditação e conserva-a no seu coração: «Conservei no coração vossas palavras, a fim de que eu não peque contra vós» (v. 11): este é o segredo da felicidade do salmista; e depois ainda: «Forjam calúnias contra mim os orgulhosos, mas de todo o coração vos sou fiel!» (v. 69).

A fidelidade do salmista nasce da escuta da Palavra, de conservá-la no íntimo, meditando-a e amando-a, precisamente como Maria, que «conservava, meditando-as no seu coração», as palavras que lhe tinham sido dirigidas e os acontecimentos maravilhosos em que Deus se revelava, pedindo o seu consentimento de fé (Lc 2,19.51). E se o nosso Salmo começa nos primeiros versículos, proclamando «feliz», «bem-aventurado» quem «na Lei do Senhor vai progredindo» (v. 1b) e «observa seus preceitos» (v. 2a), é ainda a Virgem Maria que completa a figura perfeita do crente descrito pelo salmista. Com efeito, ela é a verdadeira «bem-aventurada», assim proclamada por Isabel, porque «acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu» (Lc 1,45), e é dela e da sua fé que o próprio Jesus dá testemunho quando, à mulher que tinha gritado: «Feliz o ventre que te trouxe», responde: «Felizes são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática!» (Lc 11,27-28). Sem dúvida, Maria é feliz porque o seu ventre trouxe o Salvador, mas principalmente porque acolheu o anúncio de Deus e foi guardiã atenta e amorosa da sua Palavra.

Por conseguinte, o Salmo 118 desenvolve-se inteiramente ao redor desta Palavra de vida e de bem-aventurança. Embora o seu tema central seja a «Palavra» e a «Lei» do Senhor, ao lado destes termos recorrem em quase todos os versículos sinônimos como «preceitos», «decretos», «ordens», «ensinamentos», «promessa», «juízos»; e além disso muitos verbos a eles relacionados, como observar, guardar, compreender, conhecer, amar, meditar e viver. Todo o alfabeto se desenvolve através das 22 estrofes deste Salmo, e também todo o vocabulário da relação confiante do crente com Deus; aqui encontramos o louvor, a ação de graças, a confiança, mas também a súplica e a lamentação, porém sempre imbuídos da certeza da graça divina e do poder da Palavra de Deus. Também os versículos mais marcados pela dor e pelo sentido de obscuridade permanecem abertos à esperança e são permeados de fé. «A minha alma está prostrada na poeira, vossa palavra me devolva a minha vida!» (v. 25), reza confiante o salmista; «Fiquei tostado como um odre no fumeiro, mesmo assim não esqueci vossos preceitos.» (v. 83), é o seu clamor de crente. Mesmo sendo posta à prova, a sua fidelidade encontra força na Palavra do Senhor: «Esta será minha resposta aos que me insultam: “Eu conto com a palavra do Senhor!”» (v. 42), diz ele com firmeza; e inclusive diante da perspectiva angustiante da morte, os decretos do Senhor constituem o seu ponto de referência e a esperança de vitória: «Eles quase me arrancaram desta terra, mesmo assim eu não deixei vossos preceitos!» (v. 87).

A lei divina, objeto do amor apaixonado do salmista e de cada crente, é fonte de vida. O desejo de compreendê-la, de observá-la e de orientar para ela todo o seu ser é a característica do homem justo e fiel ao Senhor, que a «medita dia e noite» (Sl 1,2); trata-se de uma lei, a de Deus, que devemos conservar «no coração», como reza o famoso texto do Shemá no Deuteronômio:
“Ouve, Israel... Trarás gravadas em teu coração todas estas palavras que hoje te ordeno. Tu as repetirás com insistência aos teus filhos e delas falarás quando estiveres sentado em tua casa, ou andando pelos caminhos, quando te deitares, ou te levantares” (Dt 6,4.6-7).

Centro da existência, a Lei de Deus exige a escuta do coração, uma escuta feita de obediência não servil, mas filial, confiante e consciente. A escuta da Palavra é encontro pessoal com o Senhor da vida, um encontro que deve traduzir-se em escolhas concretas e tornar-se caminho e seguimento. Quando lhe perguntam o que é necessário fazer para alcançar a vida eterna, Jesus aponta o caminho da observância da Lei, mas indicando o modo de fazê-lo para lhe dar cumprimento: «Só uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me!» (Mc 10,21 e paralelos). O cumprimento da Lei consiste em seguir Jesus, percorrer o caminho de Jesus, em companhia de Jesus.

Portanto, o Salmo 118 leva-nos ao encontro com o Senhor e orienta-nos para o Evangelho. Ele contém um versículo sobre o qual agora gostaria de meditar, o v. 57: «É esta a parte que escolhi por minha herança: observar vossas palavras, ó Senhor!». Também em outros Salmos o orante afirma que o Senhor é sua «parte», sua «herança»: «Ó Senhor, sois minha herança e minha taça», recita o Salmo 15 (v. 5a); «Deus é o apoio e o fundamento da minha alma, é minha parte e minha herança para sempre!», é a proclamação do fiel no Salmo 72 (v. 26b), e ainda, no Salmo 141, o salmista clama ao Senhor: «Sois vós meu abrigo, minha herança na terra dos vivos» (v. 6b).

O termo «parte» evoca o acontecimento da repartição da terra prometida entre as tribos de Israel, quando não foi atribuída aos levitas porção alguma de território, porque a sua «parte» era o próprio Senhor. Dois textos do Pentateuco são explícitos a este respeito, utilizando o termo em questão: «O Senhor disse a Aarão: “Nada possuirás na terra deles, e não terás parte alguma entre eles. Eu sou a tua parte e a tua herança no meio dos israelitas”», assim declara o Livro dos Números (Nm 18,20), e o Deuteronômio reitera: «Por isso, Levi não teve parte nem herança entre os seus irmãos: Deus é a sua herança, como lhe prometeu o Senhor, teu Deus» (Dt 10,9; cf. Dt 18,2; Gn 13,33; Ez 44,28).

Os sacerdotes, pertencentes à tribo de Levi, não podem ser proprietários de terras no país que Deus oferecia em herança ao seu povo, cumprindo a promessa feita a Abraão (cf. Gn 12,1-7). A posse da terra, elemento fundamental de estabilidade e de possibilidade de sobrevivência, era um sinal de bênção, porque implicava a possibilidade de construir uma casa, de aí ver crescer os próprios filhos, de cultivar os campos e de viver dos frutos da terra. Os levitas, mediadores do sagrado e da bênção divina, não podem ter, como os outros israelitas, este sinal exterior da bênção e esta fonte de subsistência. Inteiramente consagrados ao Senhor, devem viver apenas d’Ele, abandonados ao seu amor providencial e à generosidade dos seus irmãos, sem dispor de uma herança porque Deus é a sua parte da herança, Deus é a sua terra, que os faz viver em plenitude.

E agora o orante do Salmo 118 aplica a si mesmo esta realidade: «A minha herança é o Senhor!». O seu amor a Deus e à sua Palavra leva-o à escolha radical de possuir o Senhor como único bem e também de conservar as suas palavras com um dom inestimável, mais precioso que toda a herança e toda a posse terrena. Com efeito, o nosso versículo tem a possibilidade de uma dupla tradução e poderia ser apresentado também do seguinte modo: «Minha herança é observar vossas palavras, ó Senhor». As duas traduções não se contradizem, ao contrário, completam-se reciprocamente: o salmista afirma que a sua parte é o Senhor, mas que também conservar as palavras divinas é a sua herança, como depois dirá no v. 111: «Vossa palavra é minha herança para sempre, porque ela é que me alegra o coração!». Esta é a felicidade do salmista: a ele, assim como aos levitas, foi confiada como porção da herança a Palavra de Deus.

Caríssimos irmãos e irmãs, estes versículos são de grande importância também hoje, para todos nós. Em primeiro lugar para os sacerdotes, chamados a viver unicamente do Senhor e da sua Palavra, sem outras seguranças, possuindo-O como único bem e única fonte de vida verdadeira. É nesta luz que se compreende a livre escolha do celibato pelo Reino dos céus, a ser redescoberto na sua beleza e força. Mas estes versículos são importantes também para todos os fiéis, povo de Deus pertencente unicamente a Ele, «reino de sacerdotes» para o Senhor (1Pd 2,9; Ap 1,6; 5,10), chamados à radicalidade do Evangelho, testemunhas da vida trazida por Cristo, novo e definitivo «Sumo Sacerdote», que se ofereceu em sacrifício pela salvação do mundo (Hb 2,17; 4,14-16; 5,5-10; 9,11ss). O Senhor e a sua Palavra: eis a nossa «terra», na qual viver na comunhão e alegria.

Portanto, deixemos que o Senhor grave no nosso coração este amor pela sua Palavra, e que nos conceda tê-Lo, bem como a sua santa vontade, sempre no centro da nossa existência. Peçamos que a nossa prece e toda a nossa vida sejam iluminadas pela Palavra de Deus, lâmpada para os nossos passos e luz para o nosso caminho, como diz o Salmo 118 (v. 105), de tal modo que o nosso caminhar seja seguro, na terra dos homens. E Maria, que acolheu e gerou a Palavra, seja a nossa guia e o nosso conforto, estrela polar que indica o caminho da felicidade.

Então, também nós poderemos alegrar-nos na nossa oração, como o orante do Salmo 15, pelos dons inesperados do Senhor e a herança imerecida que nos coube como sorte:
«Ó Senhor, sois minha herança e minha taça,
meu destino está seguro em vossas mãos!
Foi demarcada para mim a melhor terra,
e eu exulto de alegria em minha herança!» (Sl 15,5-6).

O Papa abençoa com o Livro dos Evangelhos
(Missa de Início do Ministério Petrino, 2005)

Fonte: Santa Sé.

Confira também três Catequeses do Papa João Paulo II sobre este Salmo no contexto das Catequeses sobre os Salmos e Cânticos da Liturgia das Horasn. 21 e n. 63 (vv. 145-52) e n. 112 (vv. 105-112).

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