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quarta-feira, 11 de maio de 2022

Leitura litúrgica do Livro do Êxodo (1)

“Eu vi a aflição do meu povo e ouvi seu clamor” (Ex 3,7).

Em nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, em sintonia com o “Mês da Bíblia” da Igreja no Brasil, estudamos em setembro de 2020 o Livro do Deuteronômio (Dt).

Agora gostaríamos de retroceder um pouco e analisar um dos escritos mais importantes do Antigo Testamento (AT), que narra o início da história de Moisés e da peregrinação do povo de Israel pelo deserto: o Livro do Êxodo (Ex).

1. Breve introdução ao Livro do Êxodo

O Livro do Êxodo, o segundo dos rolos da Torá (Pentateuco), recebe este nome em grego (ἔξοδος), “saída”, devido ao mistério nele narrado: a libertação de Israel do Egito, seguida da aliança com Deus no monte Sinai, dois eventos fundamentais que constituem Israel enquanto povo.

Com efeito, enquanto no Gênesis a aliança é firmada entre Deus e indivíduos (Abraão, Isaac, Jacó...), no Êxodo, apesar da importância de Moisés como “mediador”, a aliança é entre Deus e seu povo: “Vós sereis o meu povo e Eu serei vosso Deus” (Ex 6,7).

Em hebraico, por sua vez, o livro é chamado we’elleh shemot (“estes são os nomes”), ou simplesmente shemot (“nomes”), primeira expressão que aparece no texto.

A passagem do Mar Vermelho
(Capela Redemptoris Mater, Vaticano)

Antes de tudo é preciso distinguir “o êxodo”, com letra minúscula, termo que se refere ao evento da saída de Israel do Egito, e “o Êxodo”, com letra maiúscula, isto é, o livro que narra esse acontecimento.

O Livro do Êxodo está claramente estruturado em três grandes partes, conforme o local onde a narrativa se desenrola, cada uma girando em torno de um grande tema teológico:
a) Ex 1,1–15,21: Israel no Egito - a libertação;
b) Ex 15,22–18,27: Israel a caminho pelo deserto - a assistência divina;
c) Ex 19–40: Israel junto ao monte Sinai (também chamado Horeb) - a aliança.

A terceira parte prossegue ao longo de todo o Livro do Levítico (Lv), até o capítulo 10 do Livro dos Números (Nm), quando o povo retoma a caminhada pelo deserto.

A primeira parte do Livro do Êxodo começa com um resumo da situação de Israel no Egito, intercalado com o início da história de Moisés (cap. 1–2), que, com efeito, será um dos personagens centrais da narrativa até o final do Pentateuco. Na sequência os capítulos 3–4 trazem o relato da vocação de Moisés, através do célebre episódio da “sarça ardente”, onde Deus “revela seu nome” como o “Deus dos pais” e como “Aquele que é” (Ex 3,6.13-15).

Para saber mais sobre o tetragrama sagrado YHWH e suas interpretações, confira nossa postagem sobre a devoção ao Santíssimo Nome de Jesus.

Nesta primeira parte predomina o gênero literário narrativo, que prossegue com os confrontos com o Faraó e as “dez pragas” (cap. 5–11), culminando na instituição da festa da Páscoa (Ex 12,1–13,16) e na travessia do mar Vermelho (Ex 13,17–15,21).

A segunda parte, mais breve, narra uma série de percalços durante a caminhada pelo deserto: a falta de água (Ex 15,22-27; 17,1-7) e de alimento (Ex 16) e os combates com outros povos (Ex 17,8-16), temas que serão retomados a partir de Nm 10.

A terceira parte, por sua vez, é marcada por dois “dípticos”:
- a aliança: sua ruptura, com o episódio do “bezerro de ouro” (cap. 19–24), e sua renovação (cap. 32–34);
- o santuário: seu projeto (cap. 25–31) e sua construção (cap. 35–40).

Neste terceiro bloco intercalam-se os gêneros literários narrativo e legislativo. Naturalmente o grande código de leis do Êxodo é o Decálogo, isto é, as “Dez Palavras” (Ex 20,1-17, retomados em Dt 5,1-22), seguido pelo “Código da Aliança” (Ex 20,22–23,33), que amplia o Decálogo com uma série de prescrições religiosas e sociais.

Para acessar a série de Catequeses do Papa Francisco sobre os Dez Mandamentos, proferidas entre junho e novembro de 2018, clique aqui.

Moisés com as tábuas do Decálogo (Rembrandt)

Os eventos descritos no Êxodo teriam ocorrido provavelmente em meados do século XIII a. C. (em torno ao ano de 1250 a. C.). É preciso ter presente, porém, que o Êxodo não é uma obra histórica no sentido moderno do termo, mas sim a narrativa de uma “história teológica”, de uma “história de salvação”. Sua redação, com efeito, foi bastante complexa, estendendo-se ao longo de séculos, na qual contribuíram distintas escolas teológicas.

Algumas perícopes do livro são tradicionalmente identificadas entre os escritos mais antigos da Bíblia, como o “cântico do mar” (Ex 15,1-18.21). Outras partes, por sua vez, teriam sido redigidas a partir do período da monarquia (pela chamada tradição javista), recolhendo tradições orais (por exemplo, sobre a vida de Moisés) e alguns conjuntos de leis, sobretudo de caráter social.

A redação final do livro teria ocorrido após o exílio da Babilônia (séc. VI-V), quando a tradição sacerdotal sistematizou sobretudo as leis relativas ao culto: a instituição da Páscoa, a construção do santuário e da arca da aliança...

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final desta postagem.

2. Leitura litúrgica do Êxodo: Composição harmônica

Como fizemos com o Deuteronômio e com os demais escritos estudados nesta série, analisaremos a leitura litúrgica do Livro do Êxodo a partir dos critérios propostos no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa: a composição harmônica e a leitura semicontínua [1]. Começamos pela composição harmônica, isto é, pelos textos escolhidos por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.

a) Celebração Eucarística

Seguindo o ciclo do Ano Litúrgico, começamos nosso percurso pelo Tempo da Quaresma, no qual nosso livro está presente em quatro celebrações.

O Êxodo aparece sempre como 1ª leitura do III Domingo da Quaresma. Nos domingos desse tempo, com efeito, “as leituras do Antigo Testamento referem-se à história da salvação (...). Cada ano há uma série de textos que apresentam os principais elementos desta história” [2].

Assim, no III Domingo da Quaresma do ano A lemos Ex 17,3-7 [3], no contexto da travessia do deserto, onde surge o problema da falta de água. Moisés, instruído por Deus, fere com sua vara um rochedo, donde brota uma fonte, episódio em seguida retomado pelo Sl 94 (95).

O simbolismo da água reaparece também no Evangelho da celebração: o encontro de Jesus com a mulher samaritana (Jo 4,5-42). Tanto a leitura quanto o Evangelho são aqui interpretados em chave batismal, uma vez que neste domingo se celebra o I Escrutínio dos catecúmenos em preparação aos sacramentos da Iniciação Cristã [4].

Além disso, dado o caráter batismal da própria Quaresma, os textos dos Domingos III a V do ano A são repropostos ad libitum (à escolha) durante a semana. Assim, a leitura de Ex 17,3-7 consta também como leitura à escolha para a III semana da Quaresma [5].

A água do rochedo
(Santuário Nacional de Aparecida)

Retornando ao ciclo dominical, no III Domingo da Quaresma do ano B lê-se Ex 20,1-17 (forma breve: Ex 20,1-3.7-8.12-17) [6], a proclamação dos Dez Mandamentos, cujo louvor será entoado em seguida pelo Sl 18 (19): “Os preceitos do Senhor são precisos, alegria ao coração...” (v. 9).

Por fim, no III Domingo da Quaresma do ano C proclama-se Ex 3,1-8a.13-15 [7], a teofania da sarça ardente, na qual Moisés recebe sua missão e Deus revela seu “Nome”.

Note-se que a cada ano lemos uma das partes do livro: “o deserto” no ano A, “o Sinai” no ano B e “o Egito” no ano C.

Ainda no Tempo da Quaresma, encontramos um texto do Êxodo nos dias de semana, nos quais “as leituras do Evangelho e do Antigo Testamento foram escolhidas de modo que tivessem uma relação mútua”, apresentando “diversos temas próprios da catequese quaresmal” [8].

Assim, na quinta-feira da IV semana da Quaresma lemos Ex 32,7-14 [9], no contexto da “quebra da aliança”, diante da qual Moisés intercede em favor do povo junto a Deus. No Evangelho desse dia, por sua vez, Jesus toma Moisés como testemunha de acusação contra aqueles que não creem n’Ele (Jo 5,31-47): “Se acreditásseis em Moisés, também acreditaríeis em mim, pois foi a respeito de mim que ele escreveu” (v. 46).

No coração do Ano Litúrgico, isto é, no Tríduo Pascal do Senhor Crucificado, Sepultado e Ressuscitado, a Igreja nos propõe duas leituras do Êxodo. Primeiramente, como 1ª leitura da Missa da Ceia do Senhor, proclama-se Ex 12,1-8.11-14 [10], a narrativa da instituição da Páscoa judaica.

A festa da Páscoa, celebrada na primeira lua cheia da primavera no hemisfério norte (dia 14 do mês de Nisã no calendário judaico), recolhe na verdade duas tradições: uma de origem agrícola, a “festa dos pães ázimos”, e outra de origem pastoril, com a imolação do cordeiro. A perícope recorda como as duas tradições se uniram, dando um novo sentido à festa: o memorial da libertação do Egito.

Vale recordar que antes da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II a perícope de Ex 12 era lida na Sexta-feira Santa, durante a Celebração da Paixão do Senhor, traçando o paralelo entre o sacrifício de Cristo na cruz e a imolação do cordeiro pascal.

Na Vigília Pascal na Noite Santa, por sua vez, o texto de Ex 14,15–15,1 é indicado como 3ª leitura [11], seguido pelo “cântico do mar” (Ex 15,1-18). A leitura dos capítulos 14 e 15 do Êxodo, com efeito, é atestada entre as leituras para esta noite santa ao menos desde o século VII.

Quando, por razões pastorais, se reduzem as leituras, este texto nunca pode ser omitido, dado ser caráter pascal e batismal [12], como exprime a oração após a leitura:

“Ó Deus, (...) como manifestastes outrora o vosso poder libertando um só povo da perseguição do Faraó, realizais agora a salvação de todas as nações, fazendo-as renascer nas águas do Batismo...” [13].

Passagem do Mar Vermelho (Ivan Aivazovsky)

Do início do Tempo Pascal passamos à sua conclusão, com a Vigília de Pentecostes, na qual a perícope de Ex 19,3-8a.16-20b [14] é a 2ª leitura quando se celebra a forma longa, ou a 1ª leitura à escolha na forma breve. O texto narra a promessa da aliança feita por Deus, que antecede a entrega dos Dez Mandamentos a Moisés.

Assim como a Páscoa, a festa de Pentecostes (palavra grega para “50º dia”) ou “Festa das Semanas” (por ser celebrada sete semanas depois da Páscoa) era originalmente uma celebração agrícola de ação de graças pela colheita. Posteriormente foi reinterpretada como um memorial da entrega do Decálogo e da aliança do Sinai.

A oração após a leitura na forma longa da Vigília, com efeito, estabelece a relação entre a aliança do Sinai e o Pentecostes do Novo Testamento através do simbolismo do fogo:

“Ó Deus, entre clarões de fogo destes na montanha do Sinai a antiga lei a Moisés, e hoje manifestastes a nova aliança no fogo do Espírito Santo...” [15].

Logo após o Pentecostes, já no Tempo Comum, a Igreja celebra algumas Solenidades do Senhor que de certa forma são um “eco “do Tempo Pascal, nas quais identificamos outras duas leituras do nosso livro em composição harmônica.

Primeiramente, na Solenidade da Santíssima Trindade, celebrada no domingo seguinte ao Pentecostes, proclama-se no ano A Ex 34,4b-6.8-9 [16], quando Deus se revela a Moisés através de um “credo de adjetivos” após a ruptura da aliança: “Deus misericordioso e clemente, paciente, rico em bondade e fiel” (v. 6).

Na Solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (Corpus Christi), celebrada na quinta-feira após o domingo da Trindade, lê-se no ano B Ex 24,3-8 [17], a conclusão da aliança do Sinai, com o sacrifício de novilhos e a aspersão do sangue sobre o povo: “Este é o sangue da aliança que o Senhor fez convosco” (v. 8).

Tal expressão faz um paralelo com a narrativa da instituição da Eucaristia no Evangelho (Mc 14,12-16.22-26): “Isto é o meu sangue, o sangue da aliança, que é derramado em favor de muitos” (v. 24).

A imolação do cordeiro pascal
(Santuário Nacional de Aparecida)

Concluímos aqui a primeira parte do nosso estudo sobre a leitura litúrgica do Livro do Êxodo. Na próxima postagem continuaremos analisando sua leitura em composição harmônica na Celebração Eucarística, nos demais sacramentos, nos sacramentais e na Liturgia das Horas.

AtualizaçãoPara acessar a 2ª parte da pesquisa, publicada no dia 18 de maio, clique aqui; para acessar a 3ª parte, publicada no dia 25 de maio, clique aqui.

Breve bibliografia sobre o Livro do Êxodo usada para esta postagem:

CLIFFORD, Richard J. Êxodo. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 129-159.

LÓPEZ, Félix Gárcia. O Livro do Êxodo. - in: O Pentateuco: Introdução à leitura dos cinco primeiros livros da Bíblia. São Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 109-177. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 3A.

MACCHI, Jean-Daniel. Êxodo. - in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 215-230.

TORRALBA, Juán Guillén. Êxodo. in: OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Antigo Testamento I. São Paulo: Ave Maria, 2002, pp. 113-177.

Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] ibid., p. 97.
[3] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[4] RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. Tradução portuguesa para o Brasil da edição típica. São Paulo: Paulus, 2001, p. 192.
[5] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, p. x.
[6] LECIONÁRIO I, p. x.
[7] ibid., p. x.
[8] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 97.
[9] LECIONÁRIO II, p. x.
[10] LECIONÁRIO I, p. x.
[11] ibid., p. x.
[12] cf. MISSAL ROMANO, Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 279.
[13] ibid., p. 280.
[14] LECIONÁRIO I, p. x.
[15] MISSAL ROMANO, p. 998.
[16] ibid., p. x.
[17] ibid., p. x.

Imagens: Wikimedia Commons e Centro Aletti.

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