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sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

História do Tempo da Quaresma

“É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação!” (2Cor 6,2).

Como vimos em postagens anteriores dedicadas à história do Ano Litúrgico, nos primeiros três séculos a única celebração cristã era a Páscoa: a Páscoa semanal, celebrada a cada domingo, dia do Senhor; e a Páscoa anual, celebrada no domingo após a primeira lua cheia da primavera (no hemisfério norte).

A Páscoa anual era precedida por dois dias de intenso jejum, a sexta-feira e o sábado, que dariam origem ao Tríduo Pascal. A partir do século IV, porém, esse jejum é estendido para um período de quarenta dias: a “Quadragesima” ou Quaresma.

1. As origens da Quaresma

Entre o final do século III e o início do século IV havia em Alexandria (Egito) um jejum de quarenta dias (τεσσαρακοστὴ), que iniciava na Festa da Teofania (Batismo do Senhor), no dia 06 de janeiro, como recordação do jejum de Jesus no deserto (Mt 4,1-11 e paralelos).

Jesus no deserto (Ivan Kramskoy)

O Concílio de Niceia (325) fala da “quadragesima paschae” como algo conhecido. Os estudiosos, porém, não estão de acordo se o Concílio se refere aqui aos 40 dias em preparação à Páscoa ou aos quarentas dias da Páscoa à Ascensão.

A Quaresma entendida como 40 dias de jejum em preparação penitencial para a Páscoa se populariza nas igrejas do Oriente e do Ocidente no início do século IV, como atestam, por exemplo:
- Eusébio de Cesareia (†340) em sua De sollemnitate paschali [1];
- Santo Atanásio de Alexandria (†373) em suas Cartas pascais [2];
- São Cirilo de Jerusalém (†386) em suas Catequeses pré-batismais [3];
- e a peregrina Etéria (ou Egéria), que visitou Jerusalém no final do século IV: “Quando chegam os dias pascais, celebram-se assim: tal como entre nós se observam quarenta dias antes da Páscoa...” [4].

O simbolismo do número quarenta, com efeito, é amplamente testemunhado na Escritura. Além do jejum de 40 dias de Jesus, que citamos acima (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 540), temos:
- os 40 dias do dilúvio (Gn 7–8);
- os 40 anos da peregrinação de Israel no deserto (Ex 16,35; Dt 2,7; 8,2; 29,4; Sl 94/95);
- os 40 dias de Moisés sobre o Sinai (Ex 24,18);
- os 40 dias da peregrinação do profeta Elias ao monte Horeb (1Rs 19,8);
- os 40 dias da penitência da cidade de Nínive (Jn 3,4) [5].

Apesar da clara associação com o número quarenta, donde o nome Quaresma (Quadragesima, em latim), a forma de contar os 40 dias, porém, variou ao longo do tempo e conforme as diversas igrejas.

No Rito Romano, esse tempo originalmente começava no I Domingo da Quaresma (In capite Quadragesimae), o sexto domingo antes da Páscoa, e terminava na quinta-feira antes da Páscoa (Quinta-feira Santa).

O início da Quaresma era provavelmente marcado por uma vigília noturna entre o sábado e o domingo. Uma vez que durante esse tempo se omitem certos sinais de louvor, sobretudo o Aleluia (“jejum dos ouvidos”), o 1º Domingo da Quaresma era marcado pela “despedida do aleluia” (posteriormente antecipada para o domingo da Septuagésima, como veremos adiante).

Para saber mais sobre a despedida do aleluia, clique aqui.

A passagem pelo Mar Vermelho (Lidia Kozenitzky):
início da peregrinação de Israel pelo deserto

Na contagem dos 40 dias da Quaresma, porém, logo foram excluídos os domingos, dia consagrado à memória da Ressurreição do Senhor, no qual os cristãos tradicionalmente não jejuam.

Assim, entre o século V e o século VIII seriam acrescentados à contagem os quatro dias anteriores ao I Domingo da Quaresma, da quarta-feira ao sábado, além da sexta-feira e do sábado antes da Páscoa, de modo a completar 40 dias de jejum.

Nos demais Ritos Ocidentais (Ambrosiano e Hispano-Mozárabe), porém, conserva-se o início da Quaresma no sexto domingo antes da Páscoa.

2. A Quaresma, itinerário batismal e penitencial

A Quaresma está diretamente relacionada a duas “instituições” da Igreja primitiva: o catecumenato e a penitência pública.

Antes de tudo a Quaresma era o período de preparação próxima dos catecúmenos para a recepção dos sacramentos da Iniciação Cristã na Vigília Pascal. Assim, durante esse tempo tinham lugar, por exemplo, os “escrutínios”, acompanhados pela proclamação os Evangelhos da samaritana (Jo 4,5-42), da cura do cego de nascença (Jo 9,1-41) e da ressurreição de Lázaro (Jo 11,1-45).

Com o tempo, o catecumenato cede espaço ao Batismo de crianças, administrado ao longo de todo o ano e não apenas na Vigília Pascal. Assim, o caráter batismal da Quaresma permaneceu por muitos séculos em “segundo plano”. Não obstante, os fiéis eram exortados a preparar-se durante a Quaresma para a solene renovação das promessas batismais na Vigília Pascal.

Como vimos em nossa postagem sobre a história da Quarta-feira de Cinzas, a partir do século IV desenvolve-se um rigoroso itinerário penitencial para os pecadores públicos, que iniciava na segunda-feira da I semana da Quaresma e concluía na manhã da Quinta-feira Santa, com o rito da reconciliação dos penitentes.

O início desse itinerário penitencial era marcado pela imposição das cinzas, inicialmente na segunda-feira da I semana e depois transferida para a quarta-feira in capite ieiunni (no início do jejum). Com a extensão do rito da imposição das cinzas a todos os fiéis no século X, esse dia passa a ser conhecido como dies cinerum (dia das cinzas) ou feria quarta cinerum (quarta-feira de cinzas).

A Quaresma, tempo favorável para subir ao monte santo da Páscoa

O caráter penitencial da Quaresma foi reforçado ainda com a instituição das “estações quaresmais romanas”: a celebração da Missa nas principais igrejas de Roma precedida de uma procissão penitencial, sobretudo nas quartas, sextas e sábados.

3. O Tempo da Septuagésima e o Tempo da Paixão

A partir dos séculos VI e VII, surgiu paulatinamente uma “pré-Quaresma” de três semanas. Assim, os três domingos anteriores ao início da Quaresma foram denominados, de maneira aproximativa, domingos da Quinquagésima, da Sexagésima e da Septuagésima.

Também nos ritos orientais há uma espécie de “pré-Quaresma” de quatro domingos, nos quais os Evangelhos proclamados vão pouco a pouco introduzindo os fiéis no Mistério Pascal.

No Ocidente, porém, essa ampliação da Quaresma surgiu provavelmente em ambiente monástico, para enfatizar o caráter penitencial desse tempo. Assim, o número simbólico de “setenta dias” foi interpretado em alusão aos setenta anos do cativeiro do povo de Israel na Babilônia (Jr 25,11; 29,10).

Também no século VII a Quaresma propriamente dita foi reduzida a quatro semanas, com as últimas duas semanas antes da Páscoa passando a integrar o Tempo da Paixão. Assim, o V Domingo da Quaresma tornou-se o I Domingo da Paixão e o Domingo de Ramos o II Domingo da Paixão.

Esse Tempo da Paixão, além dos textos próprios, que enfatizavam já o Mistério Pascal, era marcado sobretudo pelo uso de cobrir as imagens e as cruzes da igreja com panos roxos. Em alguns lugares, a partir do século XI, todo o presbitério era coberto por uma grande cortina roxa, denominada “véu quaresmal” (velum quadragesimale) ou “véu de jejum”.

Esse “jejum dos olhos” era interpretado em alusão a Jo 8,59: “Então eles pegaram em pedras para apedrejar Jesus, mas ele escondeu-se e saiu do Templo”. Atualmente tal gesto é facultativo a partir do V Domingo da Quaresma, sendo prescrito apenas a partir do final da Missa da Ceia do Senhor, na Quinta-feira Santa [6].

O véu quaresmal (fastentuch) na Catedral de Dresden (Alemanha)

4. A Quaresma hoje

A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II (1962-1965) quis recuperar o caráter original da Quaresma, à luz da Constituição Sacrosanctum Concilium, que exortou a resgatar a dupla dimensão desse tempo, ao mesmo tempo batismal e penitencial (nn. 109-110).

Por essa razão, o Tempo da Septuagésima foi suprimido, sendo suas orações e leituras acolhidas no Tempo Comum (Tempus per annum). Também foi suprimido o Tempo da Paixão, embora a V semana da Quaresma e a Semana Santa conservem vários textos próprios (prefácio da Paixão, hinos, etc.).

Assim, a Quaresma inicia com a Quarta-feira de Cinzas (quarta-feira da sétima semana antes da Páscoa) e termina na tarde da Quinta-feira Santa, antes da Missa da Ceia do Senhor (com a qual tem início o Tríduo Pascal) [7].

“O Tempo da Quaresma visa preparar a celebração da Páscoa; a Liturgia quaresmal, com efeito, dispõe para a celebração do Mistério Pascal tanto os catecúmenos, pelos diversos graus de iniciação cristã, como os fiéis, pela comemoração do Batismo e pela penitência” (Normas Universais sobre o Ano Litúrgico e o Calendário, n. 27) [8].

A reforma litúrgica recuperou o itinerário catecumenal da Quaresma, com os Evangelhos da samaritana, do cego de nascença e da ressurreição de Lázaro, como vimos anteriormente. Esses Evangelhos são proclamados nos domingos III a V da Quaresma do ano A, podendo ser retomados sempre que na comunidade há catecúmenos [9].

Nos dois primeiros domingos da Quaresma, por sua vez, leem-se respectivamente os relatos das tentações de Jesus no deserto e da Transfiguração, conforme os três Evangelhos Sinóticos (MateusMarcos e Lucas).

Além da “Quaresma batismal” do ano A, os domingos III a V dos outros dois anos possuem sua respectiva série de Evangelhos: uma “Quaresma cristológica” no ano B e uma “Quaresma penitencial” no ano C.

As tentações de Jesus no deserto (Duccio):
Evangelho do I Domingo da Quaresma

Nos dias feriais até o final da III semana os textos bíblicos refletem sobre diversos “temas” próprios da espiritualidade quaresmal. A partir da IV semana começa uma leitura semicontínua do Evangelho de João, que prossegue durante o Tempo Pascal.

Vale destacar ainda os nove hinos próprios para esse tempo na Liturgia das Horas:

Domingos do Tempo da Quaresma
Vésperas: Audi, benígne Cónditor (Ó Pai, nesta Quaresma)
Ofício das Leituras: Ex more docti mýstico (Seguindo o preceito místico)
Laudes: Precémur omnes cérnui (Humildes ajoelhados)

Dias de semana do Tempo da Quaresma
Vésperas: Iesu, quadragenáriae (A abstinência quaresmal)
Ofício das Leituras: Nunc tempus acceptábile (Agora é tempo favorável)
Laudes: Iam, Christe, sol iustítiae (Ó Cristo, sol de justiça)

Tempo da Quaresma: Hora Média
Hora Terça (9h): Dei fide, qua vívimus (Na fé em Deus, por quem vivemos)
Hora Sexta (12h): Qua Christus hora sítiit (Na mesma hora em que Jesus, o Cristo)
Hora Nona (15h): Ternis ter horis números (O número sagrado)

Apesar da grande riqueza de leituras, orações e hinos da Quaresma renovada pelo Concílio Vaticano II, ainda há muito a se fazer para que os fiéis descubram o sentido desse tempo em plenitude, sobretudo o seu caráter batismal:

“No âmbito da piedade popular o sentido mistérico da Quaresma não é facilmente percebido e não são colhidos alguns de seus grandes valores e ‘temas’, tais como a relação entre o ‘sacramento de quarenta dias’ e os sacramentos da iniciação cristã, como também o mistério do ‘êxodo’ presente ao longo de todo o itinerário quaresmal” (Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, n. 124) [10].

Com efeito, a piedade popular quaresmal centra-se nos mistérios da Paixão e Morte do Senhor. Ainda que legítima, essa contemplação exprime apenas uma parte do mistério da Quaresma (cf. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia, nn. 128-129).

Além disso, a famigerada “Campanha da Fraternidade” divide ainda mais a atenção dos fiéis, com reflexões (ainda que legítimas) que pouco ou nada têm a ver com a ampla riqueza bíblica, teológica e espiritual da Quaresma.

Para saber em que momento cantar o hino da Campanha da Fraternidade nas celebrações da Quaresma conforme as orientações da própria CNBB, clique aqui.


Notas:

[1] EUSÉBIO DE CESAREIA. Sobre a Páscoa (De sollemnitate paschali): “Quanto a nós, celebramos de novo, em cada ano, o início do jejum segundo o seu regresso cíclico, e empenhamo-nos, em ordem à preparação, num exercício de quarenta dias que precedem a festa...” (in: CORDEIRO, José de Leão [org.]. Antologia Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio. Secretariado Nacional de Liturgia: Fátima, 2003, p. 354).

[2] cf. ATANÁSIO DE ALEXANDRIA, Cartas pascais (Epistulae festales); in: CORDEIRO, op. cit., p. 385.

[3] CIRILO DE JERUSALÉM. Catequeses pré-batismais (Protocatechesis): “Tens um período de quarenta dias de penitência” (in: CORDEIRO, op. cit., p. 470).

[4] ETÉRIA. Peregrinação ou diário de Viagem (Itinerarium ad loca sancta); in: CORDEIRO, op. cit., p. 451.

[5] Sobre o simbolismo bíblico e teológico dos números, cf.:
HEINZ-MOHR, Gerd. Dicionário dos Símbolos: Imagens e sinais da arte cristã. São Paulo: Paulus, 1994, pp. 340-348.
LÉON-DUFOUR, Xavier et al. Vocabulário de Teologia Bíblica. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, pp. 672-675.
LURKER, Manfred. Dicionário de figuras e símbolos bíblicos. São Paulo: Paulus, 1993, pp. 160-163.

[6] Carta Circular Paschalis Sollemnitatis, n. 26. As cruzes permanecem cobertas até o final da Celebração da Paixão do Senhor, na Sexta-feira Santa, e as imagens até o início da Vigília Pascal (cf. CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. Paschalis Sollemnitatis: A preparação e celebração das festas pascais. Brasília: Edições CNBB, 2018, p. 15. Coleção: Documentos da Igreja, n. 38).

[7] Sobre a reforma da Quaresma, cf. BUGNINI, Annibale. A reforma litúrgica: 1948-1975. São Paulo: Paulinas; Paulus; Loyola, 2018, pp. 272.282.

[8] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 105.

[9] Paschalis Sollemnitatis, n. 24 (CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO, op. cit., 2018, pp. 14-15).

[10] CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 112.

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 66-72.

AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 155-159.190-191.

BERGAMINI, Augusto. Cristo, Festa da Igreja. O Ano Litúrgico. São Paulo: Paulinas, 1994, pp. 265-267.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, vol. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 736-743.

THURSTON, Herbert. Lent. in: The Catholic Encyclopedia, vol. 9, 1910. Disponível em: New Advent.

3 comentários:

  1. Andre, boa noite.
    Pode fazer novena nas missaa semanais e dominicais durante a quaresma? Por exemplo: Dia 19/03 Sao Jose...

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    1. Depende da forma como está organizada a novena. E isso vale para qualquer tempo litúrgico, não só para a Quaresma.
      O Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia indica no n. 13 que não se deve misturar práticas de piedade com as ações litúrgicas.
      O ideal, portanto, é que a novena seja rezada fora da Missa, sobretudo se essa é composta por várias orações. Se for uma novena mais simples, com apenas uma breve oração, até poderia ser recitada no final da Missa, antes da bênção, ou na conclusão das Preces.

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  2. Novena de Sao Jose...sei q missas votivas nao podem, mas e as novenas?

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