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quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Hinos da Memória dos Anjos da Guarda: Ofício das Leituras

Após a Festa dos Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael, no dia 29 de setembro, a Igreja de Rito Romano celebra a Memória dos Santos Anjos da Guarda, no dia 02 de outubro.

Uma vez que já apresentamos aqui em nosso blog os três hinos da Festa dos Arcanjos para a Liturgia das Horas [1], cabe-nos agora falar dos hinos indicados para a Memória dos Santos Anjos da Guarda, cuja história também já abordamos aqui em nosso blog.

Os três hinos dessa Memória são:
Ofício das Leituras: Aetérne rerum cónditor (Eterno Autor do mundo);
Laudes: Orbis patrátor óptime (Ó Deus, criando o mundo);
Vésperas: Custódes hóminum psállimus (Aos anjos cantemos).

Anjo da Guarda - Catedral de Sevilha, Espanha
(Bartolomé Esteban Murillo - séc. XVII)

Começamos pelo hino do Ofício das Leituras, Aetérne rerum cónditor (Eterno Autor do mundo), composição anônima do século XV. Confira a seguir seu texto original em latim e sua tradução oficial para o português do Brasil, além de alguns comentários sobre a sua teologia.

Ofício das Leituras: Aetérne rerum cónditor

Aetérne rerum cónditor,
qui mare, solum, aethera
gubérnas, iustus rédditor
cunctis secúndum ópera,

Supérbum qui iam spíritum
eiúsque cunctos cómplices
condémnans in intéritum,
veros firmásti súpplices,

Precámur te fidéntius,
hos defensóres dírige,
nobis per quos propítius
salútis dona pórrige.

Nos consolándo vísitent,
purgent, inflámment, dóceant,
ad bona semper íncitent,
vim daemonum coérceant.

O angelórum glória,
secúro gressu pérgere
fac horum nos custódia,
ut te possímus cérnere.

Sint, angelórum Dómine,
honóris tibi cántica,
qui miro praebes órdine
illis nobísque caelica. Amen [2].

Ícone bizantino do Anjo da Guarda (séc. XIX)

Ofício das Leituras: Eterno Autor do mundo

Eterno Autor do mundo,
que o céu e o mar guiais,
segundo as nossas obras,
Rei justo, nos pagais.

O espírito soberbo
às trevas condenastes
com muitos companheiros,
e aos anjos bons firmastes.

Tais anjos enviai-nos,
e dai-lhes por missão
guiar os nossos passos
até à salvação.

Que venham consolar-nos,
mostrar-nos vosso amor,
guiar-nos para o bem,
vencendo o tentador.

Guiai-nos pelos Anjos,
ó Deus, durante a vida.
Por sua mão nos levem
à glória prometida.

A vós, Deus Uno e Trino,
louvor e todo o bem.
Possamos, com os Anjos,
nos céus vos ver. Amém [3].

Comentário:

Iniciamos esse breve percurso pelos hinos da Memória dos Santos Anjos da Guarda com o hino do Ofício das Leituras, composição anônima do século XV. Como vimos em nossa postagem sobre a história do seu culto, é a partir desse século que as celebrações em honra dos Anjos da Guarda começam a difundir-se.

O poema é composto por seis estrofes de quatro versos, com rimas alternadas (os versos ímpares rimam entre si (1-3), assim como os versos pares 2-4). Na tradução oficial para o português do Brasil, porém, foram conservadas apenas as rimas entre os versos pares (algo compreensível, uma vez que é preciso adaptar o texto a outra língua).

a) 1ª estrofe

A 1ª estrofe do nosso hino compõe a “introdução”, na qual fica claro que a composição é dirigida a Deus como Criador.

Esta é uma escolha bastante compreensível, que será retomada no hino das Laudes, uma vez que a fé na existência dos anjos é uma consequência da fé em Deus como “criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis” (Credo Niceno-Constantinopolitano). Ver, nesse sentido, os nn. 325-336 do Catecismo da Igreja Católica.

Deus cria os anjos
(Mosaico da Catedral de Monreale, Itália - séc. XII-XIII)

Sobre o “tema” de “Deus como criador”, bastante frequente nos hinos da Liturgia das Horas, é preciso esclarecer que a criação não é um ato isolado do Pai, mas sim obra da Trindade (cf. nn. 290-292 do Catecismo). Portanto, o destinatário do hino é o “Deus Uno e Trino”, como indica a última estrofe.

O Pai e o Filho e o Espírito Santo são invocados aqui como “Aetérne rerum cónditor”, “Eterno criador (ou autor) das coisas”, isto é, do mundo (de tudo, segundo a tradução inglesa: “Eternal Creator of all”).

A estrofe, porém, não canta apenas o mistério de Deus como criador, mas também como “senhor” ou “sustentador” de todo o criado: “qui mare, solum, aethera gubérnas”, “que governas o mar, a terra e o céu”.

Por fim, a estrofe conclui com uma referência à “justiça divina”: “iustus rédditor cunctis secúndum ópera” - “que recompensa a cada um segundo as suas obras” (cf., por exemplo, Jr 17,10; Mt 16,27).

Esta afirmação não deve ser entendida segundo a lógica da “teologia da retribuição”, condenada já no Antigo Testamento (sobretudo no Livro de Jó), mas sim como uma exortação a refletirmos sobre as consequências das nossas ações. A reflexão se esclarece melhor na estrofe seguinte, sobre a “queda dos anjos”.

b) 2ª estrofe

A 2ª estrofe inicia o “corpo do hino”, que se estende até a 5ª estrofe. Trata-se sobretudo de uma grande súplica para que Deus nos envie seus anjos para guiar-nos no caminho.

Antes dessa súplica, porém, como afirmamos, o hino nos recorda a “queda dos anjos” (cf. Catecismo, nn. 391-395), unindo-a ao tema da “justiça divina”.

Queda dos anjos rebeldes
(Mestre anônimo do séc. XIV)

O Satanás ou Diabo é chamado aqui de “espírito soberbo” (“supérbum spíritum”) que, com todos os seus cúmplices (“eiúsque cunctos cómplices”), rejeitaram a Deus de maneira radical.

Deus, portanto, os condenou à destruição ou à ruína (“condémnans in intéritum”), não como deficiência da sua infinita misericórdia, mas como consequência da rejeição eterna desses “anjos caídos” a Deus.

Ao mesmo tempo, Deus confirma ou fortalece os anjos fiéis, referidos aqui como “os suplicantes verdadeiros”, “os que suplicam com coração sincero” (“veros firmásti súpplices”). É a sua intercessão que é invocada nas próximas duas estrofes.

c) 3ª estrofe

Precámur te fidéntius” - “Te suplicamos com confiança”: assim começa a súplica da 3ª estrofe, pedindo a Deus que “envie-nos esses defensores” ou “guardiões” (“hos defensóres dirige”), isto é, os anjos fiéis mencionados na estrofe anterior.

Através da intercessão dos anjos, suplicamos que Deus “nos conceda, benigno, os dons da salvação” (“nobis per quos propítius salútis dona pórrige”). A tradução brasileira expressa essa mesma súplica de uma maneira ligeiramente distinta: pede-se a Deus que dê aos anjos como missão “guiar os nossos passos até à salvação”.

Recordemos a célebre frase de São Basílio Magno, citada no Catecismo (n. 336): “Cada fiel tem ao seu lado um anjo como protetor e pastor, para conduzi-lo à vida” (cf. Ex 23,20).

d) 4ª estrofe

Prosseguindo com as súplicas, a 4ª estrofe é quase uma “ladainha” de verbos: que os anjos “visitem-nos consolando, purificando, inflamando (na caridade), ensinando...” (“Nos consolándo vísitent, purgent, inflámment, dóceant”). A tradução oficial para o Brasil, porém, conserva apenas três verbos: “que venham consolar-nos, mostrar-nos vosso amor”.

Vale recordar aqui a célebre oração “Santo Anjo do Senhor” (Angele Dei), que também comporta uma série de verbos: “rege, guarda, governa, ilumina”.

O Anjo da Guarda aponta o caminho à alma (representada como uma criança)
(Karlovice, República Tcheca)

Os últimos dois versos dessa estrofe pedem ainda que os anjos “incitem-nos sempre ao bem” e “reprimam a coerção dos demônios” (“ad bona semper íncitent, vim daemonum coérceant”). A “força” ou “poder” dos demônios, com efeito, é expressa através da “coerção”, isto é, da tentação.

e) 5ª estrofe

Concluindo a série de súplicas que constitui o “corpo do hino”, a 5ª estrofe começa dirigindo-se a Deus como “glória dos anjos” (angelórum glória). Recordemos que no hino das Vésperas da Festa dos Arcanjos, Angelum pacis Míchael, Jesus é referido como “decus angelórum”, isto é, “glória” ou “honra” dos anjos.

A súplica dessa estrofe remete aos dados bíblicos sobre os anjos da guarda (cf. Ex 23,20; Sl 90,11): “secúro gressu pérgere fac horum nos custódia, ut te possímus cérnere” - “faz com que, sob a sua proteção (dos anjos), perseveremos no caminho seguro, para que possamos contemplar-te (a Deus)”.

f) 6ª estrofe

Por fim, como de costume nos hinos da Liturgia das Horas, a última estrofe compõe a conclusão do poema na forma de uma doxologia, isto é, uma breve fórmula de louvor.

Como todo o nosso hino, a conclusão é dirigida à Trindade, como especifica a tradução brasileira: “A vós, Deus Uno e Trino”. No original, por sua vez, Deus é referido aqui como “Senhor dos anjos”: “Sint, angelórum Dómine, honóris tibi cántica” - “A ti, Senhor dos anjos, seja dada a honra deste cântico”.

Os dois últimos versos concluem a composição com um alcance escatológico: “qui miro praebes órdine illis nobísque caelica” - “que maravilhosamente concedes a eles (aos anjos) e a nós as moradas celestes”.

A tradução brasileira, por sua vez, exprime essa verdade de fé como uma súplica: “A vós, Deus Uno e Trino, louvor e todo o bem. Possamos, com os Anjos, nos céus vos ver. Amém”.

O Anjo da Guarda conduz a alma à Santíssima Trindade
(Francesco de Mura - séc. XVIII)

Notas:
[1] Hinos da Festa dos Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael:
Ofício das Leituras: Festíva vos, archángeli (Arcanjos, para vós);
Laudes: Tibi, Christe, splendor Patris (Ó Cristo, Luz de Deus Pai);
Vésperas: Angelum pacis Míchael (Lá do alto enviai-nos, ó Cristo).


[3] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. IV, pp. 1334-1335.

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