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terça-feira, 18 de maio de 2021

Reciprocidade entre fé e sacramentos (2): Introdução

Como vimos na postagem anterior, no ano de 2020 a Comissão Teológica Internacional publicou um documento intitulado "A Reciprocidade entre a Fé e os Sacramentos na Economia Sacramental". Por sua relevância para a Liturgia e por sua extensão (195 parágrafos), vamos propor este importantíssimo Documento aqui no blog dividido em seis partes.

Segue, pois, a segunda parte, com a conclusão do capítulo II (nn. 42-79), que começamos a apresentar na postagem anterior (nn. 1-41):

Comissão Teológica Internacional
A Reciprocidade entre a Fé e os Sacramentos na Economia Sacramental

Sumário:
2. Natureza dialogal da economia sacramental da salvação
2.2 A reciprocidade entre a fé e os sacramentos da fé
    a) Luzes a partir do caminho da fé dos discípulos
    b) Modulações de fé
    c) Reciprocidade entre fé e sacramentos
    d) Natureza dialogal dos sacramentos
    e) O organismo sacramental
    f) A reciprocidade entre fé e os sacramentos na economia sacramental
2.3 Conclusão: dinamismos da fé e da sacramentalidade

2.2 A reciprocidade entre a fé e os sacramentos da fé

a) Luzes a partir do caminho de fé dos discípulos

42. [Crescimento da fé]. Pedro, como porta-voz dos discípulos, diante da pergunta de Jesus, formula uma confissão de fé: “Tu és o Cristo” (Mc 8,29 e paralelos). No entanto, Pedro teve que amadurecer essa fé inicial, pois quando Jesus começa a explicar que ele é um Messias no estilo do Filho do Homem sofredor, um Messias que será crucificado, Pedro o rejeita e Jesus o repreende duramente (Mc 8,31-33). Assim, Pedro teve que realizar um caminho de crescimento na fé, combinando sua adesão incondicional a Jesus como Cristo com o conhecimento dos aspectos doutrinários que isso implicava. Isso não concerne apenas a Pedro, mas reflete a realidade de cada fiel. Os próprios Apóstolos nos mostram o caminho com seu pedido ao Senhor: “Aumenta em nós a fé” (Lc 17,5). Paulo exorta a esse crescimento gradual e conta com ele, pois se refere à “medida de fé que Deus dispensou a cada um” (Rm 12,3; cf. 12,6). Ele também admoesta os cristãos de Corinto, a quem ele deve tratar como “crianças em Cristo”, dando-lhes “leite” em lugar de alimento sólido (cf. 1Cor 3,1-2). A Carta aos Hebreus ecoa essa diferença falando aos membros da comunidade cristã (cf. Hb 5,11-14). Indo além dos rudimentos básicos da doutrina e fé cristãs, o alimento sólido se destina aos fiéis que, em seu caminhar como cristãos, se exercitam no discernimento do bem e do mal, a aqueles cuja toda existência está iluminada pela luz da fé [47].
43. Os discípulos e outros admiradores de Jesus, a multidão, captaram algo especial na figura de Jesus antes da Páscoa. Em particular, no contexto das curas, se fala de uma “fé”. A fenomenologia que encontramos é bastante variada: Jesus realiza milagres sem menção expressa à fé (por exemplo, Mc 1,14-45; 3,1-6; 6,33-44); graças à fé daqueles que intercedem em nome de outra pessoa (Mc 2,5; Lc 7,28-29); apesar de uma fé que se considera a si mesma débil (Mc 9,24); ou, precisamente, graças à fé (Mc 5,34). Aos discípulos de muitas maneiras pede que cresçam na fé (Mt 6,30; 8,26; 14,31; 16,8; 17,20), na fé em Deus e em seu poder (Mc 12,24) e na compreensão do lugar singular de Jesus dentro do plano de Deus (Jo 14,1).
44. A Morte de Jesus pôs a prova essa adesão inicial dos discípulos. Todos se dispersaram e fugiram (Mc 14,50). As mulheres, que se dirigiram ao túmulo muito cedo pela manhã, foram com a intenção de ungir o cadáver (Mc 16,1-2). Contudo, com a novidade da Ressurreição e o dom do Espírito prometido (Jo 14,16-17.26), a fé dos discípulos se fortalece, a ponto de poderem iniciar outros e fortalecê-los em sua fé (Jo 21,15-18; Lc 22,32). Com o Pentecostes culmina o caminho da fé dos discípulos. Não apenas aderem totalmente a Jesus, Morto e Ressuscitado, como o Senhor e o Filho do Deus vivo, mas também se tornam testemunhas audazes, cheios de parresia, capazes de falar dos feitos de Deus e transmitir a fé em todas as línguas, graças ao Espírito. Agora eles serão testemunhas, inclusive mártires, proclamando Jesus como o Messias Crucificado e Ressuscitado, Filho do Deus vivo, Senhor dos vivos e dos mortos. Nesta imagem de fé, a adesão crente a Jesus inclui o conteúdo doutrinal da Ressurreição e o desdobramento de seu significado. Segundo as fontes, esse passo para a fé na Ressurreição não foi fácil nem automático, principalmente para aqueles que, como nós, não se beneficiaram de uma aparição do Ressuscitado (Tomé: Jo 20,24-29). A perícope de Emaús (Lc 24,13-35) fornece algumas chaves valiosas para iniciar outras pessoas no caminho da fé [48]: andar em sintonia com aqueles que, mesmo decepcionados, manifestam alguma inquietude; escutar suas preocupações e acolhê-las; respondê-las pacientemente à luz da história da salvação refletida na Escritura, estimulando o desejo de conhecer mais e melhor o desígnio de Deus. Assim, se abre o caminho para uma fé que amadurece nas dimensões sacramental e eclesial, próprias da fé.

Emaús: Itinerário de fé

45. [Necessidade de discernir com paciência]. A Bíblia, reflexo da história da salvação, apresenta uma série de situações em que a fé, como uma realidade dinâmica e vital, com avanços e contratempos, se encontra em múltiplas posições, desde a busca de um benefício tangível, que visa exclusivamente o interesse pessoal, até a generosidade extrema de amor confessado. Jesus rejeitou taxativamente a hipocrisia (por exemplo, Mc 8,15), apelou à conversão e a crer no Evangelho (cfMc 1,15), mas acolheu com magnanimidade a muitos que acorriam a Ele desejosos de alguma forma da salvação de Deus. Por isso, o valor da fé incipiente deve ser apreciado, a fé que está a caminho do amadurecimento, a fé que, em seu desejo de conhecer a Deus, não exclui perguntas não resolvidas e vacilações, a fé imperfeita que encontra alguma dificuldade em aderir à totalidade dos conteúdos que a Igreja mantém como revelados. O trabalho de todos os agentes de pastoral é ajudar no crescimento da fé, seja qual for o estágio, para que vá descobrindo o rosto completo de Cristo e aderindo aos elementos doutrinários que incluem a fiel adesão pela fé ao Senhor Morto e Ressuscitado. Devido a essa diversidade, não é exigida a mesma fé para todos os sacramentos ou nas mesmas circunstâncias da vida.

b) Modulações de fé

46. ​​[Necessidade de alguns esclarecimentos]. A reflexão clássica sobre a fé e os sacramentos destacou a articulação tanto da irrevogabilidade do dom de Cristo (ex opere operato) como das disposições necessárias para uma recepção válida e fecunda dos sacramentos. Essas disposições são mal compreendidas já na sua origem se forem consideradas como obstáculos arbitrariamente impostos para desanimar ou tornar mais difícil o acesso aos sacramentos. Tampouco têm a ver com um “elitismo”, que desprezaria a fé dos simples. Trata-se, simplesmente, de destacar as disposições interiores do fiel para receber o que Cristo gratuitamente quer doar nos sacramentos. Ou seja, o que se manifesta nessas disposições é a combinação adequada entre a fé e os sacramentos da fé: que tipo de fé pede os sacramentos da fé por sua própria natureza?
Sem perder os ganhos obtidos ao longo da reflexão teológica, é conveniente expor alguns dos vários aspectos da fé pessoal, para depois discernir, nos capítulos seguintes, como eles entram em cena na celebração sacramental entendida como um encontro dialogal.

47. [Dimensão teologal]. A particularidade da fé é que ela está expressamente inscrita no relacionamento com Deus. A teologia distingue diferentes aspectos dentro do único ato de fé [49]. Assim se diferencia entre credere Deum, crer Deus, que se refere ao elemento cognitivo da fé, a aquilo em que se acredita (fides quae). A especificidade da fé é ela estar direcionada para Deus. Por isso, a fé tem um caráter teo-cêntrico. Credere Deo, crer a Deus, expressa o aspecto formal, a razão pela qual o assentimento é dado. Deus também é a causa pelo que se crê (fides qua), pelo qual a fé tem caráter teo-lógico. Assim, Deus é o objeto crido e a razão da fé. No entanto, com esses aspectos fundamentais não fica refletido o ato de fé em sua totalidade. Há também o credere in Deum, crer em Deus. Aqui se manifesta mais claramente o aspecto volitivo, enquanto que, integrando os dois momentos anteriores, a fé também inclui um desejo e um movimento em direção a Deus, o começo de um caminho para Deus, que se consumará no encontro escatológico com Ele na vida eterna. Portanto, a fé contém uma dimensão teo-escatológica. O ato de fé em sua integridade supõe a conjunção dos três aspectos. Isso ocorre caracteristicamente no in Deum, que inclui os outros dois.

48. [Dimensão trinitária]. Na fé cristã, crer em Deus implica crer em Jesus Cristo como o Filho, graças ao Espírito. O Símbolo, de modo particular, repete in Deum três vezes, referido a cada uma das pessoas divinas, marcando a dimensão trinitária. A formulação remete à diferença com qualquer outro ato de confiança comparável, por exemplo, em uma pessoa humana [50]. A relação com o Deus trinitário se distingue do relacionamento com o que foi produzido ou criado por Ele. In Deum credere representa a figura perfeita do relacionamento pessoal; inclui a esperança e o amor [51] ou, como Agostinho o descreve: “aderir crendo a Deus, Aquele que faz o bem, para realizar o bem cooperando com Ele” [52]. Esta é a verdadeira figura da fé, que inclui as duas dimensões já mencionadas: crer Deus e crer a Deus (credere Deum e credere Deo) [53]. A fórmula credo in Deum não se reduz a expressar uma confissão e uma convicção, mas o processo de conversão e entrega, o caminho da fé do crente. Precisamente essa dimensão pessoal confere coerência ao Símbolo e aos seus diferentes artigos. Isso ocorre de modo especialmente intenso nas celebrações sacramentais, próprias da economia do Espírito [54], em que se percebe que a fé é sempre eclesial [55]:
“Na celebração dos sacramentos, a Igreja transmite a sua memória, particularmente com a profissão de fé. Nesta, não se trata tanto de prestar assentimento a um conjunto de verdades abstratas, mas, sobretudo, fazer a vida toda entrar na comunhão plena com o Deus vivo. Podemos dizer que, no Credo, o fiel é convidado a entrar no mistério que professa e a deixar-se transformar por aquilo que confessa” [56].
49. A fé trinitária implica uma relação pessoal do fiel com cada uma das Pessoas da Santíssima Trindade. Pela fé, o Espírito nos leva ao conhecimento da verdade completa (Jo 16,12-13). Ninguém pode confessar a Jesus como o Senhor, senão no Espírito (1Cor 12,3). Assim, o Espírito habita o fiel e o capacita a caminhar no Espírito em direção a Deus, para testemunhar sua fé, para desenvolver a caridade cristã, para viver em esperança, para chegar a alcançar a maturidade da plenitude crente, a medida de Cristo (cf. Ef 4,13). Portanto, o Espírito age no fiel tanto no próprio ato subjetivo de crer, quanto nos conteúdos acreditados e, é claro, no dinamismo vital que imprime no fiel. Esse dinamismo implica uma apropriação mais profunda das bem-aventuranças, retrato do coração de Cristo e, portanto, do discípulo [57]. Com seus dons, o Espírito fortalece o fiel individual [58] e a Igreja. Pela fé, confessamos Jesus Cristo como o Senhor, o Filho do Deus vivo, nos tornamos seus discípulos, caminhando em direção à conformação com Ele (cf. Rm 8,29). Pela fé, e graças à mediação do Filho e do Espírito, conhecemos o desígnio de Deus Pai, entramos em relação com Ele, louvamos, bendizemos e obedecemos como filhos amados. Colocamo-nos a caminho para cumprir sua vontade sobre nós, a história e a criação.

50. [A Reforma e sua influência]. A Reforma teve uma influência difícil de superestimar na supremacia do ato da fé individual sobre a confissão da fé eclesial. Como características singulares se destacam a concentração da fé na própria justificação, a qualificação do ato de fé como uma apropriação da graça e a identificação da certeza da fé com a certeza da salvação. Essa subjetivação tendenciosa da verdade também influenciou parte da teologia da fé do catolicismo recente, quando esta, sob o “guarda-chuva” do personalismo, adquiriu uma orientação subjetivista unilateral. Por esse motivo, nessas abordagens a fé é descrita menos como uma confissão do que como um relacionamento pessoal de confiança (fé em alguém) e, pelo menos tendencialmente, opõe-se à fé doutrinal (fé em algo).

51. [Fides qua; fides quae]. Se o diálogo de Deus com o homem comporta uma natureza sacramental, que perpassa toda a Revelação, então a resposta, por meio da fé, também terá de se revestir de uma lógica sacramental, impulsionada e possibilitada pelo Espírito. Portanto, não cabe uma compreensão somente subjetiva da fé (fides qua), que não esteja ligada à verdade autêntica de Deus (fides quae), transmitida pela Revelação e conservada na Igreja. Existe, pois, “uma unidade profunda entre o ato com que se crê e os conteúdos a que damos o nosso assentimento. O Apóstolo Paulo permite entrar dentro desta realidade quando escreve: ‘Acredita-se com o coração e, com a boca, faz-se a profissão de fé’ (Rm 10,10)” [59]. São os sinais sacramentais da presença de Deus no mundo e na história que suscitam, expressam e preservam a fé. Na concepção cristã, não é possível pensar em uma fé sem expressão sacramental (frente à privatização subjetivista) nem em uma prática sacramental com ausência de fé eclesial (contra o ritualismo). Onde a fé exclui a identificação com a confissão e a vida da Igreja, essa fé já não é uma integração em Cristo. A fé privatizada e desencarnada dos gnósticos percorre toda a história do Cristianismo como uma tentação [60]. Mas também há frequentemente a tendência oposta, a saber, uma fé externa, que adere verbalmente à confissão de fé sem se apropriar dela com entendimento pessoal ou a oração. A privatização subjetivista e o ritualismo marcam os dois perigos que a fé cristã deve superar a todo custo [61].

52. [Igualdade fundamental de todos os fiéis na fé]. A fé pessoal de cada fiel pode ter graus diferentes, tanto no que diz respeito à intensidade do relacionamento com o Deus trinitário quanto no grau de explicitação de seus conteúdos. Sendo a fé uma relação de natureza pessoal, pertence intrinsecamente à sua própria dinâmica a capacidade de crescer em ambas as dimensões: no conhecimento e na apropriação das verdades da fé e em sua consistência interna, de um lado, e na confiança e na determinação de orientar toda a existência a partir do relacionamento íntimo com Deus, por outro lado [62].
53. Na história da teologia se levantou a questão do mínimo indispensável em relação ao conhecimento refletido do conteúdo da fé, bem como do papel da chamada “fé implícita”. Os teólogos escolásticos mostraram grande apreço pela fé dos simples (simplices, minores). Segundo Tomás de Aquino, não deve ser exigido de todos o mesmo grau de explicitação, quanto ao conhecimento dos conteúdos da fé [63]. A diferença entre fé “implícita” e “explícita” se refere a determinados conteúdos da fé que estão incluídos na mesma fé e, nesse sentido, se assente aos mesmos no ato de crer - implícitos - ou se crê de forma confiante e consciente (actu cogitatum credere) - explícitos. Não é necessário que os fiéis simples saibam explicar intelectualmente de modo detalhado os desenvolvimentos trinitários ou soteriológicos. A fé implícita inclui em si a predisposição fundamental para se identificar com a fé da Igreja e unir-se a ela [64].

54. [O Credo: Conteúdo mínimo de fé]. Segundo Tomás, todos os batizados são obrigados a crer explicitamente nos artigos do Credo [65]. Portanto, não basta acreditar em uma vontade salvífica geral de Deus, mas na Encarnação, Paixão e Ressurreição de Cristo, que só é possível através da fé no Deus trinitário. Essa é a fé “pela qual todos alcançam vida nova”, na qual todo cristão é batizado [66]. Na época dos Padres, a regra da fé desempenhava um papel semelhante: funcionava para todos os fiéis como o compêndio do conteúdo fundamental, bem como a regra para verificar os elementos vinculativos da fé [67]. Tomás argumenta que esses conhecimentos da fé não pressupõem outros conhecimentos prévios, mas são acessíveis às pessoas simples; além disso, devido às festividades do Ano Litúrgico, o seu conteúdo torna-se presente para todos. A obrigação de uma fé explícita no Símbolo para todos os membros da Igreja significa, correlativamente, o reconhecimento da igual dignidade de todos os cristãos.

O Credo dos Apóstolos: regra da fé

Para ver nossa postagem sobre a relação entre os doze artigos do Credo e os Doze Apóstolos, clique aqui.

55. [Notas da falta de fé]. O oposto da fé não é a escassez de conhecimentos, mas a rejeição obstinada de algumas verdades da fé [68] e a indiferença. Nesse sentido, Hugo de São Víctor distingue claramente dois grupos. Existem fiéis com pouca penetração intelectual na fé e que tampouco se caracterizam por um profundo relacionamento pessoal com Deus, que, no entanto, se apegam à participação na comunidade eclesial e colocam em prática a fé em suas vidas [69]. Outros, no entanto, são apenas fiéis “de nome e por costume”. Estes “recebem os sacramentos junto com os outros fiéis, mas sem nenhum pensamento sobre os bens do mundo futuro” [70]. Aqui se menciona um elemento crucial da fé cristã: se a fé é “garantia antecipada do que se espera” (cf. Hb 11,1) e se essa esperança crente é forte o suficiente para guiar a ação humana.

c) Reciprocidade entre fé e sacramentos

56. [Conceito de sacramento]. O Deus trino, que cria para transmitir seus dons e que criou o ser humano para chamá-lo à comunhão com Ele, entra em relacionamento com os seres humanos de maneira mediada, através da criação e da história, mediante os sinais, como temos visto. Dentre esses sinais, os sacramentos cristãos ocupam um lugar de destaque, pois são aqueles sinais pelos quais Deus vinculou a transmissão de sua graça de um modo certo e objetivo. De fato, os sacramentos da nova lei são sinais eficazes que transmitem a graça [71]. Como já dissemos, isso não significa que os sacramentos sejam os únicos meios pelos quais Deus transmite sua graça [72]; mas sim que eles ocupam um lugar privilegiado, marcado pela certeza e pela eclesialidade. A devoção e a piedade pessoal podem se desenvolver através de diferentes práticas: como as diversas formas de oração ligadas à Sagrada Escritura, como a lectio ou a contemplação dos mistérios da vida de Cristo; a contemplação das obras de Deus na criação e na história; os vários sacramentais (cf. § 40), etc.

57. [Fé e sacramentos na definição de sacramento do Vaticano II]. Ao longo da história, sucederam-se definições diferentes do que é um sacramento. O Concílio Vaticano II caracteriza-o assim: “Os sacramentos estão ordenados à santificação dos homens, à edificação do Corpo de Cristo e, enfim, a prestar culto a Deus; como sinais, têm também a função de instruir. Não só supõem a fé, mas também a alimentam, fortificam e exprimem por meio de palavras e coisas, razão pela qual se chamam sacramentos da fé. Conferem a graça, a cuja frutuosa recepção a celebração dos mesmos otimamente dispõe os fiéis, bem como a honrar a Deus do modo devido e a praticar a caridade” [73].
Este texto denso destaca vários aspectos fundamentais da reciprocidade essencial entre fé e sacramentos, que abordamos sumariamente:
Primeiro, os sacramentos possuem um fim pedagógico para nossa fé, isto é, ilustram a maneira pela qual acontece a história salvífica: “sacramental”. Jesus Cristo os instituiu para nos ensinar que Ele se comunica e nos transmite sua salvação de modo sensível e visível, ou seja, adaptado à condição humana [74] (cf. §§ 20.26).
Segundo, os sacramentos supõem a fé em duplo sentido: como “acesso” ao mistério sacramental: se falta fé, o sacramento aparece apenas como um símbolo externo ou um rito vazio, com o risco de se tornar um gesto de tipo mágico; e como condição necessária para o sacramento produzir subjetivamente os dons que ele contém objetivamente.
Terceiro, os sacramentos manifestam a fé do sujeito e da Igreja. A celebração dos sacramentos é uma profissão de fé vivida. Os sacramentos são sinais pelos quais se professa a fé a partir da qual o homem é justificado. A palavra sacramental requer a resposta da fé por parte do fiel que, por causa disso, apreende e reconhece o mistério que é realizado no sacramento.
Quarto, os sacramentos alimentam a fé em dois níveis fundamentais: eles comunicam o dom da graça divina, que realiza ou fortalece a vida cristã do fiel; e são celebrações nas quais é significado de modo eficaz o mistério da salvação, educando a fé e nutrindo-a de forma contínua. Os sacramentos são, portanto, sinais de fé em todos os aspectos do dinamismo de sua realização: antes, durante e depois da celebração. Consequentemente, como o sacramento pressupõe a fé, é óbvio que o recebedor dos sacramentos é um membro da Igreja. Não podemos esquecer que, através da fé e dos sacramentos da fé, entramos em diálogo, em contato vital com o Redentor, que está sentado à direita do Pai. O Cristo glorioso não nos atinge apenas internamente, mas na concretização de nosso ser histórico, elevando as situações fundamentais de nossa existência às situações sacramentais de salvação.

58. [Conexão entre fé e sacramentos]. A fé não fica garantida para sempre no momento da conversão. Deve ser cultivada através da prática da caridade, oração, escuta da Palavra, vida comunitária, instrução e, também, em um lugar de destaque, através da prática assídua dos sacramentos. No campo dos relacionamentos, o que não é explicitado e expresso corre o risco de se diluir e, inclusive, desaparecer. Cristo, que é dom de Deus por excelência, não pode ser acolhido somente de modo invisível ou privado. Pelo contrário, quem o recebe fica capacitado e chamado a incorporá-lo em sua vida, palavra, pensamento e ação. Assim, contribui para a transformação da sacramentalidade original do Salvador em sacramentalidade fundamental da Igreja. Na verdade, as sete realizações fundamentais da Igreja (os sacramentos) fazem o que elas significam. No entanto, para que a sua recepção seja frutífera, é requerida a disposição de cada destinatário para aprofundar, viver e testemunhar o que recebeu.
59. A conexão intrínseca entre fé e sacramentos se torna evidente se considerarmos outros aspectos essenciais. Entre eles destacam-se:

a) A celebração sacramental: na qual uma determinada ação ou realidade material, que já tem um significado próprio, é posta em relação com a história da salvação e é determinada pelo acontecimento Cristo. Através da Palavra, o sinal se torna presença, memória e promessa da plenitude da salvação [75]. Assim, por exemplo, a água como tal tem a propriedade de limpar. Contudo, somente unida à invocação da Trindade produz o efeito regenerador de eliminar os pecados.

b) A terminologia: sacramentum (sacramento) é usada como tradução do grego mystérion (μυστήριον). Os mistérios celebrados na Igreja estão enraizados no mistério enquanto tal, “oculto desde os séculos em Deus” (Ef 3,9) e agora dado a conhecer: Cristo, quem, por sua Encarnação, Paixão e Ressurreição, quer “atrair todos a si” (cf. Jo 12,32) e “reconciliá-los com Deus” (cf. 2Cor 5,19-21). De acordo com a Carta aos Efésios (Ef 3,3-21; 5,21-33; cf. Cl 1,25-27; 2,2-9), a Igreja está incluída no mistério de Cristo; como “Corpo” e “Esposa”, pertence ao “mistério oculto”, ao desígnio salvífico de Deus [76]. O conceito neoestamentário de mystérion designa a realidade de Deus, que se comunica aos homens em Jesus Cristo. Na medida em que é uma realidade inesgotável, permanece oculta mesmo no acontecimento da própria revelação, porque ultrapassa toda compreensão e conceituação. Embora a tradução latina sacramentum enfatize mais a revelação do que o encobrimento, também no conceito latino se conserva a dimensão da referência ao inapreensível. Daí decorre que quem celebra a Liturgia da Igreja ou recebe um sacramento é chamado a transcender, por meio de sua fé pessoalmente professada, o conteúdo crido rumo ao mistério cada vez maior.

c) Há um segundo aspecto, também relacionado à terminologia, muito revelador. Originalmente sacramentum significa um “juramento sagrado” que, em contraste com ius iurandum, produz um vínculo sagrado. Este é o significado que Tertuliano tem em mente quando denomina o Batismo como “sacramento” [77] e o compara com o compromisso assumido pelo militar no juramento da bandeira. Não é possível determinar algo sem saber qual é o seu conteúdo.


60. [Necessidade de catequese]. A partir do que já foi dito, partimos de uma base dupla. Primeiro, não há espaço para uma celebração sacramental sem fé. Segundo, a fé pessoal é uma participação na fé eclesial, uma resposta ao acontecimento sacramental de revelação testemunhado e proposto pela Igreja, graças ao Espírito. Por conseguinte, como a recepção de um sacramento é um ato simultaneamente de natureza estritamente pessoal e de natureza manifestamente eclesial, uma catequese adequada deve preceder a celebração do sacramento. Nesta catequese, o Mistério Pascal deve ocupar um lugar preponderante devido à sua centralidade na fé cristã. No caso do Batismo, a catequese faz parte da própria incorporação à Igreja, como percebida no desenvolvimento do catecumenato na Igreja antiga. De outra perspectiva, a forma primitiva de Batismo incluía uma confissão de fé, em forma de diálogo, como testemunha a Traditio Apostolica [78]. A confissão da fé e a natureza dialógica divino-humana da recepção dos sacramentos devem continuar através da catequese mistagógica, que tem lugar em cada recepção dos sacramentos. De certo modo, a catequese mistagógica supõe adentrar-se na presencialidade escatológica que ocorre com os sacramentos, progredindo de modo contínuo em conhecimento pela participação nos mistérios celebrados.

61. [Manifestação da fé] Os sacramentos fazem parte da economia sacramental na qual introduzem o fiel. Essa economia implica a existência de aspectos visíveis como expressão da graça invisível. Embora a fé no Deus revelado em Cristo seja um dom da graça, o recebedor não é um mero objeto desse dom. Por esse motivo, Tomás de Aquino esclarece que a fé é uma virtus infusa vel supranaturalis. Enquanto “virtude”, a fé é uma capacitação para agir possibilitado pela graça, que, como toda faculdade, pode ser aperfeiçoada. Em outras palavras, quanto mais profunda é a relação de um fiel com Cristo, mais intensa é a sacramentalidade dessa fé, sua oração, sua confissão, sua identificação com a Igreja e o seu amor. Consequentemente, como a fé é uma virtude, ela deve se manifestar externamente, de maneira visível, em um estilo de vida correspondente ao duplo mandamento do amor a Deus e ao próximo, com uma relação com a Igreja orante.
62. Pode existir uma fé genérica, como assentimento à revelação divina, sem que ela inclua em si a esperança em Deus e o amor a Deus, que lhe são inerentes. A distinção escolástica entre fides informis e fides (caritate) formata reflete a problemática típica de uma fé que ainda não atingiu o grau de maturidade que lhe é essencial. Segundo a Carta aos Hebreus, a fé é necessária para a salvação: “sem fé é impossível ser-lhe agradável (a Deus)” (Hb 11,6); essa convicção é a base da compreensão de fé na Idade Média [79]. Enquanto um mero ter por verdadeiro (fides informis) não fundamenta a comunhão com Cristo, a fé amorosa (fides caritate formata) produz o enraizamento na participação da realidade salvífica e bem-aventurada de Deus. Em outras palavras, pode acontecer uma forma de fé que não esteja moldada internamente por uma relação pessoal com Cristo. Nesse sentido, é considerada informis: não está informada em sua configuração pelo amor a Cristo, como resposta ao seu amor primeiro. Há também um tipo de fé que está moldada por uma relação pessoal e amorosa com Cristo. É por isso que se denomina caritate formata: configurada pela caridade, que é inerente à verdade do relacionamento que a fé quer expressar.
63. Seguindo essa distinção, pode-se estabelecer que a fé amorosa é efetivamente o começo da vida eterna [80]. O ato pessoal de crer (actus credendi) e a virtude da fé (virtus fidei) são os que produzem, isoladamente, que o evento salvífico seja eficaz no fiel. Contudo, o ato de fé não é possível sem a afirmação daquela realidade que a torna possível. Sendo assim, todavia, não se pressupõe uma fé formada pela caridade para a recepção de todo sacramento, como é particularmente enfatizado no sacramento da Penitência. Segundo o parecer de Tomás de Aquino, nem o Batismo nem o Matrimônio requerem na mesma medida a fé impregnada de amor que a Eucaristia. A recepção frutuosa da Comunhão pressupõe não apenas a fé na presença real de Cristo nas espécies sacramentais, mas também a vontade de manter o vínculo de união com Cristo e com seus membros (cf. § 120).
64. Como o amor sobrenatural (caritas) é um efeito imediato da graça, não se pode constatar a presença de uma fides caritate formata com base em critérios humanos. Em consequência, ninguém pode saber com certeza sobre outra pessoa, tampouco sobre si mesmo, se a sua fé tem essa qualidade. Isso só pode ser inferido a partir de indícios ou efeitos [81]. Portanto, não se pode pretender julgar de nenhuma maneira como uma pessoa se apresenta diante de Deus ou querer verificar ou negar a crença como um dom sobrenatural da graça em outra pessoa. Porém, dado que a recepção de um sacramento é um ato eclesial público, o lado externo e visível resulta decisivo: isto é, a intenção expressa, a confissão de fé, a fidelidade à promessa batismal na vida.

As três virtudes irmãs: Fé, Esperança e Caridade
(Igreja de Maria-Trost - Berg bei Rohrbach, Áustria)

d) Natureza dialogal dos sacramentos

65. [Fé, validade e fecundidade]. O Concílio de Trento (DH 1608) usou a frase ex opere operato para expressar o seguinte: quando um sacramento é celebrado de forma adequada, em nome da Igreja e de acordo com o sentido que a Igreja lhe dá, nesse caso sempre transmite o que significa. Este esclarecimento não implica preterir a participação de quem administra e de quem recebe o sacramento. Ao contrário: quem administra um sacramento deve ter a intenção de fazer o que a Igreja faz (DH 1611: faciendi quod facit Ecclesia). Por parte do receptor, deve-se fazer uma distinção entre recepção frutuosa (fecunda) e infrutuosa (infecunda). A expressão “opus operatum” não visa a participação de quem administra o sacramento ou de quem o recebe. Destaca que nem a fé de quem dispensa nem de quem recebe o sacramento produz salvação, mas só a graça sacramentalmente mediada pelo Redentor. Não se trata, pois, que é devido a quem confere o sacramento e a quem o recebe acreditar no que realizam no sacramento, mas, por essa mesma razão, é Cristo quem age através do sacramento. Mas trata-se do seguinte: sempre que um sacramento é celebrado de maneira adequada, de acordo com o sentido que a Igreja lhe dá, Cristo vincula sua ação à da Igreja.
66. Nesse sentido, contra a teologia dos reformadores, o Concílio de Trento afirmará claramente a eficácia dos sacramentos [82]. No entanto, uma prática eclesial que apenas atenda à validade prejudica o organismo sacramental da Igreja, pois a reduz a um de seus aspectos essenciais. Um sacramento celebrado validamente transmite o que a terminologia técnica chamou res et sacramentum, como parte constitutiva da ação sacramental da graça. Por exemplo, no caso do Batismo seria o “caráter”. Porém, os sacramentos apontam e obtêm seu pleno significado na transmissão da “res”, da graça própria do sacramento. No caso do Batismo, a graça da nova vida em Cristo, que inclui o perdão dos pecados.

67. [Fé adequada aos sacramentos e intenção] A lógica sacramental inclui, como constitutivo essencial, a resposta livre, a aceitação do dom de Deus, em uma palavra: a fé, ainda que incipiente, especialmente no caso do Batismo. A teologia mais recente, para iluminar a transmissão da graça que ocorre nos sacramentos, tomou como referência o mundo da significação, característico dos símbolos e dos sinais. Este campo se situa em uma ordem muito próxima à linguagem humana e das relações interpessoais. Visto que os sacramentos se localizam em uma esfera dialógica e relacional do fiel com Cristo, essa abordagem tem suas vantagens. Não se capta o sentido dos símbolos ou dos sinais se não se participa do mundo que o símbolo, no seu significado, cria. De modo semelhante, não é possível receber os efeitos da graça sacramental (frutuosidade ou fecundidade), transmitida pelos sinais sacramentais, sem entrar no mundo que esses sinais sacramentais expressam. A fé é a chave que abre a porta de entrada a esse mundo, que faz com que as realidades sacramentais realmente se convertam em sinais que significam e causam, de modo eficaz, a graça divina.
68. A recepção dos sacramentos pode ser válida ou inválida, frutuosa ou infrutuosa. Para uma disposição adequada, não basta não contradizer, externa ou internamente, o que o sacramento significa. Nesse sentido, uma recepção válida não implica automaticamente em uma recepção frutuosa do sacramento. Para uma recepção frutuosa se requer uma intenção positiva. Em outras palavras, o destinatário deve crer tanto no conteúdo (fides quae) quanto existencialmente (fides qua) no que Cristo sacramentalmente doa por mediação da Igreja. Há uma diversidade de graus em relação à conformidade com a doutrina. O decisivo aqui é que o recebedor não rejeite absolutamente o ensino da Igreja. Existem também graus na intensidade de fé. O decisivo é a disposição positiva para receber o que o sacramento significa. Cada recepção frutífera de um sacramento é um ato comunicativo e, portanto, faz parte do diálogo entre Cristo e o fiel individual.
69. Embora seja verdade que a doutrina da intenção surgiu à luz das reflexões sobre os requisitos indispensáveis ​​por parte dos ministros que conferem os sacramentos, a intenção se situa em um ponto crucial. Por um lado, salva completamente a eficácia “ex opere operato”, ou seja: a eficácia das ações sacramentais é devida, total e exclusivamente, a Cristo e não à fé do receptor ou do ministro do sacramento. Mas também deixa de pé a natureza dialogal do evento sacramental, para que não se caia nem na magia nem no automatismo sacramental. A intenção expressa o mínimo indispensável de participação pessoal voluntária no evento gratuito da transmissão sacramental da graça salvífica.
70. Os símbolos sacramentais e as ações simbólicas, realizados através da água, do óleo, do pão, do vinho e outros fatores visíveis e externos, convidam a cada fiel a abrir o “olho interior da fé” [83] e ver os efeitos salvíficos de cada sacramento. Essas ações simbólicas, realizadas com esses elementos materiais, estão, de fato, em função da realização de uma ação de Cristo, o Salvador. O que acontece na administração dos sacramentos está enraizado no que acontecia nas ações de Cristo, o Salvador, em sua vida terrena, como, por exemplo, nas curas. Muitos creram em Cristo (Ur-Sakrament) e, assim, alcançaram a santificação, como, por exemplo: a mulher samaritana junto ao poço de Jacó (Jo 4,28-29.39); Zaqueu, quando recebeu Jesus em sua casa (Lc 19,8-10); a mulher siro-fenícia, que obteve cura para a sua filha através de uma fé inabalável (Mc 7,24-30), e assim por diante. Essas ações simbólicas de Jesus, “sacramentais”, realizadas com elementos materiais, estavam em função da intensificação da fé nos beneficiários e da santificação, graças à fé-visão interna. A fé fortalecida deve ser traduzida em uma confissão crente através do testemunho cristão de vida no mundo.

71. [Natureza dialógica]. A celebração litúrgica dos sacramentos não apenas descreve a ação salvadora catabática (descendente) de Deus, mas também, inseparável da anterior, o movimento anabático (ascendente) do receptor, começando com a resposta “amém” até os gestos, como a extensão das mãos na recepção da Comunhão. Todos os sacramentos são ações comunicativas, inscritas na economia da salvação: do desenrolar histórico do desejo de Deus de entrar em uma relação pessoal com os seres humanos. Assim, nos sacramentos, é refletida a natureza de aliança que marca e acompanha toda a história da salvação. Onde a natureza dialogal do sacramento diminui, surgem mal-entendidos de tipo mágico (ritualismo) e centrados na salvação individual (privatização subjetivista).

e) O organismo sacramental

72. [O organismo sacramental]. O organismo sacramental da Igreja [84], formado através de uma evolução de séculos, acompanha as principais circunstâncias da vida da pessoa e da comunidade para fortalecer o cristão em sua fé, inserindo-o de maneira mais viva no mistério de Cristo e da Igreja, acompanhando-o e fortalecendo-o por todo o caminho de sua vida de fé. Não apenas reúne momentos densos do revelar-se do mistério de Cristo em sua vida terrena, mas, ao atualizá-los sacramentalmente, faz com que essa obra continue. Dessa maneira, a sacramentalidade original de Cristo, através das celebrações sacramentais da Igreja, atinge o fiel individualmente e o transforma em sacramento vivo de Cristo. Graças à água, ao pão, ao vinho, ao óleo e às palavras sacramentais, que contêm um significado de referência direta a Cristo e o realizam, o fiel está totalmente inserido nessa realidade e nela é configurado, desde que acolha esses sinais com as disposições devidas.

"Sete Sacramentos" - Rogier van der Weyden (séc. XV)

73. [Sacramentos de Iniciação]. Os sacramentos da Iniciação, situados no início do caminho, inserem plenamente o fiel em Cristo e na comunidade eclesial, capacitando-o para que, com a graça, ele próprio seja de alguma forma sacramento de Cristo com sua vida. Assim, o Batismo constitui a porta de entrada. Ser sepultado nas águas e sair delas expressa a participação na Morte e Ressurreição de Cristo, ingressando em seu Corpo e conformando-se com Ele, tornando-se um membro vivo e ativo da Igreja de Cristo (cf. cap. 3.1.) A Confirmação, com a recepção do crisma, implica mais um passo na mesma direção. A unção com o crisma, paralelamente à unção de Cristo, capacita o cristão pelo dom do Espírito a testemunhar a fé, assumindo essa responsabilidade na comunidade cristã com uma fé mais missionária e eclesial (cf. cap. 3.2). Com a Eucaristia, o sacramento do Corpo de Cristo, a inserção, a comunhão e a plena participação no Corpo de Cristo são expressos em todos os sentidos: cristológico, sacramental e eclesial (cf. cap. 3.3). No final da Iniciação, o cristão já é um membro de Cristo e de sua Igreja, tendo recebido todos os meios ordinários de cristificação, que lhe permitem uma vida cristã e um testemunho verdadeiro.

74. [Sacramentos de cura]. Quem recebe os sacramentos da Iniciação nem sempre se comporta com total fidelidade e integridade em relação ao que neles é significado. Por isso, também existem sacramentos chamados de cura, que têm presente nossa fragilidade e pecado. Com a Penitência, ao receber a acolhida do ministro, que representa Cristo e a Igreja, e que pronuncia em nome de Cristo e da Igreja as palavras de absolvição, não apenas ocorre a reconciliação com Deus, depois de tê-lo negado com a própria vida, mas também com o corpo eclesial, que, como comunidade dos perdoados, proclama a bondade de Deus em Jesus Cristo. Assim, graças à Penitência, o cristão retoma novamente sua caminhada na fé. Dado que a Eucaristia é o sacramento do Corpo de Cristo por excelência, carece de sentido a plena participação daqueles que, tendo danificado gravemente o sentido da inserção neste Corpo, não receberam o dom do perdão, que reconcilia com Deus e reintegra com alegria na pertença comunitária.
75. A Unção é celebrada em uma situação de fragilidade, como a doença. O crisma de Cristo, unguento e fragrância de cura, expressa a força do Senhor para salvar a pessoa inteira e levá-la à sua glória, mesmo que tivesse havido falhas sérias (pecados) de incoerência com a vida de fé, incluindo expressamente o perdão (cf. Tg 5,14-15). Assim, testemunha-se que mesmo a doença pode ser uma ocasião para a manifestação da glória de Deus (Jo 11,4); e que, na doença, na vida e na morte somos do Senhor (Rm 14,8-9), compartilhando com Ele sua Paixão e seus sofrimentos no caminho da glória. Dessa maneira, tanto o pecado quanto a doença se tornam uma ocasião de crescer em união com o Senhor e testemunhar que sua misericórdia é mais forte do que nossa fragilidade.

76. [Sacramentos a serviço da comunhão]. Outros sacramentos visam mais diretamente o serviço da comunhão. A comunidade requer uma estrutura e um governo que reflitam sua realidade sacramental. Por isso, os ministros ordenados ad sacerdotium representam a Cristo Cabeça, e são expressamente configurados com Ele por meio do exercício da caridade pastoral. Assim, Cristo continua presente em sua Igreja não somente como o dom que a gerou, mas também sacramentalmente, como Aquele que continuamente se doa a ela, gerando-a incessantemente de novo. Além disso, de outra perspectiva e como membros da Igreja, os ministros ordenados também representam a Igreja, especialmente em sua oração litúrgica, louvando a Deus e suplicando sua graça em nome de todos. Assim, Cristo, Pastor e Cabeça, continua edificando seu Corpo na história. Toda a Igreja reconhece, sempre mais, como o ministério ordenado se deve ao dom do Senhor, em sua Palavra e em seus sacramentos. Os ministros ordenados, por sua vez, devem conformar sua vida com Cristo para ser pastores segundo seu coração.
77. Os que renasceram da água e do Espírito exercem seu sacerdócio comum (cf. Lumen Gentium, n. 10), inseparável da vida de fé, também no amor que professam como esposos. O amor que os cônjuges professam publicamente é um vínculo sagrado, com o qual tornam historicamente visível e presente no mundo o amor de Cristo por sua Igreja. Dessa maneira, graças ao Matrimônio, cresce a comunidade cristã e são gerados os filhos, frutos do amor, que, respirando a fé na família, aumentam o número dos membros do Corpo de Cristo. Assim, a família se torna uma Igreja doméstica, lugar preponderante para a recepção, vivência e expressão da fé (cf. cap. 4).

f) A reciprocidade entre fé e os sacramentos na economia sacramental

78. Esta revisão conjunta da reciprocidade entre fé e sacramentos na economia sacramental nos mostrou vários aspectos de grande importância para o nosso assunto:

a) Na economia divina, tudo parte da revelação salvífica do Deus trinitário. Essa economia atinge seu auge quando o Pai revela seu Filho através da sua Páscoa e o dom do Espírito em Pentecostes. Esses mistérios salvíficos se perpetuam na história mediante a Igreja e os sacramentos, graças à ação do Espírito.

b) Essa revelação e comunicação de Deus tem natureza sacramental: mediante sinais visíveis se transmite a graça invisível. A natureza sacramental da revelação é percebida pela fé.

c) A fé é a relação pessoal com o Deus trinitário, através da qual se responde à sua graça, à sua revelação sacramental; por isso, a fé é essencial e constitutivamente dialogal. Trata-se também de uma realidade dinâmica, que acompanha toda a vida do fiel. Como em toda relação, há espaço para crescer e se fortalecer, mas também, ao contrário, para enfraquecer ou até perder. Há, simultaneamente, uma marca pessoal e eclesial. Como a fé já é vivida no relacionamento pessoal com o Deus trinitário, ela guia para a salvação e para a vida eterna.

d) A ação salvífica de Deus, a economia, se estende além das fronteiras visíveis da Igreja. Esse fator parece negar a natureza sacramental da economia. Contudo, uma consideração atenta do modo de agir da salvação nesses casos mostra que essa ação salvífica de Deus, aceita por uma fé de tipo implícita, não é realizada à margem da sacramentalidade da economia divina, mas precisamente graças a ela mesma [85].

e) Sob diferentes figuras e aspectos, a celebração dos sacramentos deve ser sempre acompanhada pela fé em suas diversas vertentes: uma fé pessoal que, em seu dinamismo para Deus, participa da fé eclesial e a ela adere através da pertença eclesial querida ou, pelo menos, faz sua a intenção específica da Igreja inerente às celebrações sacramentais. Dessa maneira, a celebração sacramental nunca cai no automatismo sacramental.

f) A própria fé tem, em sua essência, uma tendência natural a se expressar e a se alimentar sacramentalmente, devido, precisamente, a estrutura sacramental da economia que a gera. Não é possível opor nem sequer delimitar como diferentes a fé na graça salvífica de Jesus Cristo (Ur-Sakrament) de sua permanência histórica no espaço e no tempo, graças à Igreja (Grundsakrament).


79. Em resumo, podemos concluir destacando uma série de dinamismos, que emergiram da consideração da natureza dialogal da economia sacramental:

a) A fé constitui a resposta dialogal à interlocução sacramental do Deus trinitário. Esse fator sela a reciprocidade entre fé e sacramentos. Na caminhada do fiel, a fé vai modulando-se e expressando-se nas diferentes situações da vida, acompanhada pelos vários sacramentos que a Igreja oferece à vida cristã ao longo da peregrinação terrena.

b) Por sua própria constituição, a fé cristã é sacramental. Por esse motivo, há uma conaturalidade entre a fé e a sacramentalidade. Um dos dinamismos fundamentais da fé consiste, então, em sua expressão sacramental, como um meio de alimentar-se, fortalecer-se, enriquecer-se e manifestar-se.

c) Na expressão sacramental da fé entra em jogo tanto a dimensão pessoal (subjetiva) quanto a dimensão eclesial (objetiva) da fé. No seu dinamismo de crescimento, a fé pessoal adere mais intensamente e se identificada mais com a fé eclesial. A reciprocidade entre fé e sacramentos exclui a possibilidade de uma celebração sacramental totalmente alheia à fé eclesial (intenção).

d) A sacramentalidade própria da fé sempre envolve dinamismo missionário, pois insere o fiel de modo ativo na dinâmica da economia divina, dotando-o de certo protagonismo, ao qual a graça divina capacita. Quem recebe um sacramento intensifica sua cristificação graças ao Espírito, reafirma sua inserção eclesial e realiza um ato litúrgico de louvor a Deus, que nos confere seus bens através dos sacramentos. Deste ponto de vista, entende-se, por exemplo, que quem recebe o Batismo é, em primeiro lugar, agraciado de modo gratuito: se configura ao Mistério Pascal de Cristo; mas, ao mesmo tempo, é chamado a testemunhar o dom recebido por meio de uma vida de louvor que brota da fé da Igreja. Ninguém recebe os sacramentos exclusivamente para si, mas também para representar e fortalecer a Igreja, que, como meio e instrumento de Cristo (cf. Lumen Gentium, n. 1), deve ser testemunha credível e sinal eficaz de esperança contra toda esperança, testemunhando ao mundo a salvação de Cristo, sacramento de Deus por excelência. Portanto, através da celebração dos sacramentos e da sua vivência adequada, o Corpo de Cristo é fortalecido.


Notas:
[47] Francisco, Encíclica Lumen fidei, n. 4.
[48] cf. Sínodo dos Bispos. XV Assembleia Geral Ordinária: Os jovens, a fé e o discernimento vocacional. Documento final, passim (em particular o n. 4).
[49] Por exemplo, Agostinho, De Symb. I, 181 (PL 40, 1190-1191); Pedro Lombardo, Summa Sentenciarum III. d. 23, c. 2-4 (PL 192, 805-806); Tomás de Aquino, STh II-II, q. 2 a.2.
[50] Pascasio Radberto, De fide, spe et car. I, 6 n. 1 (PL 120, 1402 s).
[51] Fausto de Riez, De Spir. S. I,1 (CSEL 21, 103).
[52] “Credendo adhaerere ad bene cooperandum bona cooperanti Deo” (Enarr. In Ps. 77,8; CCSL 39, 1073).
[53] Agostinho, In Iohannis Ev., XXIX, 6 (CCSL 36, 287; PL 35, 1684): “Ut credatis in eum, non ut credatis ei. Sed si creditis in eum, creditis ei, non autem continuo, qui credit ei credit in eum...”. Assim também Tomás de Aquino, STh II-II, q.2 a.2.
[54] “No dia do Pentecostes, pela efusão do Espírito Santo, a Igreja é manifestada ao mundo (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 6; Lumen Gentium, n. 2). O dom do Espírito inaugura um tempo novo na ‘dispensação do mistério’: o tempo da Igreja, durante o qual Cristo manifesta, torna presente e comunica a sua obra de salvação pela liturgia da sua Igreja, ‘até que Ele venha’ (1Cor 11,26). Durante este tempo da Igreja, Cristo vive e age na sua Igreja e com ela de uma fora nova, própria deste tempo novo. Age pelos sacramentos; é isto que a Tradição comum do Oriente e do Ocidente chama ‘economia sacramental’; esta consiste na comunicação (ou ‘dispensação’) dos frutos do Mistério Pascal de Cristo na celebração da Liturgia ‘sacramental’ da Igreja”(Catecismo da Igreja Católica, § 1076).
[55] Tomás De Aquino, STh II-II, q.1 a.9 ad 3: “confessio fidei traditur in symbolo quasi ex persona totius Ecclesiae, quae per fidem unitur”.
[56] Francisco, Encíclica Lumen fidei, n. 45.
[57] cf. idem, Exortação Apostólica Gaudete et exsultate (19 de março de 2018), n. 65-94.
[58] cf. Catecismo da Igreja Católica, § 1830-1832.
[59] Bento XVI, Carta Apostólica em forma de Motu Proprio Porta fidei (11 de outubro de 2011), n. 10.
[60] cf. recentemente: Francisco, Exortação Apostólica Gaudete et exsultate, n. 43; Congregação para a Doutrina da Fé, Carta Placuit Deo, n. 12.
[61] cfGaudete et exsultate, nn. 48-49; Placuit Deo, nn. 2-3.
[62] cf. Hugo de São Vítor, Sacr. I, pars 10 (PL 176, 327-344), cap. 3 e 4: De incremento fidei.
[63] Tomás de Aquino, Ver. 14 a.11 resp.; STh II-II, q.2 a.6.7.8.
[64] idem, Ver. 14 a.11 ad 7.
[65] idem, Ver. 14 a.11 resp.: “tempore vero gratiae omnes, maiores et minores, de Trinitate et de redemptore teneretur explicitam fidem habere. Non tamen omnia credibilia circa Trinitatem vel redemptorem minores explicite credere tenentur, sed soli maiores. Minores autem tenentur explicite credere generales articulos, ut Deum esse trinum et unum, filium Dei esse incarnatum, mortuum, et resurrexisse, et alia huiusmodi, de quibus Ecclesia festa facit”.
[66] idem, STh II-II, q. 2 a.7; a.8.
[67] Ver, por exemplo, Irineu, Adv. haer. I, 10,1 (SCh 264, 154-158); III, 12,13; III, pr. ss; III, 5.3 (SCh 211, 236-238; 20-22; 60-62); Clemente de Alexandria, Strom. IV,1,3 (GCS 15, 249); Tertuliano, Praesc. 13; 36 (CCSL 1, 197-198; 217); Prax. 2; 30 (CCSL 2, 1160; 1204); Virg. 1 (CCSL 2, 1209); Orígenes, De Princ., I, praef., 4 (GCS 22, 9-11; FuP 27, 120-124); Novaciano, Trin. 1,1; 9,46 (CCSL 4, 11; 25).
[68] Tomás de Aquino, STh II-II, q.5 a.3.
[69] Hugo de São Vítor, Sacr. I pars 10 cap. 3.
[70] idem, Sacr. I pars 10 cap. 4.
[71] cf. Catecismo da Igreja Católica, § 1084.
[72] Tomás de Aquino, STh III, q.64 a.7.
[73] Concílio Vaticano II, Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 59.
[74] cf. Tomás de Aquino, STh III, q.61 a.1.
[75] “Accedit verbum ad elementum et fit sacramentum, etiam ipsum tamquam visibile verbum” (Agostinho, In Johannis Ev., LXXX, 3; CCSL 36, 529; PL 35, 1840).
[76] cf. Agostinho, Epist. 187,34 (PL 33, 846).
[77] Tertuliano, Ad mart. 3 (CCSL 1.5).
[78] Tradição Apostólica, 16 (entrada no catecumenato), 17-20 (transcurso do catecumenato), 21 (celebração batismal) (SC 11, 43-51).
[79] “Fidei obiectum per se est id per quod homo beatus efficitur” (Tomás de Aquino, STh II-II, q.2 a.5; cf. STh II-II, q.1 a.6 ad 1).
[80] “Inchoatio vitae aeternae in nobis” (Tomás de Aquino, STh II-II, q.4 a.1).
[81] cf. Boaventura, III Sent. dist. 23 dub.4 (III 504ab); II Sent. dist. 38 dub.1 (II 894b); Tomás de Aquino, STh I-II, q. 112 a.5; Ver 10 a. 10 ad 1.2.8.
[82] “Si quis dixerit, sacramenta (...) aut gratiam ipsam non ponentibus obicem non confere (...) anathema sit” (Concílio de Trento,  VII sessão. Decreto sobre os sacramentos, cân. 6 [DH 1606]).
[83] Efrém, Hymni de fide, 53,12; 5,18 (CSCO 154, 167,23; 155, 143,17).
[84] cf. Catecismo da Igreja Católica, § 1076.
[85] cf. Congregação para a Doutrina da Fé, Declaração Dominus Iesus, n. 20-22. Veja nosso § 37.

Fonte: Santa Sé, com pequenas correções feitas pelo autor deste blog.

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