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terça-feira, 20 de abril de 2021

Leitura litúrgica dos Livros de Samuel (1)

“Fala, Senhor, que o vosso servo escuta” (1Sm 3,10)

Nos meses de setembro e outubro de 2020, em nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, começamos a analisar os escritos que integram a chamada literatura deuteronomista: além do próprio Deuteronômio (Dt), os livros de Josué (Js) e Juízes (Jz).

Agora damos continuidade a esta proposta com os quatro últimos livros deste bloco: os dois Livros de Samuel (1Sm e 2Sm), aos quais dedicaremos esta postagem e a próxima, e os dois Livros dos Reis (1Rs e 2Rs), que abordaremos na sequência.

1. Breve introdução aos Livros de Samuel

Os dois livros que conhecemos com o nome do profeta Samuel integram, na Bíblia hebraica, um só volume, razão pela qual os analisaremos juntos. Em grego o livro foi dividido em dois e unido aos Livros dos Reis (Βασιλειῶν), formando um único bloco de quatro livros. Posteriormente foram renomeados como os conhecemos hoje: dois Livros de Samuel e dois Livros dos Reis.

Com efeito, os livros da literatura deuteronomista estão intimamente relacionados entre si: o início de 1Sm retoma a história dos juízes (Jz), enquanto os primeiros capítulos de 1Rs concluem a história do final de 2Sm.

O que dá unidade aos Livros de Samuel são os seus protagonistas: o próprio profeta Samuel e os reis Saul e Davi. A divisão dos livros costuma ser feita a partir das histórias destes três personagens:
a) Samuel: 1Sm 1–7;
b) Samuel e Saul: 1Sm 8–15;
c) Ascensão de Davi: 1Sm 16–2Sm 8;
d) Sucessão de Davi: 2Sm 9–20;
e) Apêndices: 2Sm 21–24.

Ana apresenta o jovem Samuel no Templo
(Frank William Topham - séc. XIX)

Embora o período histórico no qual estas histórias ocorrem seja bem definido (entre 1100 e 970 a. C.), é difícil precisar quando o livro foi escrito, dada a pluralidade de textos e gêneros literários que o compõem. Não obstante, o fio condutor é o mesmo dos outros escritos deuteronomistas: o binômio fidelidade versus infidelidade a Deus.

Saul representa a infidelidade a Deus, culminando no episódio da necromante (1Sm 28), ao passo que Davi é o modelo da fidelidade, o jovem pastor que se torna o rei que unifica as tribos de Judá (2Sm 2,4) e de Israel (2Sm 5,1-5) e conquista Jerusalém (2Sm 5,6-12), para onde translada a arca da aliança, santificando a cidade (2Sm 6).

Em 2Sm 7 encontramos um dos textos mais importantes do Antigo Testamento (AT): o oráculo de Natã, profetizando a continuidade da casa de Davi e a vinda de um novo rei, o Messias descendente de Davi (profecia que se cumpre em Lc 1,32-33).

Cabe ressaltar ainda dois temas:
- o binômio fidelidade versus infidelidade que retorna com o pecado de Davi (2Sm 11) e seu consequente arrependimento, após ser repreendido pelo profeta Natã (2Sm 12);
- e a figura de Davi com rei poeta, a quem são atribuídos os Salmos, como o demonstra o cântico que ele entoa no apêndice (2Sm 22, reprodução do Sl 18) e que forma uma moldura para o livro junto com o cântico de Ana em 1Sm 2.

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem [1].

2. Leitura litúrgica dos Livros de Samuel: Composição harmônica

Feita esta breve introdução, cabe-nos agora analisar a leitura dos dois Livros de Samuel nas celebrações litúrgicas do Rito Romano, seguindo, como de costume nesta série de postagens, o duplo critério de seleção dos textos apresentado pelo Elenco das Leituras da Missa (n. 66): composição harmônica e leitura semicontínua [2].

Primeiramente nos deteremos no critério da composição harmônica: a escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.

a) Celebração Eucarística

Deixando-nos guiar pelo Ano Litúrgico, encontramos primeiramente três leituras dos nossos livros no Tempo do Advento. Nos domingos deste tempo “as leituras do Antigo Testamento são profecias sobre o Messias e o tempo messiânico” [3]. Assim, no IV Domingo do Advento do ano B lê-se 2Sm 7,1-5.8b-12.14a.16 [4], o célebre oráculo de Natã sobre o Messias vindo da descendência de Davi.

Davi
(Melozzo da Forlì - séc. XV)

De 17 a 24 de dezembro leem-se os relatos evangélicos que preparam diretamente o nascimento do Senhor, enquanto a leitura é selecionada “levando em conta o Evangelho do dia” [5]. Nestes dias temos duas leituras dos Livros de Samuel:

- no dia 22 de dezembro, à luz de Lc 1,46-56, o cântico da Virgem Maria (Magnificat), lê-se 1Sm 1,24-28 [6], texto que precede o cântico de Ana (1Sm 2,1-10), entoado como salmo nesta celebração (sobre este cântico falaremos na próxima postagem);

- no dia 24 de dezembro, na Missa da manhã (uma vez que à tarde já se celebra a Vigília do Natal), lê-se o Benedictus (Lc 1,67-79), no qual Zacarias canta que Deus “fez surgir um poderoso Salvador na casa de Davi, seu servidor” (Lc 1,69). A leitura, por sua vez, traz o oráculo de Natã sobre o Messias davídico: 2Sm 7,1-5.8b-12.14a-16 [7].

Passando ao Tempo do Natal, no domingo seguinte a esta solenidade celebra-se a Festa da Sagrada Família que, no ano C, traz-nos como leitura à escolha 1Sm 1,20-22.24-28 [8]. Neste texto Ana leva seu filho, o profeta Samuel, “à casa do Senhor” para consagrá-lo, ao passo que no Evangelho (Lc 2,41-52) é Jesus que se dirige “à casa de seu Pai”.

Assim como no Natal, no Tempo da Quaresma também encontramos um texto dos nossos livros. Como as leituras do AT neste tempo “referem-se à história da salvação” [9], no IV Domingo da Quaresma do ano A lemos 1Sm 16,1b.6-7.10-13a [10]: a unção de Davi como rei. Esta unção interpreta-se também como profecia da unção batismal, uma vez que neste domingo se celebra o II Escrutínio em preparação aos sacramentos da Iniciação Cristã [11].

A unção de Davi por Samuel
(François-Léon Benouville - séc. XIX)

Nos domingos do Tempo Comum, quando as leituras do AT são escolhidas em “relação às perícopes evangélicas” [12], temos três ocasiões nas quais a Igreja nos propõe os Livros de Samuel, uma no ano B e duas no ano C:

- no II Domingo do Tempo Comum do ano B: 1Sm 3,3b-10.19 [13], o relato da vocação de Samuel, que complementa o chamado dos primeiros discípulos no Evangelho de João (Jo 1,35-42);

- no VII Domingo do Tempo Comum do ano C: 1Sm 26,2.7-9.12-13.22-23 [14], texto que narra como Davi poupou a vida de Saul, seu perseguidor. Este relato ilustra bem a exortação de Jesus no Evangelho (Lc 6,27-38): “Amai os vossos inimigos...”.

- no XI Domingo do Tempo Comum do ano C: 2Sm 12,7-10.13 [15], perícope que traz a advertência de Natã a Davi após seu pecado através de uma parábola, mesmo recurso usado por Jesus para instruir o fariseu Simão no episódio da pecadora que unge os seus pés (Lc 7,36–8,3).

Por fim, na Solenidade de Cristo Rei do ano C, celebrada no último domingo do Tempo Comum, lemos 2Sm 5,1-3 [16], trecho no qual as tribos de Israel proclamam Davi como seu rei, prefiguração do múnus régio de Cristo.

Passando às celebrações dos Santos, encontramos primeiramente na Solenidade de São José, Esposo da Virgem Maria (19 de março), a perícope de 2Sm 7,4-5a.12-14a.16 [17]. Trata-se da já referida profecia de Natã, uma vez que José comunica ao seu filho adotivo a descendência de Davi.

Dentre as leituras ad libitum (à escolha) do Comum de Nossa Senhora temos uma perícope ligeiramente distinta: 2Sm 7,1-5.8b-11.16 [18]. Aqui se enfatiza que Deus “fará uma casa” para a descendência de Davi, sendo a própria Virgem Maria esta casa na qual o Senhor veio habitar. O mesmo texto aparece como 2ª opção de leitura na Missa de Maria, filha eleita de Israel, o primeiro formulário para o Advento da Coletânea de Missas de Nossa Senhora [19].

Encontramos na Coletânea ainda, dentre os formulários para o Tempo Comum, 1Sm 1,24-28; 2,1-2.4-8, texto indicado como leitura da Missa de Maria, serva do Senhor [20]. Trata-se do início do cântico de Ana em ação de graças a Deus pelo dom do seu filho, com notáveis paralelos com o Magnificat, entoado como salmo desta Missa.

Além do Comum de Nossa Senhora, há um texto de Samuel dentre as leituras ad libitum do Comum dos Pastores: 1Sm 16,1b.6-13a [21] que, como vimos acima, traz a unção do jovem pastor Davi como rei, profecia nesse contexto da unção dos sacerdotes como pastores do povo de Deus.

Por fim, nas Missas para diversas necessidades, encontramos dos textos de 1Sm que podem ser proferidos à escolha:

- para as Missas pelas vocações sacerdotais e pelas vocações religiosas propõe-se 1Sm 3,1-10 [22], o relato da vocação do profeta Samuel;

- e para a Missa pelos que nos afligem sugere-se 1Sm 26,2.7-9.12-13.22-23 [23], recordando como Davi poupou a vida de seu inimigo.

b) Sacramentos e sacramentais

Além do II Escrutínio em preparação ao Batismo, sobre o qual já falamos acima, dentre os sacramentos encontramos como leitura ad libitum para a Reconciliação o texto de 2Sm 12,1-9.13 [24]: o relato sobre a advertência de Natã após o pecado de Davi e o seu arrependimento.

O profeta Natã repreende Davi por seu pecado
(Eugène Siberdt - séc. XIX-XX)

Passando aos sacramentais, temos primeiramente uma perícope de 1Sm sugerida para duas celebrações que compartilham as mesmas opções de leituras: a Consagração das virgens e a Profissão religiosa. Trata-se de 1Sm 3,1-10 [25], o relato da vocação do profeta.

Dentre as bênçãos, por sua vez, encontramos três ocasiões nas quais se propõe a leitura dos Livros de Samuel:

- na Bênção de mulher depois do parto temos dois textos à escolha: 1Sm 1,20-28 e 1Sm 2,1-10 [26], ambos trechos da ação de graças de Ana pelo nascimento do seu filho. Na forma breve desta bênção pode-se ler apenas 1Sm 1,27 [27];

- na Bênção de um seminário sugere-se o texto vocacional de 1Sm 3,1-10 [28];

- na Bênção de um confessionário, por fim, consta a mesma leitura indicada para o sacramento da Reconciliação: 2Sm 12,1-9.13 [29].

c) Liturgia das Horas

A leitura em composição harmônica dos Livros de Samuel no Rito Romano conclui-se com a Liturgia das Horas, na qual uma mesma perícope é proposta em duas ocasiões. Trata-se de 2Sm 7,28-29, que aparece nas Laudes tanto da Solenidade de São José, Esposo de Maria (19 de março) quanto da Memória de São José Operário (01 de maio) [30].

Esta leitura é um trecho da oração que Davi profere após o oráculo de Natã, pedindo a Deus que abençoe a sua descendência, que tem em José seu último grande elo antes da vinda do Messias.

Rei Davi tocando harpa
(Gerard van Honthorst - séc. XVII)

Concluímos assim a primeira parte do nosso estudo sobre presença dos Livros de Samuel na Liturgia. Na próxima parte analisaremos sua leitura semicontínua e o cântico de Ana (1Sm 2,1-10), entoado nas celebrações da Missa e da Liturgia das Horas.

[Para acessar a segunda parte dessa pesquisa, publicada no dia 27 de abril, clique aqui]

Notas:
[1] LAMADRID, Antonio González. Os Livros de Samuel: Dos juízes à monarquia. in: LAMADRID, Antonio González et al. História, narrativa, apocalíptica. São Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 103-144 (Coleção: Introdução ao estudo da Bíblia, v. 3b).
NIHAN, Christophe; NOCQUET, Dany. 1-2 Samuel. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 338-368.
[2] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] ibid., p. 94.
[4] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[5] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 94.
[6] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, p. x.
[7] ibid., p. x.
[8] LECIONÁRIO I, p. x.
[9] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 97.
[10] LECIONÁRIO I, p. x.
[11] RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. Tradução portuguesa para o Brasil da edição típica. São Paulo: Paulus, 2001, p. 214.
[12] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 103.
[13] LECIONÁRIO I, p. x.
[14] ibid., p. x.
[15] ibid., p. x.
[16] ibid., p. x.
[17] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. x.
[18] ibid., p. x.
[19] LECIONÁRIO para Missas de Nossa Senhora. Brasília: Edições CNBB, 2016, p. 15.
[20] ibid., p. 93.
[21] LECIONÁRIO III, p. x.
[22] ibid., p. x.
[23] ibid., p. x.
[24] RITUAL DA PENITÊNCIA. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus: 1999, p. 91.
[25] LECIONÁRIO IV: Lecionário do Pontifical Romano. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 127.
[26] RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 87.
[27] ibid., p. 91.
[28] ibid., p. 181.
[29] ibid., p. 338.
[30] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. II, pp. 1487.1560.

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