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quinta-feira, 9 de abril de 2020

O ícone da última Ceia

“À mística mesa reverentes vamos todos e, com alma pura, o pão divino recebamos” [1]

Entrando no sagrado Tríduo do Senhor Crucificado, Sepultado e Ressuscitado, o Tríduo Pascal, chegamos hoje, em nossa série de postagens sobre os ícones das festas litúrgicas, ao ícone da última Ceia, também chamada de “Ceia mística”.

Origem e conteúdo da festa:

Segundo um autor ortodoxo russo, os três dias do Tríduo Pascal são a “resposta de amor da Igreja-Esposa ao amor sacrifical e redentor do Cristo, seu Esposo, a recepção solene da cruz, do Evangelho, do cálice eucarístico e da glória da Ressurreição que ilumina” [2].

Do pôr-do-sol da Quinta-feira até o pôr-do-sol da Sexta-feira estamos no primeiro dia do Tríduo: o dia do Senhor Crucificado. Assim, no Oriente e no Ocidente se celebra na noite desta Quinta-feira a memória da última Ceia, antecipação ritual do sacrifício oferecido sobre a cruz.

Segundo um dos textos das Matinas (Rito Bizantino), nesse dia os fiéis orientais celebram quatro mistérios: “o sagrado Lava-pés, a Ceia mística, isto é, a entrega dos tremendos Mistérios, a oração divina no Horto, a traição de Judas” [3]. Os textos deste dia farão referência aos quatro mistérios [4], centrando-se na instituição da Eucaristia, ou dos Sagrados Mistérios, como este sacramento era chamado no início da Igreja.

São do século V os primeiros registros das celebrações da Quinta-feira Santa: no Rito Romano as referências centrais desta Missa eram a instituição da Eucaristia e a traição de Judas (os quais, como veremos, são também os dois elementos centrais do ícone deste dia). Mais tarde foi acrescentado o rito do Lava-pés, que na tradição bizantina é reservado à Liturgia presidida pelo Bispo [5].

A Ceia é, dentro do mistério da Paixão, um “oásis e regozijo espiritual pela nova e eterna aliança selada entre Deus e o homem” [6]. Esta aliança é celebrada através da recordação dos dois sacramentos fundamentais: o Batismo, simbolizado no rito do Lava-pés, e a Eucaristia, instituída no contexto da “Ceia mística”.

Não obstante, também está presente já o anúncio da Paixão, como veremos no ícone com o tema da traição de Judas. De fato, os quatro mistérios celebrados nesta noite “entrecruzam-se e constituem como que um único motivo de fundo na celebração da grande misericórdia do Senhor para com suas criaturas” [7].

Para acessar nossa postagem sobre a história da Missa da Ceia do Senhor, clique aqui.

O ícone


Cumpre dizer, antes de tudo, que este ícone ocupa uma posição central na iconostase das igrejas bizantinas, situado logo acima das portas centrais (ou “portas reais”), na linha dos ícones das grandes festas.

O ambiente: O ambiente do ícone é, naturalmente, a casa onde Jesus celebrou a Ceia com seus Apóstolos (Mt 26,17-19 e paralelos). Ao fundo estão retratados dois ou três domos de construções, unidos por um véu vermelho.

Este véu, presente também no ícone da Anunciação, une o Antigo e o Novo Testamentos, recordando a Ceia pascal judaica e a Eucaristia unidas pelo mistério do amor de Deus, manifestado tanto no êxodo quanto na Páscoa de Cristo (cf. Ex 2,24-25; Jo 3,16).

No centro do ambiente encontramos a mesa, na forma semicircular, como uma “ferradura de cavalo”, a mesma estrutura adotada no ícone de Pentecostes, evento que se passa no mesmo ambiente, isto é, o Cenáculo (lugar da Ceia).

Tanto em nosso ícone quanto no de Pentecostes os Doze Apóstolos retratados desta forma representam o “pleroma”, isto é, a plenitude da Igreja nascente. A Igreja, de certa forma, “nasce” tanto do lado aberto de Cristo na Cruz quanto do Cenáculo, lugar da instituição da Eucaristia, do encontro com o Ressuscitado e do dom do Espírito Santo.

A mesa costuma ser revestida de uma toalha branca, a mesma usada no ícone da Trindade, que recorda a veste branca do sacerdócio de Cristo, a “túnica sem costura” usada pelo sumo-sacerdote no Antigo Testamento e por Cristo em sua Paixão (Jo 19,23-14; Ap 1,13).

Porém, para salientar a novidade do culto inaugurado por Cristo, a toalha da mesa costuma ser pontilhada de pequenas cruzes, em alusão à Páscoa da “nova e eterna aliança”.

Cristo: Cristo está no centro da mesa, representado com sua indumentária tradicional: a túnica vermelha da Encarnação (cor do sangue e, portanto, da humanidade) sob o manto azul da sua divindade (cor do céu). Destaque aqui para a estola dourada que pende do ombro, símbolo de sua dignidade sacerdotal e régia.

Além disso, Cristo é o único personagem com o nimbo ou halo da santidade em volta da cabeça (os Apóstolos não possuem o halo em prefiguração do seu abandono do Mestre). Seu halo é cruciforme, isto é, com o desenho de uma cruz, além de possuir a inscrição em grego “ὁ ὢν” (Aquele que é), em alusão à epifania do Sinai (Ex 3,14).

Diferentemente, porém, de outros ícones do Senhor, Ele aqui não costuma aparecer abençoando, mas sim com a mão direita levantada (às vezes com apenas um dedo em riste), gesto de um orador que chama a atenção às suas palavras. Neste caso, Cristo anuncia a traição de Judas: “Um de vós, que come comigo, vai me trair” (Mt 26,20-25 e paralelos).

Os Apóstolos: Se Jesus é retratado no momento em que anuncia a traição, os Apóstolos o são em sua reação ante esta notícia: “entreolhavam-se, sem saber de quem falava” (Jo 13,22). Dez dos discípulos entreolham-se, espantados pela afirmação do Mestre. Alguns, como Pedro (à direita de Jesus), têm inclusive as mãos levantadas, em um gesto de espanto.

Apenas dois Apóstolos não parecem espantados com a afirmação de Jesus, por motivos bem diversos: Judas e João.

Judas é o personagem mais destoante nesta cena, aparecendo debruçado sobre a mesa, no esforço de alcançar um cálice ou um prato. Esta é a representação gráfica do anúncio do Mestre: “É aquele que comigo põe a mão no prato” (Mt 26,23).

Em algumas versões do ícone, no prato que Judas tenta alcançar está uma fruta, em alusão ao pecado dos primeiros pais, que estenderam a mão para tomar o fruto da árvore. Cristo redimirá este gesto estendendo livremente as mãos na árvore da cruz, não para tomar algo para si, mas para doar-se inteiramente.

Por fim, temos a figura de João, perdido na contemplação, com a cabeça reclinada junto ao coração de Jesus (Jo 13,23-25). Ele tem a mão estendida para o Senhor, como que recebendo d’Ele o dom da contemplação dos divinos mistérios.

Ó Filho de Deus, recebe-me neste dia na tua mística ceia: eu não te darei um beijo como Judas, mas como o ladrão arrependido, eu te peço: Lembra-te de mim, Senhor, quando entrares no teu Reino
 Oração antes da Comunhão na Liturgia Bizantina [8]

Notas:
[1] PASSARELLI, Gaetano. O ícone da última Ceia. São Paulo: Ave Maria, 1997, p. 44. Coleção: Iconostásio, 13.
[2] DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, p. 96.
[3] PASSARELLI, op. cit., p. 11.
[4] Há um versículo para cada um dos quatro mistérios:
À tarde, lava os pés dos seus discípulos o Deus, cujos passos, outrora, na hora da brisa, faziam-se ouvir no Éden.
A Ceia é dúplice, a saber: a que representa a Páscoa da Lei e a que dá origem à nova Páscoa, que é a do Corpo e do Sangue do Senhor.
Oração, temor, suor como que de gotas de sangue que corre por seu rosto, Senhor! Pede uma e outra vez que a morte se afaste d’Ele, referindo-se, assim, ao inimigo.
Que necessidade há, sedutores do povo, de espadas e paus para quem está prestes a morrer pela salvação do mundo?”.
Por fim, os quatro mistérios são lidos, junto, à luz da misericórdia divina:
Por tua inefável misericórdia, tem piedade de nós, Cristo Senhor e Deus nosso” (ibid., pp. 11-12).
[5] Sobre a história desta celebração confira:
ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 44-48.
DONADEO, op. cit., pp. 96-97.
RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 785-802.
[6] PASSARELLI, op. cit., p. 12.
[7] ibid., p. 14.
[8] DONADEO, op. cit., p. 97. Na Divina Liturgia da Quinta-feira Santa esta oração substitui o “Hino dos Querubins” na Grande Entrada e a antífona da Comunhão.

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