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quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

O ícone da Natividade do Senhor

“Hoje o céu e a terra cantam, os anjos e os homens celebram, uma vez que Deus, nascido de uma mulher, revela-se na carne” [1]

Em nossa série de postagens sobre os ícones das festas litúrgicas, chegamos à grande celebração da “Natividade segundo a carne de nosso Senhor, Deus e Salvador, Jesus Cristo”, ou simplesmente Solenidade do Natal do Senhor, celebrada a 25 de dezembro.

Origem e conteúdo da festa

Os primeiros registros dessa celebração remontam a meados do século IV, com notáveis diferenças entre Oriente e Ocidente: enquanto em Roma se celebrava no dia 25 de dezembro uma festa específica em honra do nascimento do Senhor, as igrejas orientais celebravam no dia 06 de janeiro uma festa mais ampla de sua manifestação (Epifania), recordando tanto o seu nascimento em Belém quanto o batismo no Jordão.

Com o tempo, sobretudo a partir das definições cristológicas dos primeiros Concílios Ecumênicos, as duas tradições influenciaram-se mutuamente e passaram a celebrar ambas as festas [2]. Porém, embora as duas tradições fundamentem a festa do Natal no dogma da dupla natureza de Cristo definido no Concílio de Calcedônia (451), Jesus Cristo verdadeiro Deus e verdadeiro homem, celebram-na com ênfases diferentes.

As Igrejas ocidentais, sobretudo na piedade popular, destacam os aspectos mais “históricos” ou “humanos” da celebração: a ternura da Mãe que contempla o Filho recém-nascido, a pobreza do local do nascimento, etc.

A tradição oriental, por sua vez, enfatiza a dimensão “teológica” ou “escatológica” da festa: o mistério do Cristo que se esvazia da sua divindade para assumir a nossa humanidade, inaugurando assim uma “nova criação”; o mistério do eterno que entra na história para santificá-la.

Tal teologia é visível no ícone da festa, um dos mais ricos de simbolismos da tradição bizantina. Este ícone “representa o programa do admirável plano salvífico: a mais sublime expressão de seu amor por nós, a união escatológica do eclesial e do terreno” [3].

O ícone


As montanhas: Ao fundo são representadas as montanhas, local da manifestação de Deus na Sagrada Escritura. Basta pensar, por exemplo, na importância do Monte Sinai (também chamado de Horeb) como local da epifania de Deus na sarça ardente (Ex 3) e da entrega dos mandamentos da aliança (Ex 19-20).

Às vezes são representadas três montanhas que se entrecruzam, sendo uma mais baixa que as demais: é uma dupla referência aos mistérios da Trindade e da Encarnação, sendo o Filho simbolizado pela montanha mais baixa, isto é, mais próxima de nós.

A gruta e o Menino: No centro do ícone encontramos a gruta, representada em uma forte cor preta, a mesma usada para representar o Hades, a morada dos mortos, no ícone da Ressurreição. A gruta proclama, pois, a verdade da Encarnação: o Menino que ali nasceu está agora sujeito à morte.

O tema da mortalidade é representado ainda pelas faixas que envolvem o Menino, que está diante da gruta sobre o presépio: são as mesmas faixas que o envolverão em sua Paixão e as quais os Apóstolos encontrarão jogadas ao chão na manhã da Ressurreição.

São Romanos, o Melode faz uma leitura deste tema à luz do pecado dos primeiros pais, Adão e Eva, enfatizando assim que Cristo assume nossa humanidade para redimi-la: o Menino “está escondido (pelas faixas) por culpa daqueles que certa vez vestiram-se com túnicas de pele; e uma gruta constitui suas delícias por culpa daqueles que recusaram as delícias do paraíso e preferiram a corrupção” [4].

Destaca-se ainda que a manjedoura aqui retratada lembra às vezes um altar, profetizando o sacrifício oferecido por Cristo uma vez por todas no altar da cruz. Sua matéria-prima, a madeira, evoca pois justamente a cruz, árvore da vida, e a árvore do paraíso, junto da qual os primeiros pais pecaram.

Dentro da gruta vemos um burro e um boi, que representam os animais no grande louvor cósmico da Encarnação. Ausentes nos relato bíblicos da Natividade, estes animais são uma leitura de Is 1,3: “O boi conhece o seu dono, e o jumento a manjedoura de seu senhor”.

Maria: Ao lado do Menino se encontra sua Mãe, recordando as palavras do Salmo 44: “À vossa direita se encontra a Rainha, com veste esplendente de ouro de Ofir” (v.10) e do Primeiro Livro dos Reis, no qual Salomão “mandou colocar um trono para a sua mãe, e ela sentou-se à sua direita” (1Rs 2,19).

Maria é, com efeito, a Mãe do rei, aquela que goza de confiança divina. Ela é a maior imagem no ícone, recordando assim seu papel fundamental na obra da salvação.

Sobre a Virgem Maria falaremos mais na postagem sobre o ícone da Mãe de Deus. Destacamos aqui apenas mais dois elementos: primeiramente sua atitude contemplativa, com as mãos cruzadas sobre o peito e o olhar dirigido ao infinito, como que a guardar no coração tudo que acabara de acontecer (Lc 2,19).

Maria está deitada sobre um tecido na cor vermelha, que recorda aqui a nossa humanidade (cor do sangue). O tecido parece formar o número oito, indicando que começou o “oitavo dia”, o dia da nova criação inaugurada em Cristo. Além disso, o número oito na horizontal é o símbolo do infinito: pelo mistério da Encarnação, o eterno entra na história.

Os anjos: Na parte superior do ícone vemos os anjos, que se unem ao louvor da criação ao Deus feito homem. O número de anjos varia: ora são três em alusão à Trindade, ora seis em alusão aos dias da criação. Não obstante, um sempre aparece mais baixo que os demais, anunciando aos pastores a boa-nova, consoante o relato de Lucas (Lc 2,8-14).

No meio dos anjos encontramos ainda um facho de luz que ilumina a cena e, ao aproximar-se da gruta, divide-se em três, clara alusão à Trindade. A luz que ilumina a gruta é uma profecia da Ressurreição, quando Cristo, luz do mundo, descerá ao Hades para iluminar “aqueles que jazem nas trevas e na sombra da morte” (Lc 1,79).

Os pastores e os magos: Ainda na parte superior do ícone, logo abaixo da linha dos anjos, encontramos de um lado os pastores com suas ovelhas e do outro os magos.

Os pastores, presentes no relato lucano, são as primeiras testemunhas do nascimento do Salvador. Eles recordam-nos tanto a imagem de Deus como pastor, recorrente na Sagrada Escritura, quanto sua predileção pelos pequenos e pobres (Lc 1,51-53).

Em algumas versões do ícone, um dos pastores (às vezes uma criança) toca uma corneta, referência ao shofar, chifre de carneiro que soava no início dos jubileus: com o nascimento de Cristo começa um “tempo de graça do Senhor” (Is 61,1-2; Lc 4,18-19).

Os magos, por sua vez, estão presentes no relato mateano da Natividade (Mt 2,1-12). Como veremos na postagem própria, o Rito Romano recorda sua visita apenas na festa da Epifania, enquanto os orientais os incluem já na celebração do Natal.

Sua presença evoca a profecia de Isaías da salvação estendida a todas as nações, representadas pelos reis que trazem ouro e incenso em honra do Messias (Is 60,1-6). O relato de Mateus acrescenta a mirra, contemplando assim o número três com o qual os magos são associados, referência ao tríplice múnus de Cristo: sacerdote (incenso), profeta (mirra) e rei (ouro).

Além disso, os magos que trazem perfumes são uma profecia das mulheres mirróforas (portadoras de aromas) que vão ao túmulo do Senhor na manhã da Ressurreição.

José: Na parte inferior esquerda do ícone encontramos a figura de José, sentado em uma pedra em atitude pensativa, com a cabeça apoiada nas mãos. Ele personifica o drama humano diante do mistério.

Relatos apócrifos (como o Protoevangelho de Tiago) narram a dúvida de José diante do nascimento do Filho de Deus. Ao seu lado é representado o diabo disfarçado de pastor, o qual vem para fazer jus ao seu nome, isto é, diabolos (aquele que divide), introduzindo a dúvida no coração de José.

Este diabo carrega o tirso, um bastão utilizado nos cultos ao deus greco-romano Dioniso (Baco), deus do vinho e da loucura. Porém, ao bastão seco do paganismo opõe-se um arbusto verde presente ao lado, símbolo do tronco que brotou da raiz de Jessé, isto é, o próprio Cristo, descendente de Davi (Is 11,1-2.10-12).

O banho do Menino: Por fim, no canto inferior direito contemplamos a cena do primeiro banho do Menino, já presente no ícone da Natividade de Maria. O banho é aqui prelúdio do batismo de Jesus no Jordão e símbolo de sua humanidade, pois ser mergulhado em água e dela sair são poderosas imagens de morte e ressurreição.

Junto ao Menino estão duas mulheres que o ajudam no banho. Segundo o Protoevangelho de Tiago, são a parteira (que foi trazida por José das redondezas) e uma mulher chamada Salomé. Tradições posteriores identificam simbolicamente a parteira com Eva, a qual por sua desobediência introduziu o pecado no mundo, mas que agora testemunha a salvação que veio pela obediência de Maria.

“Hoje a Virgem dá à luz o supersubstancial e a terra oferece uma gruta ao inacessível.
Os anjos com os pastores cantam a sua glória, os magos avançam seguindo a estrela.
Para nós nasceu, terna criatura, o Deus existente antes dos séculos”
Kontákion da festa [5]

[1] Trecho de um dos hinos processionais para as Vésperas da festa (PASSARELLI, Gaetano. O ícone da Natividade do Senhor. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 53. Coleção: Iconostásio, 6).
[2] Sobre a história desta festa confira:
ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 87-89.
DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 45-48.
RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 687-692.
[3] PASSARELLI, op. cit., pp. 12-13.
[4] Romanos, o Melode. Hinos (PASSARELLI, op. cit., p. 23).
[5] DONADEO, op. cit., p. 45. Este kontákion, estrofe que resume o mistério da festa, é de autoria de São Romanos, o Melode (séc. VI).

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