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quarta-feira, 22 de junho de 2022

Leitura litúrgica do Livro dos Números (2)

“Invocarão o meu nome e Eu os abençoarei” (Nm 6,27).

Na postagem anterior da nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura iniciamos um estudo sobre a presença do Livro dos Números (Nm) nas celebrações do Rito Romano.

Após uma breve introdução, analisamos sua leitura na Celebração Eucarística sob o critério da composição harmônica, isto é, da sintonia com o tempo ou a festa litúrgica [1].

Aqui concluiremos essa análise com os demais sacramentos e com os sacramentais, contemplando em seguida o outro critério de seleção dos textos bíblicos na Liturgia: a leitura semicontínua.

As "uvas de Canaã" (Nm 13)

2. Leitura litúrgica do Livro dos Números: Composição harmônica

b) Sacramentos e sacramentais

Além da Eucaristia, o único Sacramento no qual são propostas leituras de Números é o sacramento da Ordem. Dentre as várias opções de leitura à escolha (ad libitum) para as Missas das ordenações há duas perícopes do nosso livro:

- para a ordenação de diáconos sugere-se Nm 3,5-9 [2], a instituição dos levitas como auxiliares dos sacerdotes “no serviço da morada de Deus”, uma prefiguração do ministério dos diáconos, recordada inclusive na respectiva Prece de Ordenação:

“Para edificação do novo templo, constituístes três ordens de ministros para servirem ao vosso Nome, como outrora escolhestes os filhos de Levi para o serviço do antigo santuário” [3].

- para a ordenação de presbíteros, por sua vez, propõe-se a leitura de Nm 11,11b-12.14-17.24-25a [4], sobre a comunicação do “espírito que Moisés possuía” a setenta anciãos, episódio que prefigura o ministério dos presbíteros, como igualmente citado na respectiva Prece de Ordenação:

“Já no Antigo Testamento, em sinais prefigurativos, surgiram vários ofícios por Vós instituídos (...) Assim, no deserto, comunicastes a setenta homens prudentes o espírito dado a Moisés que, com o auxílio deles, pôde mais facilmente governar o vosso povo” [5].

Passando aos sacramentais, identificamos leituras ad libitum (à escolha) do Livro dos Números em cinco formulários de bênçãos:

- na Bênção de instrumentos técnicos: Nm 20,2-11 [6], o relato sobre a água que brotou do rochedo no deserto (leitura indicada, por exemplo, para a bênção de uma adutora de água);

- na Bênção de uma cruz para veneração pública: Nm 21,4-9 [7], o episódio da serpente de bronze, prefiguração da cruz de Cristo, mesma leitura da Festa da Exaltação da Santa Cruz, como vimos na postagem anterior;

- na Bênção de um sino e na Bênção de órgão: Nm 10,1-8.10 [8], as instruções sobre a construção de duas trombetas de prata, as quais soariam na partida do povo em caminhada pelo deserto e durante os sacrifícios. Indica-se aqui a dupla função dos sinos: convocar os fiéis e louvar o Senhor, esta última função compartilhada com o órgão;

- na Bênção para diversas circunstâncias: Nm 6,22-27 [9], a “bênção de Aarão”, como vimos em nossa postagem anterior: “O Senhor te abençoe e te guarde! O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e se compadeça de ti! O Senhor volte para ti o seu rosto e te dê a paz! (vv. 24-26).

A serpente de bronze (Sébastien Bourdon)

3. Leitura litúrgica do Livro dos Números: Leitura semicontínua

Concluídas as leituras em composição harmônica, passamos ao critério da leitura semicontínua: a proclamação dos principais textos de um livro na sequência, oferecendo aos fiéis um contato mais amplo com a Sagrada Escritura [10].

a) Celebração Eucarística

Na Celebração Eucarística, a Igreja nos propõe a leitura semicontínua dos livros do Antigo e do Novo Testamento nos dias de semana do Tempo Comum, várias semanas cada um, conforme sua extensão (cf. Elenco das Leituras da Missa, n. 110) [11].

Como vimos nas postagens sobre o Êxodo e o Levítico, a leitura do Pentateuco estrutura-se em um grande bloco, da XII à XIX semana do Tempo Comum no ano ímpar.

O Livro dos Números é lido por quatro dias, da segunda à quinta-feira da XVIII semana do Tempo Comum no ano ímpar, naturalmente entre o Levítico e o Deuteronômio. As perícopes escolhidas do nosso livro aqui são [12]:

Segunda-feira: Nm 11,4b-15 - a falta de alimentos e a intercessão de Moisés;
Terça-feira: Nm 12,1-13 - a rebelião de Aarão e Miriam;
Quarta-feira: Nm 13,1-2.25–14,1.26-30.34-35 - o envio de doze exploradores a Canaã. Como vimos na postagem anterior, apenas Josué e Caleb oferecem uma visão positiva da conquista, sendo portanto os únicos a entrar na terra prometida;
Quinta-feira: Nm 20,1-13 - o episódio da água que brota da rocha.

b) Liturgia das Horas

Como igualmente vimos nas postagens sobre o Êxodo e o Levítico, a Liturgia das Horas a leitura semicontínua desses livros integra o Ofício das Leituras da maior parte do Tempo da Quaresma: nestes 40 dias, com efeito, a Igreja refaz o caminho do povo de Israel pelo deserto por 40 anos.

A eleição dos setenta anciãos (Jacob de Wit)

Livro dos Números conclui, pois, esse bloco de leituras, da quarta-feira ao sábado da IV semana da Quaresma, sucedido pela Carta aos Hebreus do V Domingo da Quaresma até o Tríduo Pascal. As quatro perícopes selecionadas do nosso livro são [13]:

Ofício das Leituras da IV semana da Quaresma
Quarta-feira: Nm 11,4-6.10-30 - O Espírito é dado aos anciãos e a Josué;
Quinta-feira: Nm 12,16–13,3a.17-33 - Exploradores israelitas são enviados a Canaã;
Sexta-feira: Nm 14,1-25 - Murmuração do povo e intercessão de Moisés;
Sábado: Nm 20,1-13; 21,4-9 - As águas de Meriba e a serpente de bronze.

No ciclo bienal do Ofício das Leituras, por sua vez, o qual não possui tradução para o Brasil, os livros do Êxodo, Levítico e Números são lidos na Quaresma dos anos pares (dando espaço à leitura do Deuteronômio e de Hebreus nos anos ímpares).

Assim, no ciclo bienal a leitura semicontínua do Livro dos Números estende-se por dez dias, da quinta-feira da IV semana ao sábado da V semana da Quaresma do ano par. Indicamos abaixo em negrito as seis leituras “inéditas” em relação ao ciclo anual [14]:

Ofício das Leituras da IV semana da Quaresma (Ciclo bienal - ano par):
Quinta-feira: Nm 3,1-13; 8,5-11 - Legislação sobre os levitas;
Sexta-feira: Nm 9,15–10,10.33-36 - A coluna de nuvem;
Sábado: Nm 11,4-6.10-30.

Ofício das Leituras da V semana da Quaresma (Ciclo bienal - ano par):
Domingo: Nm 12,1-15 - Humildade e grandeza de Moisés;
Segunda-feira: Nm 12,16–13,3a.17-33;
Terça-feira: Nm 14,1-25;
Quarta-feira: Nm 16,1-11.16-35 - Cisma de Coré, Datã e Abiram;
Quinta-feira: Nm 20,1-13; 21,4-9;
Sexta-feira: Nm 22,1-8a.20-35 - Balaão se põe a caminho para amaldiçoar Israel;
Sábado: Nm 24,1-19 - Oráculo de Balaão.

O liturgista espanhol Padre Pedro Farnés (†2017), em sua obra Leitura da Bíblia no Ano Litúrgico, destaca que, enquanto as leituras do ciclo anual concluem com um episódio “triste”, as “infidelidades do deserto junto às águas de Meriba”, no ciclo bienal as leituras se concluem com um episódio muito mais “positivo” e “aberto à Páscoa”: a visão de Balaão, que prefigura a vitória pascal de Cristo [15].

Oráculo de Balaão: "Uma estrela sai de Jacó..." (Nm 24,17)
(Hippolyte Flandrin)

Concluímos assim nosso percurso pelas leituras do Livro dos Números nas celebrações litúrgicas do Rito Romano e com ela a narrativa da caminhada do povo de Israel pelo deserto. Sobre o Livro do Deuteronômio, com a conclusão da história de Moisés, e o Livro de Josué, com o relato da conquista da terra prometida, já possuímos postagens aqui em nosso blog.

Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] LECIONÁRIO IV: Lecionário do Pontifical Romano. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 35.
[3] PONTIFICAL ROMANO: Ordenação de Bispos, presbíteros e diáconos. São Paulo: Paulus, 2000, p. 158.
[4] LECIONÁRIO IV, p. 35.
[5] PONTIFICAL ROMANO, p. 114.
[6] RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 251.
[7] ibid., p. 353.
[8] ibid., pp. 380.388.
[9] ibid., p. 463.
[10] cf. ALDAZÁBAL, op. cit., p. 76.
[11] ibid., p. 105.
[12] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, pp. x-x.
[13] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, LH v. II, pp. 269.278.286.293.
[14] Os títulos das leituras foram traduzidos livremente do texto espanhol divulgado pelo site Dei Verbum.
[15] FARNÉS, PEDRO. A Mesa da Palavra II: Leitura da Bíblia no Ano Litúrgico. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 83. 

5 comentários:

  1. Caríssimo, poderias explicar melhor do que se trata o "ciclo bienal"? Obrigado!

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    1. No Ofício das Leituras da Liturgia das Horas há dois ciclos de leituras: o ciclo anual, no qual as mesmas leituras são retomadas todos os anos, e o ciclo bienal, com as leituras distribuídas por dois anos (ano par - ano ímpar), oferecendo assim mais textos da Palavra de Deus.
      Os livros da Liturgia das Horas publicados no Brasil trazem apenas o ciclo anual de leituras do Ofício.

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  2. Admiro muitíssimo o teu trabalho neste blogue. Minha oração por tua Vocação é a minha expressão de gratidão.

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  3. Obrigado por responder!
    Vou procurar conhecer este ciclo bienal que somente hoje fui saber dele.

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