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terça-feira, 30 de novembro de 2021

Leitura litúrgica dos Livros dos Macabeus

“O Rei do universo nos ressuscitará para uma vida eterna” (2Mc 7,9)

Os chamados “livros históricos” na Bíblia cristã são compostos na verdade por quatro grupos de escritos: a “história deuteronomista”, a “história cronística”, a “história helenística” e as “novelas bíblicas”.

Em nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, após analisarmos as obras da “história deuteronomista” e da “história cronística”, nesta postagem contemplaremos os dois representantes da “história helenística”: os Livros dos Macabeus (1Mc e 2Mc).

Martírio dos sete irmãos narrado em 2Mc
(Attavante degli Attavanti)

1. Breve introdução aos Livros dos Macabeus

Como vimos nas postagens sobre a “história do Cronista”, a partir do ano 539 a. C. Israel passa a pertencer ao Império Persa Aquemênida. Em 331 a. C., porém, Alexandre Magno da Macedônia conquista os territórios persas, incluindo Israel.

Após a precoce morte de Alexandre, o Império foi dividido entre seus generais. Inicialmente Israel ficou sob o domínio da dinastia ptolomaica (ou lágida), do Egito. Porém, no contextos das guerras dos diádocos (sucessores), passou no ano 200 a. C. ao domínio da dinastia selêucida da Síria.

Os reis selêucidas inicialmente foram tolerantes com a religião judaica. Porém, sobretudo no governo de Antíoco IV Epífanes (175-164 a. C.), houve uma tentativa de adequar Jerusalém à cultura e a religião gregas, fenômeno conhecido como helenismo.

Os Livros dos Macabeus descrevem este período, marcada pela resistência judaica. Existem na verdade quatro livros com este título, sendo os dois últimos apócrifos. Os dois primeiros são considerados “deuterocanônicos”, isto é, da “segunda lista” (fazendo parte do Antigo Testamento grego, a Septuaginta, mas não da Bíblia Hebraica) [1].

O nome dos livros deve-se a Judas, filho do sacerdote Matatias, grande líder da revolta judaica. Seu apelido, “Macabeu” poderia significar “escolhido por Deus” ou “martelo” (contra os inimigos). Na Idade Média foi incluído entre os “Nove da Fama”, máximos exemplos de coragem, junto com outros dois personagens bíblicos (Josué e Davi).

Primeiro Livro dos Macabeus (1Mc), obra de um autor anônimo, provavelmente de Jerusalém. O livro narra acontecimentos que vão do ano 175 ao ano 134 a. C.:
a) 1Mc 1–2: Introdução, recapitulando as conquistas de Alexandre, o governo de Antíoco Epífanes e o início da revolta judaica com Matatias;
b) 1Mc 3,1–9,22: Atividade de Judas Macabeu, filho de Matatias ;
c) 1Mc 9,23–12,53: Atividade de Jônatas, irmão de Judas;
d) 1Mc 13,1–16,24: Atividade de Simão, irmão de Judas e Jônatas.

Simão é sucedido por seu filho, João Hircano. Nesse período Israel torna-se praticamente independente, governada pela dinastia judaica dos asmoneus, até sua conquista pelos romanos em 63 a. C.. A redação dos dois livros situa-se, pois, dentro desse período.

Judas Macabeu
(Igreja de Todos os Santos - Leek, Inglaterra)

O Segundo Livro dos Macabeus (2Mc) seria um resumo de uma obra maior, escrita por um certo Jasão de Cirene (colônia grega na atual Líbia). Este livro narra acontecimentos paralelos a 1Mc, entre os anos 175 e 161 a. C.:
a) 2Mc 1–2: Prólogo, com duas cartas aos judeus do Egito;
b) 2Mc 3,1–5,10: As causas da revolta;
c) 2Mc 5,11–7,42: A perseguição de Antíoco Epífanes;
d) 2Mc 8,1–15,36: A atividade de Judas Macabeu;
e) 2Mc 15,37-39: Epílogo.

Deste segundo livro destacam-se:

- o martírio de Eleazar e da mãe com seus sete filhos por se recusarem a participar de cultos pagãos (2Mc 6–7) - Como vimos em nossas postagens sobre o culto aos Santos do Antigo Testamento, esses personagens são comemorados pelo Martirológio Romano no dia 01 de agosto;

- a purificação do Templo sob Judas Macabeu após a morte de Antíoco IV (2Mc 10), celebrada anualmente no Judaísmo na festa de Hannukah (“dedicação” em hebraico; τὰ ἐγκαίνια, “encênias” em grego);

- e oração pelos mortos (2Mc 12), dando um passo importante em relação à escatologia do Antigo Testamento (ver, neste sentido, o Livro da Sabedoria e o cap. 19 do Livro de ).

A teologia dos dois livros, com efeito, é bastante “elevada”. 1Mc defende a absoluta transcendência de Deus, a ponto de não mencionar seu nome. 2Mc, por sua vez, elenca diversos atributos divinos: sua majestade, sua providência, sua santidade... Costuma-se associar 1Mc ao grupo dos saduceus e 2Mc aos fariseus.

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem.

2. Leitura litúrgica dos Livros dos Macabeus: Composição harmônica

Analisaremos a seguir a leitura litúrgica dos Livros dos Macabeus segundo os critérios de seleção dos textos indicados no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa: composição harmônica e leitura semicontínua [2]. Começamos pela composição harmônica: a escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.


Moeda de Antíoco IV Epífanes
Este rei considerava-se a "viva manifestação dos deuses"

a) Celebração Eucarística

Nos diversos tempos do Ano Litúrgico encontramos apenas uma leitura dos nossos livros em composição harmônica, mais especificamente em um domingo do Tempo Comum. Aqui as leituras do Antigo Testamento foram escolhidas em “relação às perícopes evangélicas” [3].

Assim, no XXXII Domingo do Tempo Comum do ano C lemos 2Mc 7,1-2.9-14 [4]. Em sintonia com a índole escatológica do final do Tempo Comum, que se prolonga até o início do Advento, a perícope traz um trecho do relato do martírio dos sete irmãos sob Antíoco Epífanes.

Cada um dos irmãos, antes de morrer, professa sua fé na ressurreição dos mortos: “O Rei do universo nos ressuscitará para uma vida eterna...”. No Evangelho desse dia (Lc 20,27-38) será Jesus a defender a ressurreição contra as questões levantadas pelos saduceus.

No Próprio dos Santos temos uma leitura ad libitum, isto é, à escolha dentre as várias opções de textos, para a Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos (02 de novembro). Trata-se de 2Mc 12,43-46 [5], texto no qual Judas Macabeu manda oferecer um sacrifício expiatório pelos pecados dos seus soldados mortos.

Sua ação é elogiada pelo autor do livro: “Ação justa e nobre, inspirada na sua crença na ressurreição (...) Santo e piedoso pensamento, este de orar pelos mortos” (vv. 43.46). Vale lembrar que as mesmas leituras dessa Comemoração são indicadas para o sacramental das Exéquias.

Passando aos Comuns dos Santos, formulários igualmente com várias opções de textos ad libitum, conforme as “categorias” de santos, identificamos três perícopes da “história helenística” indicadas para o Comum dos mártires:
- 2Mc 6,18.21.24-31: o relato do martírio de Eleazar;
- 2Mc 7,1-2.9-14: o relato do martírio dos sete irmãos;
- 2Mc 7,1.20-23.27b-29: a fortaleza da mãe diante do martírio [6].

Por fim, em relação à Celebração Eucarística, há ainda uma leitura de Macabeus à escolha dentre as Missas para diversas necessidades. Na Missa pelos cristãos perseguidos sugere-se a leitura de 1Mc 2,49-52.57-64 [7], a exortação de Matatias aos seus filhos antes de morrer, recordando exemplos de fidelidade na provação (Abraão, Daniel e os três jovens), e concluindo: “Compreendei, portanto, que, de geração em geração, todos os que esperam em Deus não desfalecem” (v. 61).

b) Sacramentais

Da Celebração Eucarística passamos aos sacramentais. Além das Exéquias, como vimos acima, uma leitura dos nossos escritos é indicada ad libitum para a Dedicação de altar. Trata-se aqui de 1Mc 4,52-59 [8], a consagração do “novo altar dos holocaustos” (v. 53) no contexto da purificação do Templo sob Judas Macabeu.

O candelabro de nove velas (hanukiá) usado na Festa da Dedicação do Templo
(Não confundir com a menorah, com sete velas)

c) Liturgia das Horas

Por fim, a última leitura em composição harmônica dos nossos livros encontra-se na Liturgia das Horas, como 2ª opção de leitura breve para a Hora Média (09h) do Ofício dos fiéis defuntos: 2Mc 7,9b [9]. Este versículo é a profissão de fé na ressurreição dos mortos proclamada por um dos jovens mártires, como vimos acima: “O Rei do universo nos ressuscitará para uma vida eterna”.

3. Leitura litúrgica dos Livros dos Macabeus: Leitura semicontínua

Após a composição harmônica, passamos ao segundo critério de seleção dos textos bíblicos nas celebrações: a leitura semicontínua. Aqui se leem os principais textos de um livro na sequência, oferecendo um contato mais amplo com as Escrituras [10].

a) Celebração Eucarística

Na Celebração Eucarística, os livros do Antigo e do Novo Testamento são lidos de  modo semicontínuo nos dias de semana do Tempo Comum, várias semanas cada um, conforme sua extensão [11].

Assim, nossos livros são lidos na XXXIII semana do Tempo Comum do ano ímpar, entre Sabedoria e Daniel, em sintonia com a índole escatológica do final do Tempo Comum. As seis perícopes escolhidas dos Livros dos Macabeus para essa semana são:

XXXIII semana do Tempo Comum (ano ímpar):
Segunda-feira: 1Mc 1,10-15.41-43.54-57.62-64;
Terça-feira: 2Mc 6,18-31;
Quarta-feira: 2Mc 7,1.20-31;
Quinta-feira: 1Mc 2,15-29;
Sexta-feira: 1Mc 4,36-37.52-59;
Sábado: 1Mc 6,1-13 [12].

b) Liturgia das Horas

Na Liturgia das Horas, o “locus liturgicus” da leitura semicontínua é o Ofício das Leituras. Também aqui os Livros dos Macabeus nos acompanham por uma semana no final do Ano Litúrgico, no Ofício das Leituras da XXXI semana do Tempo Comum, novamente entre Sabedoria e Daniel.

As sete perícopes selecionadas aqui são:

Ofício das Leituras da XXXI semana do Tempo Comum:
Domingo: 1Mc 1,1-24: Vitória e soberba dos gregos;
Segunda-feira: 1Mc 1,41-64: A perseguição de Antíoco;
Terça-feira: 1Mc 2,1.15-28.42-50.65-70: Revolta de Matatias e sua morte;
Quarta-feira: 1Mc 3,1-26: Judas Macabeu;
Quinta-feira: 1Mc 4,36-59: Purificação e dedicação do templo;
Sexta-feira: 2Mc 12,32-46: O sacrifício pelos mortos;
Sábado: 1Mc 9,1-2: Morte de Judas Macabeu no combate [13].

A revolta dos Macabeus
(Menorah do Knesset - Jerusalém)

No ciclo bienal do Ofício das Leituras, por sua vez, o qual ainda não possui tradução para o Brasil, nossos livros são lidos por quase duas semanas, também no final do Ano Litúrgico, entre a XXXII e a XXXIII semanas do Tempo Comum no ano par.

Com efeito, como indica a Introdução Geral da Liturgia das Horas (n. 152), nos anos pares desse ciclo bienal as leituras do Antigo Testamento no Tempo Comum narram “a História da Salvação depois do exílio até o tempo dos Macabeus” [14].

Indicamos abaixo em negrito as leituras “inéditas” em relação ao ciclo anual [15]:

Ofício das Leituras da XXXII semana do Tempo Comum (Ciclo bienal: ano par)
Domingo e segunda-feira: como no ciclo anual (domingo e segunda-feira da XXXI semana);
Terça-feira: 2Mc 6,12-3: Martírio de Eleazar;
Quarta-feira: 2Mc 7,1-19: Martírio dos sete irmãos;
Quinta-feira: 2Mc 7,20-41: Martírio dos sete irmãos. A mãe e o filho menor;
Sexta-feira e sábado: como ciclo anual (terça e quarta-feira da XXXI).

Ofício das Leituras da XXXIII semana do Tempo Comum (Ciclo bienal: ano par)
Domingo e segunda-feira: como no ciclo anual (quinta e sexta-feira da XXXI semana);
Terça-feira: 1Mc 6,1-17: O fim de Antíoco;
Quarta-feira: como no ciclo anual (sábado da XXXI semana).

Quanto à 2ª leitura do Ofício, a qual é tomada dos textos patrísticos e eclesiásticos, cabe destacar - tanto no ciclo anual quanto no ciclo bienal - a escolha de alguns parágrafos da Constituição Pastoral Gaudium et Spes sobre a Igreja no mundo contemporâneo do Concílio Vaticano II dedicados ao tema da paz (nn. 78.82-83.88-90), que traçam um paralelo antitético à perseguição de Antíoco Epífanes.

Nos últimos dias, por sua vez, a 2ª leitura volta-se para os temas da fé e da oração pelos mortos, com textos de vários Padres da Igreja.

Vitral representando o martírio dos sete irmãos sob Antíoco IV Epífanes

Encerramos assim nosso percurso pela leitura litúrgica dos Livros dos Macabeus. Nas próximas postagens desta série continuaremos analisando a presença dos escritos do Antigo e do Novo Testamento nas celebrações do Rito Romano. Acomapnhe-nos!

Breve bibliografia sobre os Livros dos Macabeus usada para esta postagem:

ABADIE, Philippe. 1-2 Macabeus. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 773-786.

JULIÁN, Víctor Pastor. História helenística. in: LAMADRID, Antonio González et al. História, narrativa, apocalíptica. São Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 291-328. Coleção: Introdução ao estudo da Bíblia, v. 3B.

MARTÍN NIETO, Evaristo. Livros dos Macabeus. in: OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Antigo Testamento I. São Paulo: Ave Maria, 2002, pp. 673-726.

MCELENEY, Neil J. 1 e 2 Macabeus. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007, pp. 835-882.

Para saber mais sobre a Festa da Dedicação do Templo (Hanukkah):

DI SANTE, Carmine. Liturgia judaica: fontes, estrutura, orações e festas. São Paulo: Paulus, 2004, pp. 242-244.

Notas:
[1] Além de 1 e 2 Macabeus são livros deuterocanônicos Tobias, Judite, Sabedoria, Eclesiástico (Sirácida) e Baruc. Há também adições em grego a Ester e Daniel.
[2] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] ibid., p. 103.
[4] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. xxx.
[5] ibid., p. xxx.
[6] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. xxx.
[7] ibid., p. xxx.
[8] LECIONÁRIO IV: Lecionário do Pontifical Romano. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 188.
[9] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. I, p. 1401; v. II, p. 1955; v. III, p. 1779; v. IV, p. 1791. A outra opção de leitura breve é Jó 19,25-26.
[10] cf. ALDAZÁBAL, op. cit., p. 76.
[11] ibid., p. 105.
[12] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, pp. xxx.
[13] OFÍCIO DIVINO, v. IV, pp. 405.410.413.417.421.425.429.
[14] ALDAZÁBAL, José. Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2010, p. 88.
[15] Os títulos das leituras foram traduzidos livremente do texto espanhol divulgado pelo site Dei Verbum

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