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quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Catequeses sobre os Salmos (4): Laudes da terça-feira da I semana

Nesta postagem trazemos as Catequeses do Papa João Paulo II sobre os salmos e o cântico das Laudes da terça-feira da I semana do Saltério, proferidas nos dias 20 de junho (Sl 23), 25 de julho (Tb 13,2-8) e 08 de agosto de 2001 (Sl 32).

20 de junho de 2001

1. O antigo cântico do Povo de Deus, que agora acabamos de ouvir, ressoava no fundo do templo de Jerusalém. Para poder captar com clareza a ideia-base que atravessa este hino, é necessário ter bem presentes três dos seus pressupostos fundamentais. O primeiro diz respeito à verdade da criação: Deus criou o mundo e é o seu Senhor. O segundo refere-se ao juízo ao qual Ele submete as suas criaturas: devemos apresentar-nos a Ele para sermos interrogados sobre o que realizamos. O terceiro é o mistério da vinda de Deus: Ele vem ao mundo e à história, e deseja ter livre acesso, para estabelecer com os homens uma relação de profunda comunhão. Um comentador moderno escreveu: “Estas são três formas elementares da experiência de Deus e da relação com Deus; nós vivemos por obra de Deus, perante Deus e podemos viver com Deus” (G. Ebeling, Sobre os Salmos, Bréscia, 1973, p. 97).

2. A estes três pressupostos correspondem as três partes do Salmo 23, que agora procuraremos aprofundar, considerando-as como três partes de um tríptico poético e orante. A primeira é uma breve aclamação ao Criador, ao qual pertence a terra com os seus habitantes (vv. 1-2). É uma espécie de profissão de fé no Senhor da criação e da história. A criação, segundo a antiga visão do mundo, é concebida como uma obra arquitetônica: Deus lança as bases da terra sobre o mar, símbolo das águas desordenadas e destruidoras, sinal do limite das criaturas, condicionadas pelo nada e pelo mal. A realidade está suspensa sobre este abismo e é a obra criadora e providencial de Deus que a conserva no ser e na vida.

3. Do horizonte cósmico a perspectiva do salmista limita-se ao microcosmo de Sião, “o monte do Senhor”. Estamos agora na segunda parte do Salmo (vv. 3-6). Estamos diante do templo de Jerusalém. A procissão dos fiéis dirige aos guardas da porta santa uma pergunta inicial: “Quem subirá até o monte do Senhor, quem ficará em sua santa habitação?”. Os sacerdotes, como se verifica também em alguns textos bíblicos chamados pelos estudiosos “Liturgias de entrada” (cf. Sl 14; Is 33,14-16; Mq 6,6-8), respondem fazendo o elenco das condições para poder ter acesso à comunhão com o Senhor no culto. Não se trata de normas meramente rituais e exteriores que devem ser cumpridas, mas de empenhos morais e existenciais a serem praticados. É quase como um exame de consciência ou um ato penitencial que precede a celebração litúrgica.

"Ó portas, levantai vossos frontões..." (Sl 23,7)
(Abertura da Porta Santa no Jubileu da Misericórdia - 2015)

4. São três as exigências apresentadas pelos sacerdotes. Em primeiro lugar é preciso ter “mãos puras e inocente coração”. “Mãos” e “coração” recordam a ação e a intenção, isto é, todo o ser do homem que deve estar radicalmente orientado para Deus e para a sua lei. A segunda exigência é a de “não dizer mentiras” que, na linguagem bíblica, não remete apenas para a sinceridade mas sobretudo para a luta contra a idolatria, sendo os ídolos falsos deuses, ou seja, “mentira”. Desta forma, recorda-se o primeiro mandamento do Decálogo, a pureza da religião e do culto. Por fim, eis a terceira condição que diz respeito às relações com o próximo: “não jurar falso para o dano de seu próximo”. A palavra, como sabemos, numa civilização oral como era a do antigo Israel, não podia ser instrumento de engano, mas ao contrário, símbolo de relações sociais inspiradas na justiça e na retidão.

5. Desta forma, chegamos à terceira parte que descreve indiretamente a entrada jubilosa dos fiéis no templo para se encontrarem com o Senhor (vv. 7-10). Num sugestivo jogo de apelos, perguntas e respostas, apresenta-se a revelação progressiva de Deus, marcada por três dos seus títulos solenes: “Rei da glória”, “Senhor valoroso e onipotente”, “Senhor poderoso nas batalhas”. As portas do templo de Sião são personificadas e convidadas a levantar os seus dintéis para deixar entrar o Senhor que toma posse da sua casa.
O cenário triunfal, descrito pelo Salmo nesta terceira parte poética foi utilizada pela Liturgia cristã do Oriente e do Ocidente para recordar tanto a vitoriosa descida de Cristo ao inferno, da qual fala a Primeira Carta de Pedro (cf. 3,19), como a gloriosa ascensão ao céu do Senhor Ressuscitado (cf. At 1,9-10). O mesmo salmo ainda é cantado em coros alternados pela Liturgia bizantina na noite pascal, da mesma forma como era utilizado pela Liturgia romana, no final da procissão dos ramos, no II Domingo da Paixão. A solene Liturgia da abertura da Porta Santa, durante a inauguração do Ano Jubilar, permitiu-nos reviver com intensa comoção interior os mesmos sentimentos vividos pelo salmista quando atravessou a porta do antigo Templo de Sião.

6. O último título, “Senhor poderoso nas batalhas”, não tem como poderia parecer à primeira vista um caráter marcial, mesmo se não exclui uma referência às tropas de Israel. Ao contrário, está dotado de um valor cósmico: o Senhor, que agora está para vir ao encontro da humanidade dentro do espaço limitado do santuário de Sião, é o Criador que tem por exército todas as estrelas do céu, ou seja, todas as criaturas do universo que lhe obedecem. No livro do profeta Baruc lê-se: “As estrelas brilham nos seus postos e alegram-se. Ele chama-as e elas respondem: ‘Aqui estamos’. E, jubilosas, dão luz ao Seu criador” (Br 3,34-35). O Deus infinito, onipotente e eterno adapta-se às criaturas humanas, aproxima-se delas para encontrá-las, ouvir e entrar em comunhão com elas. E a Liturgia é a expressão deste encontro na fé, no diálogo e no amor.

25 de julho de 2001

1. “De toda a minha alma louvarei o meu Deus, Rei do céu” (Tb 13,9). Quem pronuncia estas palavras, no cântico agora proclamado, é o velho Tobit, do qual o Antigo Testamento traça uma breve história edificante, no livro que toma o nome do filho, Tobias.
Para compreender plenamente o sentido deste hino, é preciso considerar as páginas narrativas que o precedem. A história passa-se entre os israelitas exilados em Nínive. O autor sagrado olha para eles, escrevendo muitos séculos depois, para apontá-los aos irmãos e irmãs de fé, dispersos no meio de um povo estrangeiro e tentados a abandonar as tradições de seus pais. O retrato de Tobit e da sua família é oferecido como um programa de vida. Ele é o homem que, apesar de tudo, permanece fiel à lei e, em particular, à prática da esmola. Sobre ele se abate a infelicidade com a chegada inesperada da pobreza e da cegueira, mas não lhe falta a fé. E a resposta de Deus não tarda a chegar, através do anjo Rafael, que guia o jovem Tobias numa viagem perigosa, preparando-o para um matrimônio feliz e, enfim, curando o pai Tobit da cegueira.
A mensagem é clara: quem faz o bem, sobretudo abrindo o coração à necessidade do próximo, agradará ao Senhor e, ainda que seja posto à prova, experimentará, por fim, a Sua benevolência.

2. É sobre este fundo que tomam todo o seu realce as palavras do nosso hino. Ele convida a olhar para o alto, para “Deus que vive eternamente”, para o seu reino que “se estende nos séculos” (v. 2). A partir deste olhar voltado para Deus se desenvolve um breve esboço de teologia da história, em que o autor sagrado procura responder à interrogação que o Povo de Deus, disperso e provado, apresenta a si mesmo: porque é que Deus nos trata assim? A resposta faz um apelo conjunto à justiça e à misericórdia divina: “castigou-nos por nossos pecados”, mas, a seguir, “seu amor haverá de salvar-nos” (v. 5). O castigo aparece assim como uma espécie de pedagogia divina, onde, todavia, a última palavra é sempre reservada à misericórdia: “Porque vós castigais e salvais, fazeis descer aos abismos da terra, e de lá nos trazeis novamente: de vossa mão nada pode escapar” (v. 2).
Podemos, pois, confiar de modo absoluto em Deus, que nunca abandona a sua criatura. Aliás, as palavras do hino conduzem-nos a uma perspectiva, que atribui um significado salvífico à própria situação de sofrimento, fazendo do exílio uma ocasião para testemunhar as obras de Deus: “Vós que sois de Israel, dai-lhe graças e por entre as nações celebrai-o! O Senhor dispersou-vos na terra para narrardes sua glória entre os povos” (vv. 3-4).

3. Deste convite a ler o exílio como chave providencial, a nossa meditação pode alargar-se na consideração do sentido misteriosamente positivo que assume a condição de sofrimento, quando é vivida no abandono à vontade de Deus. Algumas passagens no Antigo Testamento esboçam já este tema. Basta pensar na história, narrada pelo Livro do Gênesis, sobre José vendido pelos irmãos (cf. Gn 37,2-36) e destinado a ser, no futuro, o seu salvador. E como esquecer o Livro de Jó? Aqui, é verdadeiramente o homem inocente que sofre e não encontra explicação para o seu drama, senão confiando na grandeza e sabedoria de Deus (cf.  42,1-6).
Para nós, que lemos de maneira cristã estas passagens do Antigo Testamento, o ponto de referência não pode deixar de ser a Cruz de Cristo, na qual se encontra uma resposta profunda para o mistério da dor no mundo.

4. Aos pecadores que são julgados pelas suas injustiças (cf. v. 5), o hino de Tobit dirige um apelo à conversão e abre a perspectiva maravilhosa de uma “recíproca” conversão de Deus e do homem: “Convertei-vos, enfim, pecadores, diante d’Ele vivei na justiça; e sabei que, se Ele vos ama, também vos dará seu perdão!” (v. 6). É muito eloquente este uso da mesma palavra “conversão” para a criatura e para Deus, embora com significado diverso.
Se o autor do cântico pensa, porventura, nos benefícios que acompanham o “regresso” de Deus, ou seja, o seu renovado favor para com o povo, nós devemos pensar sobretudo, à luz do mistério de Cristo, no dom que consiste no próprio Deus. O homem tem necessidade dele, mesmo mais do que dos seus dons. O pecado é uma tragédia não tanto porque nos atrai os castigos de Deus, mas porque O repele do nosso coração.

5. Por isso, é para o rosto de Deus considerado como Pai que o cântico dirige o nosso olhar, convidando-nos à bênção e ao louvor: “Ele é o nosso Senhor e o nosso Deus, é o nosso Pai” (v. 4). Descobre-se que o sentido desta especial “filiação” que Israel experimenta como dom de aliança e que prepara o mistério da Encarnação do Filho de Deus. Então, em Jesus, resplandecerá o rosto do Pai e será revelada a sua misericórdia sem limites.
Bastaria pensar na parábola do Pai misericordioso narrada pelo evangelista Lucas. À conversão do filho pródigo não corresponde só o perdão do Pai, mas um abraço de infinita ternura, acompanhado da alegria e da festa: “Ainda estava longe quando o pai o viu e, enchendo-se de compaixão, correu a lançar-se ao seu pescoço, cobrindo-o de beijos” (Lc 15,20). As expressões do nosso cântico estão na linha desta comovente imagem evangélica. E dela nasce a necessidade de louvar e agradecer a Deus: “Eu desejo, de toda a minha alma alegrar-me em Deus, Rei dos céus. Bendizei o Senhor, seus eleitos, fazei festa e alegres louvai-o!” (vv. 7-8).

08 de agosto de 2001

1. Distribuído em 22 versículos, tantos quanto é o número de letras do alfabeto hebraico, o Salmo 32 é um cântico de louvor ao Senhor do universo e da história. Um frêmito de alegria invade-o desde as primeiras expressões: “Ó justos, alegrai-vos no Senhor! Aos retos fica bem glorificá-lo. Dai graças ao Senhor ao som da harpa, na lira de dez cordas celebrai-o! Cantai para o Senhor um canto novo, com arte sustentai a louvação!” (vv. 1-3). Por conseguinte, esta aclamação (tern'ah) é acompanhada pela música e é expressão de uma voz interior de fé e de esperança, de felicidade e de confiança. O cântico é “novo”, não só porque renova a certeza da presença divina no âmbito da criação e das vicissitudes humanas, mas também porque antecipa o louvor perfeito que se entoará no dia da salvação definitiva, quando o Reino de Deus chegar à sua atuação gloriosa.
É precisamente para a realização final em Cristo que olha São Basílio, o qual explica este trecho da seguinte forma: “Habitualmente, chama-se ‘novo’ o que é inusitado ou o que acaba de nascer. Se pensas no modo maravilhoso e superior a qualquer imaginação da Encarnação do Senhor, cantas necessariamente um cântico novo e extraordinário. E se percorres com a mente a regeneração e a renovação de toda a humanidade, envelhecida pelo pecado, e anuncias os mistérios da Ressurreição, também cantas um cântico novo e extraordinário” (Homilia sobre o Salmo 32, 2: PG 29, 327). Em síntese, segundo São Basílio o convite do salmista que diz: “Cantai para o Senhor um canto novo”, para os crentes em Cristo significa: “Honrai a Deus, não segundo o antigo costume da ‘letra’, mas na novidade do ‘espírito’. De fato, quem não compreende a Lei sob o aspecto exterior, e todavia reconhece o seu ‘espírito’, canta um ‘cântico novo’” (ibid.).

2. No seu corpo central, o hino divide-se em três partes que se compõem como uma trilogia de louvor. Na primeira (vv. 6-9) celebra-se a Palavra criadora de Deus. A admirável arquitetura do universo, semelhante a um templo cósmico, desabrochou e cresceu não através de uma luta entre deuses, como sugeriam algumas cosmogonias do antigo Oriente Próximo, mas apenas com base na eficaz palavra divina. Precisamente como ensina a primeira página do Gênesis (cf. Gn 1): “Deus disse... e tudo foi feito”. De fato, o salmista repete: “Ele falou e toda a terra foi criada, Ele ordenou e as coisas todas existiram” (v. 9).
O orante reserva um relevo especial ao controle das águas do mar porque, na Bíblia, elas são o sinal do caos e do mal. Apesar dos seus limites, o mundo é, contudo, mantido no seu ser pelo Criador que, como recorda o Livro de Jó, ordena que o mar se detenha no litoral: “Chegarás até aqui, mas não irás mais além; aqui se quebrará o orgulho das tuas ondas” (Jó 38,11).

3. O Senhor também é o soberano da história humana, como está escrito na segunda parte do Salmo 32, nos versículos 10-15. Com uma vigorosa antítese, opõem-se os projetos dos poderes terrenos e o desígnio admirável que Deus está a traçar na história. Quando querem ser alternativos, os programas humanos introduzem a injustiça, o mal e a violência, pondo-se contra o projeto divino de justiça e salvação. E apesar dos êxitos transitórios ou aparentes, limitam-se a simples maquinações, que se destinam a dissolver-se e a falir. No Livro dos Provérbios declara-se sinteticamente: “Há muitos projetos no coração do homem, mas é a vontade do Senhor que prevalece” (Pr 19,21). De maneira análoga, o salmista recorda-nos que, do céu, sua habitação transcendente, Deus acompanha todos os itinerários da humanidade, mesmo os que são insensatos e absurdos, e intui todos os segredos do coração humano.
“Onde quer que tu vás, tudo o que tu realizas, quer nas trevas, quer à luz do dia, o olhar de Deus observa-te”, comenta São Basílio (Homilia sobre o Salmo 32, 8: PG 29, 343). Feliz será o povo que, acolhendo a revelação divina, seguir as suas indicações de vida, percorrendo as suas veredas nos caminhos da história. No final só permanece uma coisa: somente “os desígnios do Senhor são para sempre, e os pensamentos que ele traz no coração, de geração em geração, vão perdurar” (v. 11).

4. A terceira e última parte do Salmo (vv. 16-22) retoma de dois pontos de vista novos o tema do senhorio único de Deus sobre as vicissitudes humanas. Em primeiro lugar, por parte dos poderosos, convidados a não se iludirem no que se refere à força militar dos exércitos e das cavalarias. Depois, por parte dos fiéis, muitas vezes oprimidos, famintos e à beira da morte: são convidados a ter esperança no Senhor que não os deixará precipitar no abismo da destruição.
Revela-se, desta forma, também a função “catequética” deste Salmo. Ele transforma-se num apelo à fé num Deus que não é indiferente à arrogância dos poderosos e que está próximo das debilidades da humanidade, elevando-a e apoiando-a se tem esperança, se n’Ele confia, se a Ele eleva a súplica e o louvor.
“A humildade dos que servem a Deus - explica ainda São Basílio - mostra que eles esperam na sua misericórdia. De fato, quem não tem confiança nos seus grandes empreendimentos, nem espera ser justificado pelas suas obras, tem como única esperança de salvação a misericórdia de Deus” (Homilia sobre o Salmo 32, 10: PG 29, 347).

5. O Salmo termina com uma antífona que foi inserida no final do conhecido hino Te Deum: “Sobre nós venha, Senhor, a vossa graça, da mesma forma que em vós nós esperamos!” (v. 22). Graça divina e esperança humana encontram-se e abraçam-se. Aliás, a fidelidade amorosa de Deus (segundo o valor da palavra hebraica original usada aqui, hésed), semelhante a um manto, envolve-nos, aquece-nos e protege-nos, oferecendo-nos serenidade e dando um fundamento certo à nossa fé e esperança.

"Dai graças ao Senhor ao som da harpa..." (Sl 32,3)
(Vitral da Catedral de Worcester, Inglaterra)

Fonte: Santa Sé (20 de junho, 25 de julho e 08 de agosto de 2001)

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