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terça-feira, 29 de setembro de 2020

A história da Festa dos Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael

Bendizei ao Senhor Deus, seus anjos todos, valorosos que cumpris as suas ordens, sempre prontos para ouvir a sua voz!” (Sl 102,20).

A Festa dos Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael, os únicos três anjos nomeados na Sagrada Escritura [1], é celebrada no dia 29 de setembro. Seu culto foi defendido pelo Papa São Zacarias I (741-752) durante o Sínodo de Roma de 745, o qual proibiu invocar nomes de anjos mencionados apenas nos apócrifos.

Arcanjos Miguel, Rafael e Gabriel sustentam o ícone de Cristo

A origem da festa de 29 de setembro remonta ao século VI, embora no início fosse uma celebração específica do Arcanjo Miguel, que dos três foi sempre o mais venerado no Rito Romano [2].

A devoção a São Miguel

Embora Miguel seja identificado na Escritura como protetor, a devoção mais antiga atribui-lhe o caráter de taumaturgo, isto é, aquele que faz milagres, que cura as enfermidades. Na Frígia (parte da atual Turquia) haviam fontes atribuídas ao seu patrocínio, cujas águas eram consideradas curativas.

Em Constantinopla teria sido construída a primeira igreja em sua honra, o Michaelion, no tempo do Imperador Constantino (séc. IV). Para comemorar sua vitória sobre Licínio na Batalha de Adrianópolis (324), o Imperador teria encomendado para a igreja um ícone de Miguel em armadura subjugando Satanás representado como uma serpente, elementos que se tornaram característicos de sua iconografia.

Logo a devoção a este Arcanjo se tornou muito popular: apenas em Constantinopla teriam sido construídas quinze igrejas em sua honra. Também no Egito Miguel era particularmente venerado, sendo-lhe confiada a proteção do rio Nilo.

No Ocidente seu culto difundiu-se a partir do século V, especialmente na Itália. Neste período teria sido construída a Basílica de São Miguel na via Salária, ao norte de Roma, cuja dedicação no dia 29 de setembro marca a origem da atual festa dos Arcanjos.

O Sacramentário Veronense (séc. VI) traz cinco formulários de Missa para o dia 30 de setembro, descrito como Natale basilicae Sancti Angeli in Salaria. Os Sacramentários Gelasiano e Gregoriano (séc. VII-VIII), por sua vez, trazem a indicação Dedicatio basilicae Sancti Michaelis para o dia 29 de setembro, data que prevaleceu, mesmo após a destruição da igreja (cujas fundações foram redescobertas apenas em 1996).

No final do século V a tradição narra uma aparição do Arcanjo Miguel em uma caverna do monte Gargano, no sul da Itália, no dia 08 de maio. Ali foi edificado um santuário em sua honra que logo se tornou muito popular, de modo que foi acrescida ao calendário a celebração da Apparitio Sancti Michaelis (Aparição de São Miguel) no dia 08 de maio.

Esta celebração foi suprimida na edição do Missal de 1962, considerada como duplicação da festa de 29 de setembro (de fato, eram utilizadas as mesmas orações e leituras para as duas festas).

Santuário de São Miguel em Gargano (Itália)

A Liturgia romana atribuía a Miguel várias funções: primeiramente como condutor das almas para o céu, à luz da parábola do rico e Lázaro, onde este é levado pelos anjos ao seio de Abraão (Lc 16,22). Desta tradição derivam as invocações ao Arcanjo nas orações da encomendação dos agonizantes e nas Missas dos defuntos. Esta tradição influenciou também a iconografia do arcanjo: foi-lhe acrescentada uma balança, com a qual se pesariam as obras da alma por ele conduzida.

Além de condutor das almas, Miguel era naturalmente invocado como o protetor do povo de Deus, como é apresentado nos textos bíblicos. O versículo da aclamação ao Evangelho da Missa do dia 29 de setembro tornou-se bastante popular: “Sancte Michael Archangele, defende nos in proelio (“São Miguel Arcanjo, defendei-nos no combate”).

Na Idade Média o Arcanjo era recorrente como patrono de cidades, províncias e reinos católicos. Sua imagem era pintada nos estandartes que iam à frente das batalhas. Em Roma, sua estátua encima o famoso Castel Sant’Ângelo, celebrando sua proteção durante uma peste em 590.

Arcanjo Miguel (Igreja Ortodoxa Sérvia em Trieste - Itália)

Também neste período popularizou-se a crença de que o anjo com o turíbulo de ouro no Livro do Apocalipse, o qual apresenta a Deus a oração dos santos (Ap 8,3-5), era o próprio Miguel. Assim, ele era invocado na oração de bênção do incenso durante o momento do ofertório (embora o Cardeal Ildefonso Schuster em seu Liber Sacramentorum defenda que originalmente era invocado aqui o Arcanjo Gabriel).

A mesma interpretação era feita sobre o anjo mencionado no Cânon Romano (Oração Eucarística I), que, por alguma razão, foisimplesmente eliminado da tradução brasileira. Segue abaixo a versão brasileira e a versão de Portugal:

“Nós vos suplicamos que ela [a oferenda] seja levada à vossa presença, para que, ao participarmos deste altar, recebendo o Corpo e o Sangue de vosso Filho, sejamos repletos de todas as graças e bênçãos do céu” (Missal Romano, pp. 474-475).

“Humildemente Vos suplicamos, Deus todo-poderoso, que esta nossa oferenda seja apresentada pelo vosso santo Anjo no altar celeste, diante da vossa divina majestade, para que todos nós, participando deste altar pela comunhão do santíssimo Corpo e Sangue do vosso Filho alcancemos a plenitude das bênçãos e graças do Céu” (Ordinário da Missa, Secretariado Nacional de Liturgia de Portugal).

A partir do século X, por fim, difundiu-se a tradição de celebrar Missas votivas em honra de Miguel e dos santos anjos na segunda-feira, o dia seguinte ao domingo, provavelmente em alusão ao anjo que anunciou a Ressurreição às santas mulheres.


A devoção a São Gabriel e São Rafael

A devoção aos outros dois arcanjos nomeados pela Escritura é muito mais recente. Suas festas foram inscritas no Calendário Romano apenas em 1921, pelo Papa Bento XV.

O Arcanjo Gabriel foi associado, naturalmente, à Solenidade da Anunciação do Senhor, tendo sua festa inscrita no dia anterior, 24 de março. Cumpre notar que a mesma lógica é utilizada no Rito Bizantino, que celebra o grande mensageiro no dia seguinte à Anunciação, 26 de março.

Com efeito, no Oriente este anjo recebe a mesma veneração atribuída a Miguel, tanto que os dois costumam ser retratados nas portas laterais da iconostase e em algumas versões da deesis. A grande festa dos anjos no Rito Bizantino, no dia 08 de novembro, traz o nome dos dois: “Santos Arquiestrategos Miguel e Gabriel, arcanjos, e todos os incorpóreos celestes” [3].


Rafael, por sua vez, não recebe particular veneração no Oriente. No Rito Romano sua festa foi fixada por Bento XV em 24 de outubro. Além das referências à história de Tobias nas orações e leituras, é digno de nota o Evangelho desta Missa (Jo 5,1-4), fazendo eco a uma antiga tradição que identificava Rafael com o anjo que agitava a água da piscina de Betesda, tornando-a curativa (v. 4).

Segundo Schuster, sendo a “medicina de Deus”, Rafael era identificado também em algumas tradições com o anjo que confortou Jesus na agonia do Getsêmani (Lc 22,43).


A reforma do Concílio Vaticano II

Com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, as três celebrações foram unificadas na data mais antiga de 29 de setembro, que se tornou a Festa de São Miguel, São Gabriel e São Rafael, Arcanjos (Missal Romano, pp. 666-667).

Algumas das orações da antiga Liturgia deste dia foram conservadas, uma vez que não faziam referência apenas a Miguel, mas a todos os anjos. A mais célebre é a coleta, atribuída ao Papa São Gregório Magno (séc. VI-VII):

Deus, qui miro órdine Angelórum ministéria hominúmque dispénsas, concéde propítius, ut, a quibus tibi ministrántibus in caelo semper assístitur, ab his in terra vita nostra muniátur. Per Dóminum...

Foram conservadas também a antífona de entrada (Sl 102,20) e a oração sobre as oferendas (com pequenas alterações). A oração após a Comunhão é de nova composição, assim como o “Prefácio dos Anjos” (Missal Romano, p. 447), além das opções de leituras: Dn 7,9-10.13-14 ou Ap 12,7-12a; Sl 137(138),1-5; Jo 1,47-51.

Destaque para a Liturgia das Horas da Festa, com praticamente todos os textos próprios, incluindo as salmodias, além de hinos, leituras e antífonas recordando cada um dos três Arcanjos. Por exemplo, nas três Horas médias: a Terça (9h) recorda São Miguel, a Sexta (12h) recorda São Gabriel e a Nona (15h) recorda São Rafael [4].

Para acessar nossas postagens sobre os três hinos da Festa, com seu texto em latim e em português e alguns comentários sobre a sua teologia, clique nos links abaixo:
Ofício das Leituras: Festíva vos, archángeli (Arcanjos, para vós);
Laudes: Tibi, Christe, splendor Patris (Ó Cristo, Luz de Deus Pai);
Vésperas: Angelum pacis Míchael (Lá do alto enviai-nos, ó Cristo).


Confira também:



Notas:
[1] Miguel (Quem é como Deus?) é citado no Livro de Daniel (Dn 10,13.21; 12,1) na Epístola de Judas (Jd 9) e no Apocalipse de João (Ap 12,7);
Gabriel (Força de Deus) é mencionado no Livro de Daniel (Dn 8,16; 9,21) e no Evangelho de Lucas (Lc 1,19.26);
Rafael (Deus cura), por fim, aparece apenas no Livro de Tobias (cf. sobretudo Tb 5–12).

[2] O Arcanjo Miguel é invocado em todas as versões da Ladainha de Todos os Santos do Rito Romano (Vigília Pascal, Batismo, Ordenações, Profissão religiosa, Encomendação dos agonizantes...), logo após a Virgem Maria e antes da invocação genérica aos “Santos Anjos de Deus”.
Os outros dois arcanjos, porém, aparecem apenas na versão mais longa da Ladainha presente no Graduale Romanum.


[3] Arquiestratego é o termo grego para “general supremo”.

[4] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. IV, pp. 1312-1328.

Referências:

ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 184-185.

AUGÉ, Matias. Ano Litúrgico: É o próprio Cristo presente na sua Igreja. São Paulo: Paulinas, 2019, pp. 321-323.

RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1955, pp. 943-947.

SCHUSTER, Cardeal Alfredo Ildefonso. Liber sacramentorum, v. VII: Le Feste dei Santi dalla Quaresima all'ottava dei Principi degli Apostoli. Torino-Roma: Marietti, 1930, pp. 71-74 (Gabriel); pp. 161-165 (Aparição de Miguel).

Idem. Liber sacramentorum, v. VIII: Le Feste dei Santi dall'ottava dei Principi degli Apostoli alla Dedicazione di S. Michele. Torino-Roma: Marietti, 1932, pp. 287-289 (Miguel).

Idem. Liber sacramentorum, v. IX: Le Feste dei Santi dalla Dedicazione di S. Michele all'Avvento. Torino-Roma: Marietti, 1932, pp. 52-55 (Rafael).

Postagem publicada originalmente em 29 de setembro de 2020. Atualizada em 29 de setembro de 2021 com os links para as postagens sobre os três hinos da Festa dos Arcanjos na Liturgia das Horas.

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