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quarta-feira, 25 de março de 2020

O ícone da Anunciação do Senhor

“Hoje a alegria contagia a todos, porque a antiga condenação fica sem efeito. Hoje chega Aquele que está em todos os lugares, a fim de encher de alegria todas as coisas” - Santo André de Creta [1]

Em nossa série de postagens sobre os ícones das festas litúrgicas, meditaremos hoje sobre a última das celebrações ligadas ao mistério da Encarnação do Senhor, que do ponto de vista cronológico é, na verdade, a primeira: a solenidade da Anunciação do Senhor, comemorada nove meses antes do Natal, no dia 25 de março.

Origem e conteúdo da festa

A origem da festa remonta, no Oriente, ao Concílio de Éfeso (431), que promulgou o dogma da maternidade divina de Maria. Ao lado do Natal, que proclamava a verdade da Encarnação, isto é, a humanidade do Filho, começou-se a celebrar a festa da Anunciação para professar, à luz do Evangelho (Lc 1,26-38), sua divindade.

Inicialmente no domingo anterior ao Natal ou uma semana antes deste (no dia 18 de dezembro), a festa passou, no século VI, a ser celebrada nove meses antes da Natividade, isto é, no dia 25 de março. Este dia, próximo ao equinócio de primavera no hemisfério norte, era, além disso, considerado o dia da criação do mundo. Assim, a festa da Anunciação proclama a nova criação que se inicia no seio de Maria.

Em Roma esta festa foi introduzida pelo Papa Sérgio I (687-701), o qual prescreveu uma procissão festiva em honra da Mãe de Deus. De fato, durante muitos séculos esta festa, no Ocidente, enfatizou demais o papel da Virgem Maria, tendo readquirido seu caráter cristológico com a reforma do Concílio Vaticano II.

Uma dificuldade em relação ao dia 25 de março é que coincide sempre com o período da Quaresma, razão pela qual a Anunciação não é celebrada com grande solenidade no Ocidente. No Oriente, porém, mesmo que coincida com um dia da Semana Santa, é celebrada festivamente.

Com efeito, a importância desta festa é visível nas igrejas bizantinas, que colocam seu ícone no lugar de maior destaque, isto é, nas portas centrais da iconostase, que dão acesso ao santuário.

A festa celebra o mistério da Encarnação na sua totalidade, recordando tanto a Mãe quanto Filho, novo Adão e nova Eva que, com sua obediência, desfazem o “nó” do pecado original e dão início a uma nova criação.

O ícone


O ambiente: Como no ícone da Natividade de Maria, o ambiente é a casa, o espaço familiar: “o anjo entrou onde ela estava” (Lc 1,28). No fundo, cobrindo toda a cena, costuma ser representado um véu de cor vermelha. Este véu une o Antigo Testamento, cujas promessas estão para cumprir-se, com o Novo Testamento, prestes a começar com o “sim” de Maria.

O véu simboliza também o amor de Deus que a todos envolve e o mistério de Deus escondido no ventre de Maria: o véu servia para ocultar o local da manifestação de Deus na tenda da reunião do Êxodo e no Templo de Jerusalém. Este véu só irá rasgar-se definitivamente no momento da Paixão do Senhor (Mt 27,51).

Ainda na casa de Nazaré, onde se desenrola a cena, costuma ser representado um vaso de flores, que nos remete ao jardim do Éden. Com a obediência de Maria, que se contrapõe à desobediência de Adão e Eva, abre-se para eles a possibilidade de, na Ressurreição do Senhor, ingressar no paraíso.

Este paralelo entre o Gênesis e o Evangelho é notório na Porta Santa da Basílica de São Pedro (painéis 1 a 4): de um lado, a expulsão dos primeiros pais do paraíso por um anjo com uma espada flamejante; do outro, a Anunciação a Maria, com o anjo portando uma flor.

Por fim, algumas representações deste ícone retratam um poço entre o anjo e a Virgem. O poço quadrado é símbolo da criação (indicando os quatro pontos cardeais, isto é, a totalidade do mundo). É, além disso, um poço vazio: está à espera de receber a água da vida, oferecida pelo Cristo (Jo 4,14).

A criação que espera a salvação através da resposta de Maria aparece em uma célebre homilia de São Bernardo: “Ó Virgem cheia de bondade, o pobre Adão, expulso do paraíso com a sua mísera descendência, implora a tua resposta; Abraão a implora, Davi a implora. Os outros patriarcas, teus antepassados, que também habitam a região da sombra da morte, suplicam esta resposta. O mundo inteiro a espera (...) Apressa-te, ó Virgem, em dar a tua resposta” [3]

O anjo: A parte esquerda do ícone é dominada pela figura do Anjo Gabriel, facilmente identificado por suas grandes asas, geralmente na cor vermelha, a cor do fogo, indicando que ele é impelido pelo amor de Deus (2Cor 5,14).

Suas vestes geralmente são brancas: “é a cor que precede à luz da manhã, a cor que anuncia o nascimento, a vida” [4]. Não obstante, também o encontramos em vestes verdes (símbolo da vida, remetendo às plantas vivas) ou azuis (a cor do céu, indicando sua origem). Às vezes possui uma faixa azul no ombro, indicando que vem do céu, da parte de Deus, ou uma faixa dourada, indicando sua nobreza: é o mensageiro do Rei.

Na mão esquerda, Gabriel “empunha comprido bastão, símbolo da autoridade e da dignidade da pessoa, do mensageiro, do peregrino” [5], enquanto que a mão direita está estendida em direção à Virgem, com três dedos levantados, um gesto de bênção em alusão à Trindade, a qual cobrirá Maria com sua sombra.

Às vezes o anjo aparece, por fim, sobre um pequeno pedestal na cor azul, indicando sua origem celeste. Este pedestal se contrapõe ao poço, símbolo do mundo.

A Virgem: Maria domina o lado direito do ícone, ora sentada sobre um trono, ora em pé à frente deste. Esta representada, como de costume, por uma túnica na cor azul e um longo manto na cor vermelha.

Este manto (omophorion), porém, costuma ter aqui uma tonalidade mais escura: “a cor escura significa a humildade; a terra arada pronta para receber a semente que a fará frutificar” [6]. Sobre o manto, como é comum nas representações da Mãe de Deus, encontramos três estrelas: na fronte e nos ombros, símbolos da Trindade que a envolveu com sua sombra e de sua virgindade perpétua: antes da Anunciação, no momento da concepção do Verbo e durante toda a sua vida.

Maria é retratada aqui com ao menos uma das mãos levantadas, gesto de espanto diante do anúncio do anjo, conforme narrado no Evangelho. Em algumas versões do ícone segura na outra mão um rolo de linha vermelha com a agulha. É uma profecia do que vai acontecer em seguida: a humanidade do Filho vai ser “tecida” em seu ventre.

Sua representação sentada ou diante de um trono evoca sua realeza: a partir deste momento ela é a gebirah, a Rainha-Mãe. “O Senhor Deus lhe dará [ao seu Filho] o trono de seu pai Davi” (Lc 1,32). O célebre hino Akathistos saúda repetidas vezes Maria como “trono de Deus” ou “trono da Sabedoria”.

Diante do trono há um pedestal sobre o qual Maria pisa. Se há no ícone um pedestal para Gabriel, o de Maria é maior, indicando que com o seu “sim” galgou um lugar superior aos coros dos anjos.

A luz do Altíssimo: Por fim, no topo do ícone encontramos um raio de luz que desce do céu e aponta para a Virgem. Este raio é, naturalmente, a presença de Deus, como no ícone da Teofania.

De fato, toda a Trindade participa deste acontecimento, como podemos concluir pelas palavras do Anjo (Lc 1,35):
a) “O Espírito virá sobre ti”: como professamos no Símbolo, o Filho foi concebido pelo poder ou pela ação do Espírito Santo. Ele às vezes aparece no ícone como uma pomba que desce sobre Maria;
b) “O poder do Altissimo te cobrirá com sua sombra”: No Antigo Testamento a principal imagem de Deus Pai era a sombra ou nuvem. Está presente no nimbo de cor mais escura bem no alto da tela;
c) “O menino que vai nascer será chamado Santo, Filho de Deus”: Por fim, o Filho é o próprio raio que desce do céu e toca a Virgem.

Em algumas interessantes representações deste evento, o raio toca o ouvido de Maria, pois ela concebe ao ouvir a Palavra de Deus anunciada pelo Anjo.  A morte entrou no mundo através do ouvido de Eva: por isso a vida deveria entrar no mundo através do ouvido de Maria” [7]. Ou, para usar a célebre expressão de Santo Agostinho: “antes de conceber Jesus em seu seio, Maria o concebeu em seu coração”.

Hoje é o começo da nossa salvação e a manifestação do eterno mistério: o Filho de Deus torna-se Filho da Virgem e Gabriel anuncia a graça.
Com ele aclamamos, pois, à Mãe de Deus: Ave, ó cheia de graça, o Senhor é contigo!
 Tropário da festa [8]

[1] PASSARELLI, Gaetano. O ícone da Anunciação. São Paulo: Ave Maria, 1996, p. 11. Coleção: Iconostásio, 11.
[2] Sobre a história desta festa confira:
ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 112-113.
DONADEO, Madre Maria. O Ano Litúrgico Bizantino. São Paulo: Ave Maria, 1998, pp. 56-60.
RIGHETTI, Mario. Historia de la Liturgia, v. I: Introducción general; El año litúrgico; El Breviario. Madrid: BAC, 1945, pp. 912-914.
[3] 2ª leitura do Ofício das Leituras do dia 20 de dezembro. in: OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. 1: Tempo do Advento e Tempo do Natal, p. 310.
[4] PASSARELLI, op. cit., p. 22.
[5] ibid.
[6] ibid., p. 27.
[7] ibid., p. 34.
[8] DONADEO, op. cit., p. 57.

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