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quinta-feira, 1 de agosto de 2019

Leitura litúrgica do Livro da Sabedoria (1)

“A Sabedoria é um espírito amigo dos homens” (Sb 1,6)

Em abril publicamos aqui no blog uma análise sobre a leitura litúrgica do Livro do Profeta Joel, identificando sua presença nas celebrações do Rito Romano. Agora gostaríamos de dar continuidade a esta proposta, analisando o que provavelmente foi o último livro do Antigo Testamento (AT) a ser escrito: o Livro da Sabedoria (Sb), que foi tema do “Mês da Bíblia” promovido pela Igreja no Brasil em 2018.

1. Breve introdução ao Livro da Sabedoria

Este livro pertence ao grupo dos livros “deuterocanônicos” (“da segunda lista”), que por terem sido escritos em grego não foram aceitos na Bíblia hebraica (e posteriormente excluídos pelos cristãos protestantes).

Seu nome original é Σοφία Σαλωμῶνος, Sabedoria de Salomão, posteriormente traduzido para o latim por São Jerônimo simplesmente como “Liber Sapientiae”, Livro da Sabedoria. Com efeito, a autoria de Salomão é simbólica: sendo um escrito de caráter sapiencial, era natural associá-lo a Salomão, considerado como modelo de homem sábio. O mesmo acontece nos livros dos Provérbios, Cântico dos Cânticos e Qohélet (Eclesiastes).

O livro foi escrito em grego, provavelmente por um judeu sábio (a obra demonstra seu profundo conhecimento da história de Israel), em Alexandria (dada a ênfase ao Egito na obra). A maioria dos especialistas situa sua redação na segunda metade do século I a. C. (em torno do ano 150 a. C.), sendo, portanto, o último livro do AT a ser escrito.

Possui 19 capítulos que costumam ser divididos em três grandes blocos:
a) Sb 1–5: Seção “ética” - O destino dos ímpios e dos justos e a vitória da justiça divina;
b) Sb 6–9: Seção “filosófica” - O elogio da sabedoria e sua busca por Salomão;
c) Sb 10–19: Seção “teológica” - A sabedoria na história da salvação.

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem [1].

Salomão segurando o Livro da Sabedoria (Liber Sapientiae)
(Vitral da igreja de São Miguel e Todos os Anjos em Ledbury - Inglaterra)

2. Leitura litúrgica de Sb: Composição harmônica

Para analisar as ocorrências do Livro da Sabedoria nas celebrações litúrgicas, consideraremos aqui os dois critérios de escolha dos textos propostos no Elenco das Leituras da Missa, n. 66: a composição harmônica e a leitura semicontínua [2].

Começamos pela composição harmônica, que consiste na escolha dos textos em sintonia com a espiritualidade do tempo ou da festa litúrgica.

a) Celebração Eucarística

Dentre os diversos tempos do Ano Litúrgico, Sb aparece primeiramente uma vez durante a Quaresma, mais especificamente na sexta-feira da IV semana da Quaresma. A perícope escolhida aqui é Sb 2,1a.12-22 [3], que descreve os planos dos ímpios contra o homem justo, chegando a tramar sua morte. Em uma chave de leitura cristológica deste texto, oferecida pelo Evangelho do dia (Jo 7,1-2.10.25-30), Jesus é este justo perseguido. Há diversos textos dos relatos da Paixão paralelos a essa perícope.

Durante os domingos do Tempo Comum são oito as aparições de Sabedoria. O critério de escolha das leituras aqui é sua afinidade temática com o Evangelho [4].

No Ano A, durante o qual se lê o Evangelho de Mateus, Sb aparece duas vezes, nos Domingos XVI e XXIII.

No XVI Domingo do Tempo Comum do ano A se lê Sb 12,13.16-19 [5]: é um elogio à moderação de Deus, que embora onipotente, age com clemência. Aqui o texto complementa o tema da paciência de Deus descrita nas parábolas (Mt 13,24-43), especialmente a do joio e do trigo (vv. 24-30).

O XXXII Domingo do Tempo Comum do ano A oferece-nos, por sua vez, o texto de Sb 6,12-16 [6], que narra como a sabedoria se deixa encontrar e inclusive sai ao encontro de quem a busca. O tema da busca e do encontro aparece magistralmente no Evangelho através da parábola das dez virgens (Mt 25,1-13). Interpretada na chave escatológica própria dos últimos domingos do Tempo Comum, esta perícope identifica Jesus, o noivo da parábola, como esta sabedoria que vem ao nosso encontro. Os justos e os ímpios estão representados, respectivamente, pelas virgens prudentes e imprudentes.

No Ano B, dedicado à leitura do Evangelho de Marcos, a Igreja nos propõe o Livro da Sabedoria durante os Domingos XIII, XXV e XXVIII.

Comecemos com o XIII Domingo do Tempo Comum do ano B, com a leitura de Sb 1,13-15; 2,23-24 [7]. Esta perícope, que recolhe dois trechos de Sb, proclama o poder de Deus sobre a morte, manifesto em seguida no Evangelho pela ressurreição da filha de Jairo, intercalada pela cura da hemorroísa (Mc 5,21-43).

No XXV Domingo do Tempo Comum do ano B lemos Sb 2,12.17-20 [8], uma versão mais breve da perícope já proclamada na Quaresma, na qual vemos a trama dos iníquos contra o justo. Este tema aparece no Evangelho através do segundo anúncio da Paixão, seguido da discussão dos discípulos sobre quem é o maior (Mc 9,30-37).

Enfim, o XXVIII Domingo do Tempo Comum do ano B traz-nos o texto de Sb 7,7-11 [9], um trecho da busca de Salomão pela sabedoria, durante a qual ele afirma que prefere a sabedoria a todas as riquezas. A leitura estabelece uma antítese com a história do homem que não é capaz de deixar suas riquezas para seguir Jesus (Mc 10,17-30).

Concluindo o ciclo trienal dos domingos, no Ano C, o ano do Evangelho de Lucas, o Livro da Sabedoria aparece também três vezes, nos Domingos XIX, XXIII e XXXI.

Começando com o XIX Domingo do Tempo Comum do ano C, ouviremos na 1ª leitura Sb 18,6-9 [10], um trecho da sexta das antíteses do êxodo: para os ímpios egípcios, foi uma noite trágica, enquanto que para o povo de Deus foi a noite da libertação. A antítese complementa a exortação de Jesus à vigilância no Evangelho, representada pela vinda do senhor no meio da noite (Lc 12,32-48).

O êxodo: tema importante na 3ª sessão de Sabedoria
(Frédéric Schopin - séc. XIX)

Passando ao XXIII Domingo do Tempo Comum do ano C, refletimos sobre o texto de Sb 9,13-18 [11], a conclusão da oração de Salomão pedindo a sabedoria. Neste trecho este afirma que apenas com nosso esforço não conseguiremos alcançar a sabedoria: por isso, Jesus exorta os discípulos a abandonar tudo e segui-lo (Lc 14,25-33).

Por fim, no XXXI Domingo do Tempo Comum do ano C lemos Sb 11,23–12,2 [12], um elogio à misericórdia de Deus para com aqueles que se arrependem. Este texto complementa o encontro de Jesus com Zaqueu e a sua conversão (Lc 19,1-10).

Prosseguimos nossa análise pelo Próprio dos Santos, com duas leituras do nosso livro:

Primeiramente, na Memória de São Maximiliano Maria Kolbe (14 de agosto) é proposta como leitura adequada Sb 3,1-9 [13], perícope que proclama o destino escatológico dos justos, sendo utilizada, como veremos, também nas celebrações dos fiéis defuntos e dos mártires.

Na Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos (02 de novembro), há duas perícopes do Livro da Sabedoria que podem ser escolhidas ad libitum (à escolha) entre as opções para a 1ª leitura [14]:
- Sb 3,1-9: trecho que, como afirmamos acima, narra o destino final dos justos;
- Sb 4,7-15: a morte do justo, ainda que prematura, não é uma desgraça.
Vale lembrar que as leituras desse dia são previstas também para as Exéquias.

Após o Próprio, passando aos Comuns dos Santos, igualmente com várias opções de leituras ad libitum, isto é, à escolha, dentre as quais dois textos de Sb:

Comum dos Mártires: já citado texto de Sb 3,1-9 [15] sobre o destino dos justos;

Comum dos Doutores da Igreja: Sb 7,7-10.15-16 [16], parte do elogio de Salomão à sabedoria. Como o rei Salomão, os Doutores da Igreja (grupo formado atualmente por 36 santos e santas) se destacaram por sua busca da sabedoria.

Por fim, dentre as Missas votivas, celebradas por devoção, há uma leitura de Sabedoria à escolha na Missa votiva da Santa Cruz: Sb 2,1a.12-22 [17]. Trata-se da trama dos iníquos contra o justo, como vimos acima na Quaresma e no Tempo Comum.

Jesus conduz os justos do Antigo Testamento para o céu (cf. Sb 3,1-9)

Concluímos assim a primeira parte do nosso estudo sobre a leitura litúrgica do Livro da Sabedoria, texto que “encerra com chave-de-ouro” o Antigo Testamento. Na segunda parte dessa pesquisa continuaremos a análise sob o critério da composição harmônica com os demais sacramentos, os sacramentais e a Liturgia das Horas.

Atualizações:

Para acessar a segunda parte dessa pesquisa, publicada no dia 08 de agosto, clique aqui.

Para acessar a terceira parte dessa pesquisa, publicada no dia 15 de agosto, clique aqui.

Notas:
[1] ASENSIO, Víctor Morla. Livros sapienciais e outros escritos. 3ª ed. São Paulo: Ave Maria, 2008, pp. 227-250. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 5.
LEGRAND, Thierry. Sabedoria de Salomão. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 787-796.
[2] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, p. 230.
[4] cf. ALDAZÁBAL, op. cit., pp. 103-104.
[5] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. 296.
[6] ibid., p. 351.
[7] ibid., p. 605.
[8] ibid., p. 649.
[9] ibid., p. 659.
[10] ibid., p. 946.
[11] ibid., p. 960.
[12] ibid., p. 990.
[13] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. 153.
[14] LECIONÁRIO I, pp. 1052-1053.
[15] LECIONÁRIO III, p. 280.
[16] ibid., p. 330.
[17] ibid., p. 734.

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