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terça-feira, 12 de junho de 2012

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus

O Filho de Deus trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano
(Concílio Vaticano II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 22).

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus é uma das mais difundidas entre os fiéis. Com efeito, nas Sagradas Escrituras o coração não é apenas a sede das emoções e sentimentos, mas também da inteligência e da vontade [1]. Em suma, o coração simboliza o núcleo fundamental da pessoa humana.

Assim, o culto ao Coração de Jesus é o culto ao mistério de Cristo em sua totalidade, como sintetiza o Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia: “O Coração de Cristo é Cristo, Verbo Encarnado e Salvador, intrinsecamente voltado, no Espírito, com infinito amor divino-humano, para o Pai e para os homens seus irmãos” (n. 166).


1. Fundamentos da devoção ao Sagrado Coração

No Evangelho, Jesus refere-se diretamente ao seu coração: “Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29). Mas é sobretudo no Quarto Evangelho que esse símbolo ganha destaque: este é o Evangelho do “discípulo amado”, que repousou a cabeça junto ao Coração do Senhor (cf. Jo 13,25).

O evangelista “dá testemunho” (cf. Jo 19,35) do golpe da lança que abriu o lado de Cristo em direção ao coração, do qual saiu “sangue e água” (Jo 19,34). Esta mesma ferida do lado, em direção ao coração, será sinal da Ressurreição do Senhor (Jo 20,27).

Os Padres da Igreja interpretaram o sangue e a água que brotaram do coração de Cristo, “fonte de vida” (cf. Jo 7,37-38), como imagem da Igreja, fundada nos sacramentos do Batismo (água) e da Eucaristia (sangue).

O coração aberto de Cristo na cruz é, pois, a porta da sua misericórdia, como testemunha Santo Agostinho, citado pelo Diretório sobre a Piedade Popular: “A entrada é acessível: Cristo é a porta. Abriu-se também para ti quando o lado d’Ele foi aberto pela lança. Lembra-te de que coisa saiu dali; então escolhe por onde tu possas entrar. Do lado do Senhor que pendia da cruz e nela morria saiu sangue e água quando foi aberto pela lança. Na água está a tua purificação, no sangue a tua redenção” (n. 168).

Mosaico do Santuário Nacional da Imaculada Conceição - Washington, EUA

2. Desenvolvimento da devoção e o apoio dos Romanos Pontífices

Nos séculos seguintes, diversos santos aprofundariam a reflexão sobre o Coração de Cristo, como vimos em nossa postagem sobre a história do seu culto. Particularmente na Idade Moderna, essa devoção serviu como contraponto ao jansenismo (corrente teológica que enfatizava demais o rigor da justiça de Deus), recordando o infinito amor de Deus manifestado em Cristo.

Da mesma forma, os teólogos influenciados pelo Iluminismo (séc. XVIII), que enfatizavam a dimensão racional da fé, tiveram bastante resistência à devoção, considerando-a excessivamente “sentimental”.

Não obstante, os Romanos Pontífices, sobretudo no último século, aconselharam vivamente a devoção, inclusive enriquecendo com indulgências as práticas de piedade ligadas ao mistério do Coração de Cristo (Diretório sobre Piedade Popular, n. 171):

- Consagração pessoal ao Sagrado Coração de Jesus: considerada pelo Papa Pio XI em sua Encíclica Miserentissimus Redemptor como a principal prática devocional ao Sagrado Coração.

- Consagração da família ao Sagrado Coração: geralmente acompanhada da entronização da imagem do Sagrado Coração na casa. A família, que já participa pelo Sacramento do Matrimônio do mistério do amor de Cristo por sua Igreja, pede por esse gesto de devoção que Ele reine no coração de cada um de seus membros.

Basílica do Sagrado Coração de Jesus - Cracóvia, Polônia

- Ladainha do Sagrado Coração de Jesus: aprovada pelo Papa Leão XIII em 1889, com 33 invocações ao Coração de Cristo tomadas da Sagrada Escritura e da tradição da Igreja.

- Ato de reparação: fórmula de oração proposta pelo Papa Pio XI em sua Encíclica Miserentissimus Redemptor, pela qual imploramos a misericórdia do Senhor por nossos pecados.

- Comunhão na primeira sexta-feira do mês: prática promovida por Santa Margarida Maria Alacoque (†1690). No período em que o excessivo rigor do jansenismo afastou os fiéis da Comunhão, essa prática contribuiu para incentivar a frequência aos Sacramentos da Penitência e da Eucaristia.

A Comunhão na primeira sexta-feira do mês, dia votivo em honra do Sagrado Coração (diretamente associado à Paixão), porém, nunca deve obscurecer a primazia da Eucaristia dominical, nem ser interpretada com um caráter “mágico” (a ideia de que nove Comunhões na primeira sexta-feira seriam uma garantia da salvação).

Santa Margarida promoveu também a prática da Hora Santa, recordando o convite de Jesus à oração no Getsêmani (cf. Mt 26,38 e paralelos). Em alguns lugares esta Hora Santa (geralmente associada à adoração eucarística) tem lugar na noite da primeira quinta-feira do mês (como na Basílica do Getsêmani em Jerusalém), e em outros lugares na própria sexta-feira, unida à Missa votiva ao Sagrado Coração.

3. Da Encíclica Haurietis aquas aos nossos dias

O apoio dos Romanos Pontífices do século XX à devoção ao Sagrado Coração de Jesus tem seu ápice em 1956, quando o Papa Pio XII promulga a Encíclica Haurietis aquas (“Haurireis águas”, citação de Is 12,3) no centenário da instituição da festa do Sagrado Coração por Pio IX.

Papa Pio XII

Sua leitura foi recomendada pelo Papa Francisco durante um retiro para sacerdotes no contexto do Jubileu Extraordinário da Misericórdia (2016).

Após uma breve introdução (nn. 1-4), a Encíclica é composta por cinco capítulos:
1. Prefigurações do Sagrado Coração no Antigo Testamento (nn. 5-17);
2. Fundamentos do culto ao Sagrado Coração no Novo Testamento e na Tradição da Igreja (nn. 18-28);
3. Alguns aspectos da teologia do Sagrado Coração (nn. 29-45);
4. O desenvolvimento do culto ao Sagrado Coração (nn. 46-60);
5. Exortação à autêntica devoção ao Sagrado Coração (nn. 61-77).

Após o Concílio Vaticano II, houve quem considerasse a devoção ao Sagrado Coração de Jesus como algo ultrapassado. Não obstante, essa devoção tem defensores de peso até os nossos dias, como, por exemplo, o teólogo conciliar Karl Rahner (†1984), que sintetiza: “O objeto do culto ao Coração de Jesus é o próprio Senhor visto através deste seu Coração” [2].

O Catecismo da Igreja Católica (1992), no capítulo dedicado à fé em Jesus Cristo, recorda em duas ocasiões o tema do seu Coração: no n. 470, sobre a verdade da Encarnação, citando o n. 22 da Gaudium et Spes, que usamos como epígrafe desta postagem; e no n. 478, dedicado especificamente ao “coração do Verbo encarnado”. Aqui o Catecismo atesta como, em Cristo, Deus nos amou com um coração humano:

Jesus (...) amou-nos a todos com um coração humano. Por esse motivo, o Sagrado Coração de Jesus, trespassado pelos nossos pecados e para nossa salvação ‘é considerado sinal e por símbolo excelência... daquele amor com que o divino Redentor ama sem cessar o eterno Pai e todos os homens’” (Catecismo da Igreja Católica, n. 478; o trecho entre aspas simples é uma citação da Haurietis aquas, n. 27).

O texto citado da Haurietis aquas, com efeito, prossegue refletindo sobre o tríplice simbolismo do Coração de Cristo: é “coração divino”, isto é, amor eterno do Filho pelo Pai no Espírito; é “coração espiritual”, sede da vontade humana de Cristo, com a qual ama todos e cada um de nós; e, por fim, é também “coração físico”, atestando a verdade da Encarnação (cf. Hb 4,15).

O Sagrado Coração de Jesus adorado pelos quatro cantos do mundo
(Hippolyte Dominique Holfeld, 1860, França)

Ainda mais recentemente, o Cardeal Walter Kasper em seu célebre livro “A misericórdia: Condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã” (2012), dedica uma sessão do capítulo V ao “Sagrado Coração de Jesus como revelação da misericórdia divina”, que constitui uma excelente síntese desse mistério [3].

Por fim, vale recordar que para efetivamente atualizar esta devoção, tanto o Cardeal Kasper quanto o Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia (n. 173) questionam-se a respeito da forma como essa é representada.

Muitas representações do Sagrado Coração excessivamente “dulcificadas” são inadequadas para exprimir toda a riqueza desse mistério. Assim, é necessário propor novas formas de representação, seja como o próprio Cristo Crucificado, ou como o Ressuscitado que mostra suas chagas, ou mesmo como o Cordeiro pascal, “em pé, como que imolado” (Ap 5,6).

O Cristo Ressuscitado com as chagas
(Mosaico do Centro Aletti)

Notas:

[1] Sobre o tema do coração nas Sagradas Escrituras, confira:
McKENZIE, John Lawrence. Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulus, 2013, p. 167;
LÉON-DUFOUR, Xavier et al. Vocabulário de Teologia Bíblica. 9ª ed. Petrópolis: Vozes, 2008, pp. 179-182.

[2] RAHNER, Karl. Herz-Jesu-Verehrung. in: ADAM, Adolf. O Ano Litúrgico: Sua história e seu significado segundo a renovação litúrgica. São Paulo: Loyola, 2019, pp. 127-129.

[3] KASPER, Walter. A misericórdia: Condição fundamental do Evangelho e chave da vida cristã. 2ª edição. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 143-150.

Referências (além dos textos já citados nas notas acima):

BERGER, Rupert. Coração de Jesus, Devoção ao. in: Dicionário de Liturgia Pastoral: Obra de consulta sobre todas as questões referentes à Liturgia. São Paulo: Loyola, 2010, pp. 108-109.

LACOSTE, Jean-Yves. Coração de Cristo. in: Dicionário Crítico de Teologia. 2ª edição. São Paulo: Loyola, Paulinas, 2014, pp. 459-461.

SAGRADA CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E A DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre Piedade Popular e Liturgia. São Paulo: Paulinas, 2003, pp. 143-147.

Postagem publicada originalmente em 12 de junho de 2012. Revista e ampliada em 30 de maio de 2021.

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