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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Encíclica Dilexit nos (2)

No dia 24 de outubro de 2024 o Papa Francisco promulgou a Encíclica Dilexit nos (Amou-nos) sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus.

Dada a estreita relação da devoção ao Sagrado Coração de Jesus com a Liturgia e a extensão do documento (220 parágrafos), estamos publicando seu texto na íntegra dividido em três partes. Após a primeira postagem, com os nn. 1-77, confira nesta segunda parte os nn. 78-150:

Papa Francisco
Encíclica Dilexit nos
Sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus

Capítulo III: Este é o Coração que tanto amou

(Continuação)

Expressões recentes do Magistério

78. O Coração de Cristo esteve presente na história da espiritualidade cristã de diversas maneiras. Na Bíblia e nos primeiros séculos da Igreja aparecia sob a figura do lado ferido do Senhor, quer como fonte de graça, quer como apelo a um encontro íntimo de amor. Assim reapareceu constantemente no testemunho de muitos santos até aos nossos tempos. Nos últimos séculos esta espiritualidade tomou a forma de um verdadeiro culto ao Coração do Senhor.

Sagrado Coração de Jesus
(Pompeo Batoni)

79. Alguns dos meus Predecessores referiram-se ao Coração de Cristo e, com expressões variadas, convidaram a unir-se a Ele. No final do século XIX, Leão XIII convidava a nos consagrarmos a Ele e, na sua proposta, unia ao mesmo tempo o apelo à união com Cristo e a admiração perante o esplendor do seu amor infinito [3]. Cerca de trinta anos depois, Pio XI apresentou esta devoção como o resumo da experiência da fé cristã [4]. Além disso, Pio XII sustentou que o culto do Sagrado Coração exprime de forma excelente, como uma síntese sublime, a nossa adoração a Jesus Cristo [5].

80. Mais recentemente, São João Paulo II apresentou o desenvolvimento deste culto nos séculos passados como uma resposta ao crescimento de formas de espiritualidade rigoristas e desencarnadas que esqueciam a misericórdia do Senhor, mas ao mesmo tempo como um apelo contemporâneo a um mundo que procura construir-se sem Deus: «A devoção ao Sagrado Coração, do modo como se desenvolveu na Europa há dois séculos, sob o impulso das experiências místicas de Santa Margarida Maria Alacoque, foi a resposta ao rigorismo jansenista, que tinha acabado por menosprezar a infinita misericórdia de Deus... O homem do ano 2000 tem necessidade do Coração de Cristo para conhecer Deus e para conhecer a si mesmo; tem necessidade dele para construir a civilização do amor» (Audiência Geral, 08 de junho de 1994).

81. Bento XVI convidava a reconhecer o Coração de Cristo como uma presença íntima e quotidiana na vida de todos: «Cada pessoa precisa de um “centro” da própria vida, de uma fonte de verdade e de bondade da qual haurir no suceder-se das diversas situações e na fadiga da quotidianidade. Cada um de nós, quando se detém no silêncio, precisa ouvir não só o palpitar do próprio coração, mas, mais em profundidade, o pulsar de uma presença de confiança, perceptível com os sentidos da fé e, contudo, muito mais real: a presença de Cristo, coração do mundo» (Ângelus, 01 de junho de 2008).

Aprofundamento e atualidade

82. A imagem expressiva e simbólica do Coração de Cristo não é o único recurso que o Espírito Santo nos dá para encontrar o amor de Cristo, e terá sempre necessidade de ser enriquecida, iluminada e renovada através da meditação, da leitura do Evangelho e do amadurecimento espiritual. Já Pio XII dizia que a Igreja não pretende que «no coração de Jesus se deva ver e adorar a chamada imagem formal, quer dizer, a representação perfeita e absoluta do seu amor divino, não sendo possível, como não é, representar adequadamente por qualquer imagem criada a íntima essência desse amor» (Haurietis aquas, n. 58).

83. A devoção ao Coração de Cristo é essencial para a nossa vida cristã, na medida em que significa a nossa abertura, cheia de fé e de adoração, ao mistério do amor divino e humano do Senhor, ao ponto de podermos voltar a afirmar que o Sagrado Coração é um compêndio do Evangelho (cf. Haurietis aquas, n. 43). É preciso lembrar que as visões ou manifestações místicas narradas por alguns dos santos que propuseram apaixonadamente a devoção ao Coração de Cristo não são algo em que os fiéis sejam obrigados a acreditar como se fossem a Palavra de Deus [6]. São belos estímulos que podem motivar e fazer muito bem, embora ninguém se deva sentir obrigado a segui-los se não achar de proveito no seu caminho espiritual. Do mesmo modo, é necessário recordar sempre, como afirmou Pio XII, que não se pode dizer que este culto «deve a sua origem a revelações privadas» (ibid., n. 52).

84. A proposta da Comunhão eucarística nas primeiras sextas-feiras do mês, por exemplo, era uma mensagem forte em uma época em que muitas pessoas deixavam de comungar por não confiarem no perdão divino, na sua misericórdia, e consideravam a Comunhão como uma espécie de recompensa para os perfeitos. Naquele contexto jansenista, a promoção desta prática fez muito bem, ajudando-nos a reconhecer na Eucaristia o amor gratuito e próximo do Coração de Cristo que nos chama à união com Ele. Podemos afirmar que hoje também faria muito bem por outra razão: porque no meio do turbilhão do mundo atual e da nossa obsessão pelo tempo livre, do consumo e da distração, dos telefones e das redes sociais, esquecemos de alimentar a nossa vida com a força da Eucaristia.

85. Da mesma forma, ninguém deve sentir-se obrigado a fazer uma hora de adoração às quintas-feiras. Mas como não o recomendar? Quando alguém vive com fervor esta prática, junto de tantos irmãos e irmãs, e encontra na Eucaristia todo o amor do Coração de Cristo, «adora juntamente com a Igreja o símbolo e como que a marca da caridade divina, caridade que chegou a amar também com o coração do Verbo encarnado o gênero humano» (Haurietis aquas, n. 58).

86. Isto era difícil de compreender para muitos jansenistas, que desprezavam tudo o que era humano, afetivo, corpóreo, e entendiam, em última análise, que esta devoção nos afastava da mais pura adoração ao Deus Altíssimo. Pio XII chamou de «falso misticismo» (ibid., n. 57) esta atitude elitista de alguns grupos que viam a Deus tão alto, tão separado, tão distante, que consideravam as expressões sensíveis da piedade popular perigosas e necessitadas de controle eclesiástico.

87. Poderíamos afirmar que hoje, mais do que o jansenismo, enfrentamos um forte avanço da secularização que visa um mundo livre de Deus. Acrescenta-se a isso a multiplicação na sociedade de várias formas de religiosidade sem referência a uma relação pessoal com um Deus de amor, que são novas manifestações de uma “espiritualidade sem carne”. Isto é real. No entanto, devo advertir que, no seio da própria Igreja, o nefasto dualismo jansenista renasceu com novos rostos. Ganhou força renovada nas últimas décadas, mas é uma manifestação daquele gnosticismo que já nos primeiros séculos da fé cristã causava dano à espiritualidade e ignorava a verdade da “salvação da carne”. Por isso, dirijo o meu olhar para o Coração de Cristo e convido a renovar esta devoção. Espero que possa ser atrativa também à sensibilidade atual e que nos ajude assim a enfrentar estes velhos e novos dualismos, aos quais oferece uma resposta adequada.

88. Gostaria de acrescentar que o Coração de Cristo nos liberta, ao mesmo tempo, de um outro dualismo: o de comunidades e pastores concentrados apenas em atividades exteriores, em reformas estruturais desprovidas de Evangelho, em organizações obsessivas, em projetos mundanos, em reflexões secularizadas, em várias propostas apresentadas como requisitos que, por vezes, se pretendem impor a todos. O resultado é, muitas vezes, um Cristianismo que esqueceu a ternura da fé, a alegria do serviço, o fervor da missão pessoa-a-pessoa, a cativante beleza de Cristo, a gratidão emocionante pela amizade que Ele oferece e pelo sentido último que dá à vida. Em suma, outra forma de transcendentalismo enganador, igualmente desencarnado.

89. Estas doenças tão atuais, das quais - se nos deixamos aprisionar - nem sequer sentimos o desejo de ser curados, levam-me a propor a toda a Igreja um novo aprofundamento sobre o amor de Cristo representado no seu santo Coração. Aí encontramos todo o Evangelho, aí está sintetizada a verdade em que acreditamos, aí está tudo o que adoramos e procuramos na fé, aí está o que mais precisamos.

90. Perante o Coração de Cristo é possível voltar à síntese encarnada do Evangelho e viver o que propus há pouco, recordando a amada Santa Teresinha do Menino Jesus: «A atitude mais adequada é depositar a confiança do coração fora de nós mesmos, ou seja, na infinita misericórdia de um Deus que ama sem limites e que deu tudo na Cruz de Jesus» (Francisco, Exortação Apostólica C’est la confiance, 15 de outubro de 2023, n. 20). Ela viveu-a intensamente porque descobriu no coração de Cristo que Deus é amor: «A mim deu-me a sua Misericórdia infinita, e é através dela que contemplo e adoro as demais perfeições divinas» (Santa Teresinha do Menino Jesus, Ms A, 83vº: Obras completas, Avessadas, 1996, 214). É por isso que a oração mais popular, dirigida como um dardo ao Coração de Cristo, diz simplesmente: «Eu confio em Vós» (Santa Maria Faustina Kowalska, Diário, 22 de fevereiro de 1931, I Caderno, 47, Curitiba, 2019, 34). Não são necessárias mais palavras.

91. Nos capítulos seguintes destacaremos dois aspectos fundamentais que a devoção ao Sagrado Coração deve reunir hoje para continuar a alimentar-nos e a aproximar-nos do Evangelho: a experiência espiritual pessoal e o compromisso comunitário e missionário.

Capítulo IV: Amor que dá de beber

92. Voltemos à Sagrada Escritura, aos textos inspirados que são o lugar principal onde encontramos a Revelação. Nelas e na Tradição viva da Igreja está contido o que o próprio Senhor quis nos dizer para toda a história. A partir da leitura de textos do Antigo e do Novo Testamento, recolheremos alguns dos efeitos da Palavra no longo caminho espiritual do Povo de Deus.

Sede do amor de Deus

93. A Bíblia mostra que uma abundância de água vivificante foi anunciada ao povo que tinha caminhado pelo deserto e esperava a libertação: «Tirareis água com alegria das fontes da salvação» (Is 12,3). Os anúncios messiânicos assumiram a forma de uma fonte de água purificadora: «Derramarei sobre vós uma água pura e sereis purificados... introduzirei em vós um espírito novo» (Ez 36,25-26). É a água que restituirá ao povo uma existência plena, como uma fonte que jorra do templo e, ao passar, derrama vida e saúde: «Eis que havia à beira da torrente grande quantidade de árvores, em cada uma das margens... Por onde quer que a torrente passar, todo o ser vivo que se move viverá... porque aonde quer que esta água chegar, se tornará salubre; e a vida se desenvolverá por toda a parte aonde ela chegar» (Ez 47,7.9).

94. A festa judaica das Tendas (Sukkot), que comemorava os quarenta anos no deserto, tinha gradualmente assumido o símbolo da água como elemento central, e previa para cada manhã um rito de oferenda de água, que se tornava muito solene no último dia da festa: fazia-se uma grande procissão até ao templo onde, finalmente, eram dadas sete voltas em torno do altar e, com grande alvoroço, se oferecia água a Deus (cf. Mišna Sukkâ IV, 5. 9).

95. O anúncio da chegada do tempo messiânico é apresentado como uma fonte aberta para o povo: «Derramarei sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém um espírito de benevolência e de súplica. Eles contemplarão aquele a quem transpassaram... Naquele dia haverá uma fonte aberta para a casa de Davi e para os habitantes de Jerusalém, para a purificação do pecado e da impureza» (Zc 12,10; 13,1).

96. Um homem transpassado, uma fonte aberta, um espírito de benevolência e de súplica. Os primeiros cristãos inevitavelmente viam esta promessa cumprida no lado aberto de Cristo, fonte de onde brota a vida nova. Ao percorrermos o Evangelho de João vemos como aquela profecia se cumpriu em Cristo. Contemplamos o seu lado transpassado, de onde jorrava a água do Espírito: «Um dos soldados transpassou-lhe o peito com uma lança e logo brotou sangue e água» (Jo 19,34). E o evangelista acrescenta: «Hão de olhar para Aquele que transpassaram» (v. 37). Retoma assim o anúncio do profeta que prometia ao povo uma fonte aberta em Jerusalém, quando olhassem para o transpassado (cf. Zc 12,10). A fonte aberta é o lado ferido de Jesus Cristo.

97. Notemos que o próprio Evangelho anuncia este momento sagrado precisamente «no último dia, o mais solene da festa» das Tendas (Jo 7,37). Naquele momento, Jesus bradou ao povo que celebrava, na grande procissão: «Se alguém tem sede, venha a mim... hão de correr do seu coração rios de água viva» (vv. 37-38). Para isso, era preciso que chegasse a sua “hora”, «porque Jesus ainda não tinha sido glorificado» (v. 39). Tudo se cumpriu na fonte transbordante da Cruz.

98. No Apocalipse reaparece tanto o Transpassado - «Todos os olhos o verão, até mesmo os que o transpassaram» (Ap 1,7) -, como a fonte aberta - «O que tem sede que se aproxime; e o que deseja beba gratuitamente da água da vida» (Ap 22,17).

99. O lado transpassado é ao mesmo tempo a sede do amor, um amor que Deus declarou ao seu povo com tantas palavras diferentes que vale a pena recordar:
«És precioso aos meus olhos... te estimo e te amo» (Is 43,4).
«Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebê, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria. Eis que Eu gravei a tua imagem na palma das minhas mãos» (Is 49,15-16).
«Ainda que os montes sejam abalados e tremam as colinas, o meu amor por ti nunca mais será abalado, e a minha aliança de paz nunca mais vacilará» (Is 54,10).
«Amei-te com um amor eterno. Por isso, dilatei a misericórdia para contigo» (Jr 31,3).
«O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso salvador! Ele exulta de alegria por tua causa, pelo seu amor te renovará. Ele dança e grita de alegria por tua causa» (Sf 3,17).

100. O profeta Oseias chega a falar do coração de Deus: «Segurava-os com laços humanos, com laços de amor» (Os 11,4). Por causa desse mesmo amor desprezado, podia dizer: «O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhas entranhas» (v. 8). Mas sempre vencerá a misericórdia (cf. v. 9), que alcançará a sua expressão máxima em Cristo, palavra definitiva de amor.

101. No Coração transpassado de Cristo estão concentradas, escritas na carne, todas as expressões de amor das Escrituras. Não se trata de um amor simplesmente declarado, mas o seu lado aberto é fonte de vida para o amado; é aquela fonte que sacia a sede do seu povo. Como ensinou São João Paulo II, «os elementos essenciais desta devoção pertencem também de modo permanente à espiritualidade da Igreja ao longo da sua história; porque desde o princípio a Igreja elevou o seu olhar para o Coração de Cristo transpassado na Cruz» (Carta ao Prepósito-Geral da Companhia de Jesus, Paray-le-Monial, 05 de outubro de 1986).

Cristo Sofredor com o Coração em destaque

Ressonâncias da Palavra na história

102. Consideremos alguns dos efeitos que esta Palavra de Deus produziu na história da fé cristã. Vários Padres da Igreja, sobretudo da Ásia Menor, mencionaram a chaga do lado de Jesus como a origem da água do Espírito: a Palavra, a sua graça e os sacramentos que a comunicam. A força dos mártires vive da «fonte celeste de água viva que brota das entranhas de Cristo» (Atos dos mártires de Lião. in: Eusébio de Cesareia, História Eclesiástica, V, 1, 22: PG 20, 418), ou, como traduz Rufino, «das fontes celestes e eternas que procedem das entranhas de Cristo» (Rufino de Aquileia [trad.], História Eclesiástica, V, 1, 22. in: Griechischen Christlichen Schriftsteller 9/1, Eusebius Werke II/1, 411). Os fiéis, que renascemos pelo Espírito, viemos dessa fenda do rochedo, «saímos do ventre de Cristo» (São Justino, Dialógo com Trifão, 135: PG 6, 787). O seu lado ferido, que interpretamos como o seu coração, está cheio do Espírito Santo, e a partir dele chegam até nós rios de água viva: «Em Cristo permanece a fonte de todo o Espírito Santo» (Novaciano, De Trinitate, 29: PL 3, 944. cf. São Gregório de Elvira, Tractatus Origenis de Libris Sanctarum Scripturarum, 20, 12: CCSL 69, 144). Mas o Espírito que recebemos não nos afasta do Senhor Ressuscitado, antes nos enche d’Ele, porque, ao bebermos do Espírito, bebemos o próprio Cristo: «Bebe Cristo, porque é a rocha que jorra água; bebe Cristo, porque é a fonte da vida; bebe Cristo, porque é o rio cujo ímpeto alegra a cidade de Deus; bebe Cristo, porque é a paz; bebe Cristo, porque do seu ventre brota um rio de água viva» (Santo Ambrósio, Expl. Ps. I, 33: PL 14, 983-984).

103. Santo Agostinho abriu o caminho para a devoção ao Sagrado Coração como lugar de encontro pessoal com o Senhor. Ou seja, para ele o lado de Cristo não é só fonte de graça e de sacramentos, mas personaliza-o, apresentando-o como símbolo da união íntima com Cristo, como lugar de um encontro amoroso. É aí que reside a origem da sabedoria mais preciosa, que é conhecê-lo. Com efeito, Agostinho escreve que João, o amado, quando inclinou a sua cabeça sobre o peito de Jesus, durante a Última Ceia, aproximou-se do lugar secreto da sabedoria (cf. Tract. in Joann. Ev. 61, 6: PL 35, 1801). Não se trata de uma simples contemplação intelectual de uma verdade teológica. São Jerônimo explica que uma pessoa capaz de contemplar «não retira das correntes de água nenhum deleite, mas bebe a água viva do lado do Senhor» (Epistula III, ad Ruffinum, 4: PL 22, 334).

104. São Bernardo retomou o simbolismo do lado transpassado do Senhor, entendendo-o explicitamente como revelação e dom do amor do seu Coração. Através da chaga se torna acessível a cada um de nós e é possível fazer nosso o grande mistério do amor e da misericórdia: «O que a mim me falta, eu extraio das entranhas do Senhor, pois estas transbordam misericórdia e não faltam fendas pelas quais ela passa. Transpassaram-lhe as mãos e os pés, perfuraram-lhe o lado com uma lança. E por essas fendas posso extrair mel da pedra e óleo da rocha duríssima, isto é, posso saborear e ver quão suave é o Senhor... O ferro transpassou-lhe a alma, e aproximou-se do seu coração, para que não deixe já de saber como se compadecer das minhas fraquezas. O segredo do seu coração é patente através das chagas do corpo, é patente o grande sacramento da piedade, são patentes as vísceras de misericórdia do nosso Deus» (Sermones in Cant. 61, 4: PL 183, 1072).

105. Isto reaparece de forma especial em Guilherme de Saint-Thierry, o qual convidava a entrar no Coração de Jesus, que nos alimenta no seu próprio seio (cf. Expositio altera super Cantica Canticorum, 1: PL 180, 487). Não é de admirar, se recordamos que para este autor «a arte do amor é a arte das artes... Este mesmo amor é incutido pelo Criador... Com efeito, o amor é uma força da alma, que a conduz como que por um peso natural ao lugar e ao fim que lhe são próprios» (De natura et dignitate amoris, 1: PL 184, 379). Esse lugar que lhe é próprio, onde o amor reina em plenitude, é o Coração de Cristo: «Aonde pois, Senhor, conduzis aqueles que abraçais e estreitais em vossos braços, senão para o vosso coração? O vosso coração, Jesus, é aquele doce maná da vossa divindade (cf. Hb 9,4), que guardais no vosso interior, no cofre áureo da vossa alma que supera toda a sabedoria. Felizes os que conduzis até lá com o vosso abraço. Felizes os que, imersos nestas profundezas, foram escondidos por Vós dentro do vosso coração» (Meditativae Orationes, 8, 6: PL 180, 230).

106. São Boaventura une as duas linhas espirituais em torno do Coração de Cristo: ao mesmo tempo que o apresenta como fonte dos sacramentos e da graça, propõe que esta contemplação se torne uma relação de amigos, um encontro pessoal de amor.

107. Por um lado, ajuda-nos a reconhecer a beleza da graça e dos sacramentos que brotam daquela fonte de vida que é o lado ferido do Senhor: «Para que do lado de Cristo morto na cruz se formasse a Igreja e se cumprisse a palavra da Escritura que diz: “Hão de olhar para Aquele que transpassaram”, a divina providência permitiu que um dos soldados lhe abrisse com a lança o lado sacrossanto e dele fizesse brotar sangue e água. Este é o preço da nossa salvação, saído daquela divina fonte, isto é, do íntimo do seu Coração, para dar aos sacramentos da Igreja o poder de conferir a vida da graça e se tornar para aqueles que vivem em Cristo uma fonte de água viva que jorra para a vida eterna» (São Boaventura, Lignum vitae, 30 - Liturgia das Horas, Ofício das Leituras da Solenidade do Sagrado Coração de Jesus).

108. Depois convida-nos a dar mais um passo, para que o acesso à graça não se torne algo de mágico, ou uma espécie de emanação neoplatônica, mas uma relação direta com Cristo, habitando no seu Coração, pois quem bebe é amigo de Cristo, é um coração amoroso: «Levanta-te, pois, tu que amas a Cristo, sê como a pomba que faz o seu ninho na borda do rochedo, e aí, como o pássaro que encontrou sua morada, não cesses de estar vigilante; aí esconde, como a andorinha, os filhos nascidos do casto amor» (ibid.).

A difusão da devoção ao Coração de Cristo

109. O lado transpassado, onde reside o amor de Cristo, do qual, por sua vez, brota a vida da graça, assumiu gradualmente a forma do coração, sobretudo na vida monástica. Sabemos que, ao longo da história, o culto ao Coração de Cristo não se manifestou de modo igual, e que os aspectos desenvolvidos nos tempos modernos, relacionados com diversas experiências espirituais, não podem ser extrapolados para as formas medievais e muito menos para as formas bíblicas, nas quais podemos vislumbrar as sementes deste culto. No entanto, hoje a Igreja não despreza nenhum dos bens que o Espírito Santo nos deu ao longo dos séculos, sabendo que será sempre possível reconhecer em certos pormenores da devoção um sentido mais claro e pleno, ou compreender e desvendar novos aspectos dela.

110. Várias santas mulheres relataram experiências de encontro com Cristo, caracterizado pelo repouso no Coração do Senhor, fonte de vida e de paz interior. É o caso de Santa Lutgarda, Santa Matilde de Hackeborn, Santa Ângela de Foligno, Juliana de Norwich, entre outras. Santa Gertrudes de Helfta, monja cisterciense, contou um momento de oração durante o qual reclinou a cabeça sobre o Coração de Cristo e escutou os seus batimentos. Em um diálogo com São João Evangelista, ela pergunta-lhe por que razão, no seu Evangelho, não fala do que viveu quando teve a mesma experiência. Gertrudes conclui que «a doçura destes batimentos foi reservada aos tempos modernos, para que, ao escutá-los, o mundo envelhecido e morno possa renovar-se no amor de Deus» (Santa Gertrudes de Helfta, Legatus divinae pietatis, IV, 4, 4: SCh, 255, 66). Poderíamos pensar que se trata de um anúncio referente ao nosso tempo, um apelo a reconhecer como este mundo se tornou “velho”, necessitado de receber a mensagem sempre nova do amor de Cristo? Santa Gertrudes e Santa Matilde foram consideradas entre «as mais íntimas confidentes do Sagrado Coração» (Léon Dehon, Directoire spirituel des prêtres du Sacré Coeur de Jésus, Thournout, 1936, II, cap. VII, n. 141).

111. Os monges cartuxos, encorajados sobretudo por Ludolfo da Saxônia, encontraram na devoção ao Sagrado Coração um meio de encher de afeto e proximidade a sua relação com Jesus Cristo. Quem entra pela ferida do seu Coração é abrasado em chamas de afeto. Santa Catarina de Sena escreveu que os sofrimentos que o Senhor suportou não são algo que possamos presenciar, mas que o Coração aberto de Cristo é para nós a possibilidade de um encontro real e pessoal com tanto amor: «Eis quanto Eu manifestei na chaga do meu peito, no momento em que compreendeste o segredo do meu coração. Fiz ver que meu amor por vós é mais profundo de quanto possa indicar a dor passageira» (O Diálogo, 18.4.2; São Paulo, 2021, 162-163).

112. A devoção ao Coração de Cristo transcendeu gradualmente a vida monástica e encheu a espiritualidade de santos mestres, pregadores e fundadores de congregações religiosas que a difundiram nas regiões mais remotas da terra (cf. por exemplo: Angelus Walz, De veneratione divini cordis Iesu in Ordine Praedicatorum, Pontificium Institutum Angelicum, Roma, 1937).

113. Particularmente interessante foi a iniciativa de São João Eudes, que «depois de ter pregado com os seus missionários uma fervorosíssima missão em Rennes, conseguiu que o Bispo aprovasse nessa Diocese a celebração da festa do Coração Adorável de nosso Senhor Jesus Cristo. Foi a primeira vez que esta festa foi oficialmente autorizada na Igreja. Mais tarde, os Bispos de Coutances, de Evreux, de Bayeux, de Lisieux e de Rouen autorizaram a mesma festa para as suas respectivas Dioceses entre os anos de 1670 e 1671» (Rafael García Herreros, San Juan Eudes, Bogotá, 1943, 42).

São Francisco de Sales

114. Nos tempos modernos destaca-se o contributo de São Francisco de Sales. Ele contemplou muitas vezes o Coração aberto de Cristo, que nos convida a habitar dentro dele em uma relação pessoal de amor, na qual se iluminam os mistérios da vida. Podemos ver no pensamento deste santo doutor como, face a uma moral rigorista ou a uma religiosidade de mero cumprimento de obrigações, o Coração de Cristo lhe aparece como um apelo à plena confiança na ação misteriosa da sua graça. É assim que ele se exprime na sua proposta à baronesa de Chantal: «É para mim bem claro que não permaneceremos mais em nós mesmos... habitaremos para sempre no lado transpassado do Salvador, pois sem ele não só não podemos, mas, mesmo que pudéssemos, não quereríamos fazer nada» (Carta a Santa Joana Francisca de Chantal, 24 de abril de 1610. in: Oeuvres de Saint François de Sales, t. XIV, Lettres, vol. 4, Annecy, 1906, 289).

115. Para ele a devoção estava longe de se tornar uma forma de superstição ou uma objetivação indevida da graça, porque significava um convite a uma relação pessoal em que cada um se sente único perante Cristo, reconhecido na sua realidade irrepetível, pensado por Cristo e valorizado de forma direta e exclusiva: «Este coração tão adorável e tão amável do nosso Mestre, todo ardente de amor por nós, um coração no qual veremos escritos todos os nossos nomes... Certamente isto é um tema de grande consolação: Que sejamos tão amados por nosso Senhor a ponto de nos levar sempre no seu Coração» (Sermão para o II Domingo da Quaresma, 20 de fevereiro de 1622. in: op. cit., t. X, Sermons, vol. 4, Annecy, 1898, 243-244). Este nome próprio escrito no Coração de Cristo foi o modo como São Francisco de Sales procurou simbolizar até onde o amor de Cristo por cada um não é abstrato ou genérico, mas implica uma personalização na qual o fiel se sente valorizado e reconhecido em si mesmo: «Quão belo é este Céu, agora que o Salvador é como um sol e o seu peito como uma fonte de amor da qual os bem-aventurados bebem à vontade! Cada um vai lá dentro olhar e vê o seu nome escrito em caracteres de amor, que só o amor sabe ler e que só o amor ali gravou. Ah, Deus! Minha querida Filha, não estarão lá os nossos? Estarão, sem dúvida; pois, embora o nosso coração não tenha amor, tem o desejo do amor e o princípio do amor» (Carta a Santa Joana Francisca de Chantal, 31 de maio de 1612. in: op. cit., t. XV, Lettres, vol. 5, Annecy, 1908, 221).

116. Ele considerava esta experiência tão fundamental para uma vida espiritual que colocava esta convicção entre as grandes verdades da fé: «Sim, minha querida Filha, Ele pensa em ti, e não só em ti, mas no menor cabelo da tua cabeça: é um artigo de fé do qual não se pode duvidar» (Carta a Marie-Aimée de Blonay, 18 de fevereiro de 1618. in: op. cit., t. XVIII, Lettres, vol. 8, Annecy, 1912, 170-171). A consequência disto é que o fiel se torna capaz de um completo abandono no Coração de Cristo, onde encontra repouso, consolação e força: «Ó Deus! Que felicidade estar assim entre os braços e o peito [do Salvador] (...) Permanece assim, querida Filha, e enquanto os demais comem na mesa do Salvador diferentes alimentos, repousa e reclina, com a mais simples confiança, como outro pequeno São João, a tua cabeça, a tua alma, o teu espírito sobre o peito amoroso deste querido Senhor» (Carta a Santa Joana Francisca de Chantal, fins de novembro de 1609. in: op. cit., t. XIV, Lettres, vol. 4, Annecy, 1906, 214). «Espero que estejas na caverna da pomba e no lado transpassado do nosso querido Salvador... Quão bom é este Senhor, minha querida Filha! Quão amável é o seu Coração! Moremos ali, naquele santo domicílio» (Carta a Santa Joana Francisca de Chantal, aprox. 25 de fevereiro de 1610. in: ibid., 253).

117. Mas, fiel ao seu ensinamento sobre a santificação na vida ordinária, propõe que esta seja vivida no meio das atividades, das tarefas e dos deveres do quotidiano: «Perguntais-me como as almas que são levadas na oração a esta santa simplicidade e a este perfeito abandono em Deus devem comportar-se em todos os seus atos? Respondo que, não só na oração, mas na conduta de toda a sua vida, devem caminhar invariavelmente em espírito de simplicidade, abandonando e entregando toda a sua alma, as suas ações e os seus sucessos à vontade de Deus, com um amor de perfeita e absoluta confiança, abandonando-se à graça e aos cuidados do amor eterno que a Divina Providência sente por elas» (Les vrais entretiens spirituels, 12e. Entretien. in: op. cit., t. VI, Annecy, 1895, 217).

118. Por todas estas razões, no momento de pensar em um símbolo que sintetizasse a sua proposta de vida espiritual, conclui: «Pensei então, querida Madre, se estiverdes de acordo, que devemos tomar como escudo um único coração transpassado por duas flechas, encerrado em uma coroa de espinhos» (Carta a Santa Joana Francisca de Chantal, 10 de junho de 1611; op. cit., t. XV, Lettres, vol. 5, Annecy, 1908, 63).

Basílica do Sagrado Coração de Jesus de Montmartre (Paris)

Uma nova declaração de amor

119. Foi sob a influência salutar da espiritualidade de São Francisco de Sales que tiveram lugar os acontecimentos de Paray-le-Monial, no final do século XVII. Santa Margarida Maria Alacoque relatou importantes aparições entre o final de dezembro de 1673 e junho de 1675. É fundamental a declaração de amor que se destaca na primeira grande aparição. Jesus diz: «O meu divino Coração está tão abrasado de amor para com os homens, e em particular para contigo, que, não podendo já conter em si as chamas da sua ardente caridade, precisa derramá-las por teu meio, e manifestar-se a eles para enriquecê-los de seus preciosos tesouros, que Eu mostro a ti» (Santa Margarida Maria Alacoque, Autobiografia, n. 53, Braga, 1984, 57-58).

120. Santa Margarida Maria resume tudo isto de uma forma poderosa e fervorosa: «Ali me descobriu as maravilhas do seu amor e os segredos insondáveis do seu Sagrado Coração, que sempre me tinha conservado escondidos até àquele momento em que os abriu a mim pela primeira vez, mas de modo tão real e sensível que não me deixou lugar a nenhuma dúvida» (ibid., 57). Nas declarações seguintes, reafirma-se a beleza desta mensagem: «Ele me mostrou as maravilhas inexplicáveis do seu puro amor, e o excesso a que Ele tinha chegado em amar os homens» (ibid., n. 55; op. cit., 60).

121. Este reconhecimento intenso do amor de Jesus Cristo que Santa Margarida Maria transmitiu oferece-nos valiosos estímulos para a nossa união com Ele. O que não significa que nos sintamos obrigados a aceitar ou assumir todos os pormenores desta proposta espiritual, onde, como muitas vezes acontece, se misturam com a ação divina elementos humanos relacionados com os nossos próprios desejos, inquietações e imagens interiores (cf. Dicastério para a Doutrina da Fé, Normas para proceder no discernimento de presumidos fenômenos sobrenaturais, 17 de maio de 2024, I, A, 12). Tal proposta deve ser sempre relida à luz do Evangelho e de toda a rica tradição espiritual da Igreja, reconhecendo ao mesmo tempo o bem que fez em tantos irmãos e irmãs. Isto permite-nos reconhecer os dons do Espírito Santo no seio dessa experiência de fé e de amor. Mais importante do que os pormenores é o núcleo da mensagem que nos é transmitida e pode ser resumido nas palavras que Santa Margarida ouviu: «Eis aqui este Coração que tanto tem amado os homens, que a nada se tem poupado até se esgotar e consumir para lhes testemunhar o seu amor» (Santa Margarida Maria Alacoque, Autobiografia, n. 92; op. cit., 93).

122. Esta manifestação é um convite a um crescimento no encontro com Cristo, graças a uma confiança sem reservas, até chegarmos a uma união plena e definitiva: «É preciso que o Divino Coração de Jesus substitua de tal forma o nosso, de modo que só Ele viva e atue em nós e por nós; que a sua vontade... possa atuar absolutamente sem resistência da nossa parte; e, finalmente, que os seus afetos, pensamentos e desejos estejam no lugar dos nossos, e sobretudo o seu amor, que se amará a si mesmo em nós e por nós. E assim, sendo este amável Coração tudo em todas as coisas, poderemos dizer com São Paulo que já não somos nós que vivemos, mas é Ele que vive em nós» (Carta à Irmã de la Barge, 22 de outubro de 1689: Vie et Oeuvres de la Bienheureuse Marguerite-Marie Alacoque, t. 2, Paris, 1915, 468).

123. Efetivamente, na primeira mensagem recebida ela apresenta esta experiência de uma forma mais pessoal, mais concreta, cheia de fogo e de ternura: «Pediu-me o meu coração; eu roguei-lhe que o tomasse, o que Ele fez, e meteu-o no seu adorável Coração, no qual me mostrou como um pequeno átomo que se consumia naquela fornalha ardente» (Autobiografia, n. 53; op. cit., 58).

124. Em outro ponto notamos que Aquele que se entrega a nós é Cristo Ressuscitado, cheio de glória, cheio de vida e de luz. Embora em diversos momentos fale dos sofrimentos que suportou por nós e das ingratidões que recebe, não sobressaem aqui o sangue e as feridas sofridas, mas a luz e o fogo do Vivente. As feridas da Paixão, que não desaparecem, são transfiguradas. Assim, o Mistério da Páscoa é aqui expresso na sua totalidade: «Uma vez, entre outras, quando estava o Santíssimo exposto... Jesus Cristo, meu doce Mestre, apareceu-me todo radiante de glória, com suas cinco chagas, brilhantes como cinco sóis; e a sua sagrada humanidade lançava chamas de todos os lados, mas sobretudo de seu sagrado peito, que parecia uma fornalha: abrindo-o, descobriu-me seu amantíssimo e amabilíssimo Coração, que era a fonte viva daquelas chamas. Foi então que Ele me mostrou as maravilhas inexplicáveis do seu puro amor, e o excesso a que Ele tinha chegado em amar aos homens, de quem não recebia senão ingratidões e frieza» (ibid., n. 55; op. cit., 60).

São Cláudio de La Colombière

125. Quando São Cláudio de La Colombière soube das experiências de Santa Margarida, tornou-se imediatamente seu defensor e divulgador. Ele teve um papel especial na compreensão e difusão desta devoção ao Sagrado Coração, mas também na sua interpretação à luz do Evangelho.

126. Enquanto algumas expressões de Santa Margarida, se mal entendidas, poderiam levar a confiar demasiado nos próprios sacrifícios e ofertas, São Cláudio evidencia que a contemplação do Coração de Cristo, se for autêntica, não provoca complacência em si mesmo nem vanglória nas experiências ou esforços humanos, mas um abandono indescritível em Cristo que enche a vida de paz, segurança e decisão. Ele exprimiu muito bem esta confiança absoluta em uma célebre oração:
«Meu Deus, estou tão convencido que velais sobre aqueles que em Vós confiam, e que nada pode faltar a quem de Vós tudo espera, que resolvi viver o futuro sem preocupação alguma, e descarregar sobre Vós todas as minhas preocupações... O que nunca perderei é a esperança; a conservarei até o último instante da minha vida, embora todas as potências infernais se esforcem em vão por roubá-la... Esperem outros a felicidade das suas riquezas e talentos; confiem na inocência da sua vida, no rigor da sua penitência, no número das suas boas obras ou no fervor das suas orações... Quanto a mim, toda a minha confiança está fundada nesta minha mesma confiança. Ela nunca enganou ninguém... E assim, estou seguro de que serei eternamente bem-aventurado, porque espero firmemente sê-lo, e é de Vós, ó meu Deus, que o espero» (São Cláudio de La Colombière, Ato de confiança. in: Escritos Espirituales del Beato Claudio de la Colombière, S.J., Bilbao, 1979, 110).

127. São Cláudio escreveu uma nota em janeiro de 1677, encabeçada por algumas linhas que se referem à segurança que sentia em relação à sua própria missão: «Reconheci que Deus quer servir-se de mim, procurando o cumprimento dos seus desejos relativamente à devoção que me sugeriu uma pessoa, com quem Ele se comunica confidencialmente, e em favor da qual Ele quis servir-se da minha fraqueza. Já a inspirei a muitas pessoas» (Retiro em Londres, 01 a 08 de fevereiro de 1677).

128. É importante notar como, na espiritualidade de La Colombière, há uma bela síntese entre a rica e bela experiência espiritual de Santa Margarida e a contemplação muito concreta dos Exercícios inacianos. Ele escreve no início da terceira semana do mês dos Exercícios: «Duas coisas me comoveram sumamente e me mantiveram ocupado todo o tempo. A primeira é a disposição com que Jesus Cristo sai ao encontro daqueles que o procuram... Seu Coração está mergulhado em um mar de amargura; todas as paixões estão soltas dentro d’Ele, toda a natureza está desconcertada, e através de todas essas desordens e de todas essas tentações, o seu Coração se volta diretamente para Deus; Ele não dá um passo em falso e não hesita em tomar o lado que lhe é sugerido pela virtude e pela mais alta virtude... A segunda coisa é a disposição deste mesmo Coração a respeito de Judas que o traiu, dos Apóstolos que o abandonaram de modo covarde, dos sacerdotes e dos outros autores da perseguição a que foi sujeito. E tudo isto não foi capaz de despertar n’Ele o mínimo sentimento de ódio ou de indignação... Assim, represento para mim mesmo aquele Coração sem amargura, sem azedume, cheio de verdadeira ternura para com os seus inimigos» (Exercícios Espirituais em Lião, outubro-novembro de 1674).

São Charles de Foucauld e Santa Teresinha do Menino Jesus

129. São Charles de Foucauld e Santa Teresinha do Menino Jesus, sem o pretenderem, reformularam certos elementos da devoção ao Coração de Cristo, ajudando-nos a compreendê-la de uma forma ainda mais fiel ao Evangelho. Vejamos agora como se exprime esta devoção nas suas vidas. No próximo capítulo voltaremos a eles para mostrar a originalidade da dimensão missionária que ambos desenvolveram de modos diferentes.

Iesus Caritas

130. Em Louye, São Charles de Foucauld fazia visitas ao Santíssimo Sacramento com a sua prima, Madame de Bondy, e um dia ela indicou-lhe uma imagem do Sagrado Coração (cf. Carta à Madame de Bondy, 27 de abril de 1897). Para a conversão de Charles, esta sua prima foi fundamental, como ele reconhece: «Já que o bom Deus fez de ti o primeiro instrumento das suas misericórdias para comigo, todas as suas misericórdias vêm de ti. Se não me tivesses convertido, levado a Jesus e ensinado pouco a pouco, palavra por palavra, tudo o que é piedoso e bom, estaria eu onde estou hoje?» (Carta à Madame de Bondy, 15 de abril de 1901. cf. Carta à Madame de Bondy, 05 de abril de 1909: «Por ti eu conheci as exposições do Santíssimo Sacramento, as bênçãos e o Sagrado Coração»). Mas, o que ela despertou nele foi exatamente a consciência ardente do amor de Jesus. Estava tudo ali, e era o mais importante. E isso concentrava-se particularmente na devoção ao Coração de Cristo, onde ele encontrava uma misericórdia sem limites: «Esperemos na misericórdia infinita d’Aquele cujo coração me fizestes conhecer» (Carta à Madame de Bondy, 07 de abril de 1890).

131. Depois, o seu diretor espiritual, Padre Henri Huvelin, o ajudará a aprofundar este precioso mistério: «Este Coração abençoado do qual me falaste tantas vezes» (Carta ao Padre Huvelin, 27 de junho de 1892). No dia 06 de junho de 1889 Charles consagra-se ao Sagrado Coração, no qual encontrava um amor absoluto. Diz a Cristo: «Vós me cumulastes de tantos benefícios que me parece ser uma ingratidão para com o vosso coração não crer que ele esteja pronto a cumular-me de todo o bem, por maior que seja, e que o seu amor e a sua generosidade não têm medida» (Méditations sur Ancien Testament, Roma, 1896). Será eremita «sob o nome do Sagrado Coração» (Carta ao Padre Huvelin, 16 de maio de 1900).

132. No dia 17 de maio de 1906, no qual já não pôde mais celebrar a Missa por se encontrar sozinho, Frei Charles escreveu esta promessa: «Deixar viver em mim o Coração de Jesus, de modo que já não seja eu a viver, mas o Coração de Jesus que viva em mim, como vivia em Nazaré» (Diário, 17 de maio de 1906). A sua amizade com Jesus, de coração a coração, não tinha nada de devocionismo íntimo. Era a raiz dessa vida despojada de Nazaré, pela qual Charles queria imitar Cristo e configurar-se com Ele. Esta terna devoção ao Coração de Cristo teve consequências muito concretas no seu estilo de vida e a sua Nazaré foi alimentada por esta relação muito pessoal com o Coração de Cristo.

Santa Teresinha do Menino Jesus

133. Tal como São Charles de Foucauld, Santa Teresinha do Menino Jesus respirou a enorme devoção que inundava a França no século XIX. Padre Almire Pichon foi o diretor espiritual da sua família e foi considerado um grande apóstolo do Sagrado Coração. Uma das suas irmãs tomou o nome religioso de “Maria do Sagrado Coração”, e o mosteiro em que Santa Teresinha entrou era dedicado ao Sagrado Coração. No entanto, a sua devoção assumiu algumas características próprias, que iam além das formas pelas quais se expressava naquela época.

134. Quando tinha quinze anos, encontrou uma maneira de resumir a sua relação com Jesus: «Aquele cujo coração batia em uníssono com o meu» (Santa Teresinha do Menino Jesus, Carta 67: À Sra. Guérin, 18 de novembro de 1888: Obras completas, Avessadas, 1996, 373). Dois anos mais tarde, quando lhe falavam de um Coração coroado de espinhos, acrescentou em uma carta: «Sabes, eu não vejo o Sagrado Coração como toda a gente, penso que o coração do meu Esposo é só meu como o meu é só d’Ele e então falo-lhe na solidão desta deliciosa intimidade esperando contemplá-lo um dia face a face» (Carta 122: A Celina, 14 de outubro de 1890: op. cit., 445).

135. Em um poema, ela exprimiu o sentido da sua devoção, feita mais de amizade e confiança do que de segurança nos seus próprios sacrifícios:
«Preciso de um coração ardente de ternura, / que me dê a sua força sem reserva, / que ame tudo em mim, mesmo a minha fraqueza, / que nunca me abandone de noite nem de dia...
Preciso de um Deus que se revista da mesma natureza / que se torne meu irmão e possa sofrer! (...) / Ah! bem sei que todas as nossas justiças / não têm a teus olhos nenhum valor...
E eu escolho para meu purgatório / o teu Amor ardente, ó Coração do meu Deus» (Poesia 23: Ao Sagrado Coração de Jesus, 21 de junho ou de outubro de 1895: op. cit., 735-736).

Santos adoram o Coração de Jesus
(Romain Cazes)

136. Talvez o texto mais relevante para compreender o significado da sua devoção ao Coração de Cristo seja a carta que escreveu, três meses antes de falecer, ao seu amigo Maurice Bellière: «Quando vejo Madalena avançar na presença dos numerosos convidados, banhar com as suas lágrimas os pés do Mestre adorado que toca pela primeira vez, sinto que o coração dela compreendeu os abismos de amor e de misericórdia do Coração de Jesus, e que, por muito pecadora que ela seja, este Coração de amor não só está disposto a perdoar-lhe, mas ainda a prodigalizar-lhe os benefícios da sua intimidade divina, a elevá-la até os mais altos cumes da contemplação. Ah! meu querido Irmãozinho, desde que me foi dado compreender também o amor do Coração de Jesus, confesso que Ele afastou do meu coração todo o temor. A lembrança das minhas faltas humilha-me, leva-me a nunca me apoiar na minha força que é só fraqueza, mas esta lembrança fala-me ainda mais de misericórdia e de amor» (Carta 247: Ao Padre Bellière, 21 de junho de 1897: op. cit., 625).

137. As mentes moralizantes, que pretendem controlar a misericórdia e a graça, diriam que Teresinha podia afirmar isto porque era uma santa, mas que um pecador não poderia dizer o mesmo. Ao fazê-lo, retiram à espiritualidade de Teresinha sua bela novidade que reflete o coração do Evangelho. Infelizmente tornou-se comum em alguns círculos cristãos tentar aprisionar o Espírito Santo em um esquema que lhes permita ter tudo sob a sua supervisão. Entretanto, esta sábia Doutora da Igreja desmente-os e contradiz diretamente esta interpretação redutiva com palavras muito claras: «Ainda que eu tivesse cometido todos os crimes possíveis, mesmo assim teria sempre a mesma confiança: sinto que toda essa multidão de ofensas seria como uma gota de água lançada em um braseiro ardente» (Últimos conselhos e recordações: Caderno Amarelo, 11 de julho de 1897: op. cit., 1156).

138. À Irmã Maria, que a elogiava pelo seu amor generoso a Deus, disposto até ao martírio, responde longamente em uma carta que é hoje um dos grandes marcos da história da espiritualidade. Esta página deveria ser lida milhares de vezes pela sua profundidade, clareza e beleza. Nela, Teresinha ajuda a Irmã “do Sagrado Coração” a não concentrar esta devoção no âmbito da dor, já que alguns entendiam a reparação como uma espécie de primado dos sacrifícios ou de cumprimento moralista. Ao contrário, ela resume tudo na confiança como a melhor oferta, agradável ao Coração de Cristo: «Os meus desejos de martírio não são nada, não são eles que me dão a confiança ilimitada que sinto no coração. Para dizer a verdade, são as riquezas espirituais que tornam alguém injusto, quando descansamos nelas com complacência, e cremos que são algo de grande... O que lhe agrada é ver-me amar a minha pequenez e a minha pobreza, é a esperança cega que tenho na sua misericórdia... Eis o meu único tesouro... Se desejais sentir alegria, sentir atração pelo sofrimento, é a vossa consolação que procurais... Compreendei que para amar Jesus, para ser a sua vítima de amor, quanto mais fraco se é, sem desejos, nem virtudes, tanto mais puro se está para as operações deste Amor consumador e transformante... Oh, como eu queria fazer-vos compreender o que sinto! Só a confiança e nada mais do que a confiança tem de conduzir-nos ao Amor» (Carta 197: À Irmã. Maria do Sagrado Coração, 17 de setembro de 1896: op. cit., 567-569) [7].

139. Em muitos dos seus textos percebe-se a luta contra formas de espiritualidade demasiadamente centradas no esforço humano, no próprio mérito, na oferta de sacrifícios, em certas tarefas para “ganhar o céu”. Para Teresinha, «o mérito não consiste em fazer nem em dar muito, mas antes em receber» (Carta 142: A Celina, 06 de julho de 1893: op. cit., 476). Leiamos mais uma vez alguns destes textos muito significativos onde ela insiste em outro caminho, que é um caminho simples e rápido para ganhar o Senhor através do coração.

140. Assim escreve à sua irmã Leônia: «Garanto-te que Deus é muito melhor do que tu imaginas. Contenta-se com um olhar, com um suspiro de amor... Quanto a mim, acho a perfeição muito fácil de praticar, porque compreendi que nada há a fazer senão ganhar Jesus pelo coração... Vê uma criancinha que acaba de desagradar sua mãe... Se lhe estende os bracinhos sorrindo e dizendo: “Dá-me um beijo, não torno mais a fazer isso”, poderá a mãe deixar de apertá-la contra o coração com ternura e esquecer as suas travessuras? No entanto, sabe muito bem que o seu querido filho cairá de novo na próxima ocasião, mas não tem importância: se ele tornar a ganhá-la pelo coração, nunca será castigado» (Carta 191: A Leônia, 12 de julho de 1896: op. cit., 557).

141. Em uma carta ao Padre Adolphe Roulland, ela diz: «O meu caminho é todo de confiança e de amor, não compreendo as almas que têm medo de um Amigo tão terno. Às vezes, quando leio certos tratados espirituais nos quais a perfeição é apresentada através de inúmeras dificuldades, rodeada por uma quantidade de ilusões, a minha pobre inteligência cansa-se muito depressa, fecho o sábio livro que me quebra a cabeça e me seca o coração e pego na Sagrada Escritura. Então tudo me parece luminoso, uma só palavra revela à minha alma horizontes infinitos, a perfeição parece-me fácil, vejo que basta reconhecer o próprio nada e abandonar-se como uma criança nos braços de Deus» (Carta 226: Ao Padre Roulland, 09 de maio de 1897: op. cit., 608).

142. E dirigindo-se ao Padre Maurice Bellière, a respeito de um pai de família, observa: «Não acredito que o coração do ditoso pai possa resistir à confiança filial do filho de quem conhece a sinceridade e o amor. Não ignora, todavia, que o filho cairá mais uma vez nas mesmas faltas, mas está disposto a perdoar-lhe sempre, se o filho sempre lhe falar ao coração» (Carta 258: Ao Padre Bellière, 18 de julho de 1897: op. cit., 639).

Ressonâncias na Companhia de Jesus

143. Vimos como São Cláudio de La Colombière relacionava a experiência espiritual de Santa Margarida com a proposta dos Exercícios Espirituais. Penso que o lugar do Sagrado Coração na história da Companhia de Jesus mereça algumas breves palavras.

144. A espiritualidade da Companhia de Jesus sempre propôs um «conhecimento interno do Senhor... para melhor amá-lo e segui-lo» (Santo Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, n. 104). Nos seus Exercícios Espirituais Santo Inácio convida a nos colocarmos diante do Evangelho que nos diz sobre Jesus: «ferido com a lança o seu lado, manou água e sangue» (ibid., n. 297). Quando o exercitante se encontra diante do lado ferido de Cristo, Inácio propõe-lhe entrar no Coração de Cristo. Trata-se de um caminho para amadurecer o próprio coração pela mão de um “mestre dos afetos”, segundo a expressão usada por São Pedro Fabro em uma das suas cartas a Santo Inácio (cf. Carta a Inácio de Loyola, 23 de janeiro de 1541). O jesuíta Juan Alfonso de Polanco também menciona esta expressão na sua biografia de Santo Inácio: «(o Cardeal Contarini) reconhecia ter encontrado no Padre Inácio um mestre dos afetos» (De Vita P. Ignatii et Societatis Iesu initiis, cap. 8: in: Juan Alfonso de Polanco, S.J., Vita Ignatii Loiolae et rerum Societatis Iesu historia, t. I, Madrid, 1894, 64). Os diálogos que Santo Inácio propõe são uma parte essencial desta educação do coração, porque sentimos e saboreamos com o coração a mensagem do Evangelho e conversamos sobre ela com o Senhor. Santo Inácio diz que podemos comunicar as nossas coisas ao Senhor e pedir-lhe conselho sobre elas. Qualquer exercitante pode reconhecer que nos Exercícios há um diálogo de coração para coração.

145. Santo Inácio termina as contemplações aos pés do Crucificado, convidando o exercitante a dirigir-se com grande afeto ao Senhor crucificado e perguntar-lhe «como um amigo fala a outro, ou um servo a seu senhor» (Exercícios Espirituais, n. 54) o que deveria fazer por Ele. O itinerário dos Exercícios culmina na “contemplação para alcançar amor”, da qual brota a ação de graças e a oferta da “memória, do entendimento e da vontade” ao Coração que é fonte e origem de todo o bem (cf. ibid., nn. 230ss). Tal conhecimento interior do Senhor não se constrói com as nossas luzes e esforços, mas se pede como um dom.

146. Esta mesma experiência está na origem de uma longa cadeia de Padres jesuítas que se referiram explicitamente ao Coração de Jesus, como São Francisco de Borja, São Pedro Fabro, Santo Afonso Rodrigues, Padre Álvarez de Paz, Padre Vicente Carafa, Padre Kasper Drużbicki e tantos outros. Em 1883, os jesuítas declararam que «a Companhia de Jesus aceita e recebe com espírito pleno de alegria e gratidão o suavíssimo encargo, que lhe foi confiado por nosso Senhor Jesus Cristo, de praticar, promover e propagar a devoção ao seu diviníssimo Coração» (XXIII Congregação Geral da Companhia de Jesus, Decreto 46, 1. in: Institutum Societatis Iesu, vol. 2, Florença, 1893, 511). Em dezembro de 1871 o Padre Pieter Jan Beckx consagrou a Companhia ao Sagrado Coração de Jesus e o Padre Pedro Arrupe, como sinal de que ainda continuava a fazer parte da vida da Companhia, voltou a fazê-lo em 1972, com uma convicção que se expressa nestas palavras: «Quero dizer à Companhia algo que sinto não dever calar. Desde o meu noviciado sempre estive convencido de que a chamada “devoção ao Sagrado Coração” contém uma expressão simbólica da realidade mais profunda do espírito inaciano e uma eficácia extraordinária - ultra quam speraverint - tanto para o aperfeiçoamento pessoal como para a fecundidade apostólica. Ainda conservo a mesma convicção... Encontro nesta devoção uma das fontes mais íntimas da minha vida interior» (En Él solo... la esperanza, Roma, 1982, 180).

147. Quando São João Paulo II convidou «todos os membros da Companhia a promover com ainda maior zelo esta devoção que corresponde mais do que nunca às expectativas do nosso tempo», fê-lo porque reconhecia os laços íntimos entre a devoção ao Coração de Cristo e a espiritualidade inaciana, pois «o desejo de “conhecer intimamente o Senhor” e de “ter um diálogo” com Ele, coração a coração, é caraterístico, graças aos Exercícios Espirituais, do dinamismo espiritual e apostólico inaciano, inteiramente a serviço do amor ao Coração de Deus» (Carta ao Prepósito-Geral da Companhia de Jesus, Paray-le-Monial, 05 de outubro de 1986).

Uma longa corrente de vida interior

148. A devoção ao Coração de Cristo reaparece no caminho espiritual de vários santos muito diferentes entre si, e em cada um deles esta devoção assume novos aspectos. São Vicente de Paulo, para dar um exemplo, dizia que o que Deus quer é o coração: «Deus pede principalmente o coração, o coração, que é o principal. Por que quem não tem nada pode ter mais mérito do que quem, tendo grandes posses, renuncia a elas? Porque quem não tem nada vai a Ele com mais afeto; e é isso que Deus quer de modo especial» (Conferências aos Missionários: A pobreza, 13 de agosto de 1655. in: São Vicente de Paulo, Obras completas, t. 11/3, Salamanca, 1974, 156). Isto implica aceitar que o próprio coração se una ao de Cristo: «Uma religiosa que faz tudo o possível para predispor o seu coração a estar unido ao de nosso Senhor... quantas bênçãos não receberá de Deus!» (Conferências às Filhas da Caridade, 09 de dezembro de 1657. in: op. cit., t. 9/2, 974).

149. Por vezes somos tentados a considerar este mistério de amor como um admirável feito do passado, como uma bela espiritualidade de outros tempos, mas devemos recordar sempre de novo, como dizia um Santo missionário, que «este Coração divino, que suportou ser transpassado por uma lança inimiga para poder derramar por aquela ferida sagrada os Sacramentos, onde se formou a Igreja, jamais deixou de amar» (São Daniel Comboni, Scritti, n. 3324. in: Daniele Comboni, Gli scritti, Bologna, 1991, 998). Santos mais recentes, como São Pio de Pietrelcina, Santa Teresa de Calcutá e tantos outros, falam com sincera devoção do Coração de Cristo. Mas gostaria de recordar também as experiências de Santa Faustina Kowalska, que repropõem a devoção ao Coração de Cristo colocando uma forte ênfase na vida gloriosa do Ressuscitado e na misericórdia divina. Com efeito, motivado pelas experiências desta Santa e bebendo da herança espiritual do Bispo São Józef Sebastian Pelczar (1842-1924) (cf. Homilia na Missa de Canonização, 18 de maio de 2003), São João Paulo II relacionou intimamente a sua reflexão sobre a misericórdia com a devoção ao Coração de Cristo: «A Igreja parece professar de modo particular a misericórdia de Deus e venerá-la, voltando-se para o Coração de Cristo. Com efeito, a aproximação de Cristo, no mistério do seu Coração, permite deter-nos neste ponto da revelação do amor misericordioso do Pai, que constituiu, em certo sentido, o núcleo central... da missão messiânica do Filho do Homem» (Encíclica Dives in misericordia, 30 de novembro de 1980, n. 13). O mesmo São João Paulo II, referindo-se ao Sagrado Coração, reconheceu de modo muito pessoal: «Ele falou-me desde a idade juvenil» (Audiência Geral, 20 de junho de 1979).

150. A atualidade da devoção ao Coração de Cristo é particularmente evidente na ação evangelizadora e educativa de numerosas Congregações religiosas femininas e masculinas, marcadas desde as suas origens por esta experiência espiritual cristológica. Mencioná-las todas seria uma tarefa interminável. Vejamos apenas dois exemplos escolhidos ao acaso: «O Fundador [São Daniel Comboni] encontrou no mistério do Coração de Jesus a força para o seu empenho missionário» (Missionários Combonianos do Coração de Jesus, Regra de Vida, Constituições e Diretório Geral, Roma, 1988, 3). «Impelidas pelo amor do Coração de Jesus, procuramos o crescimento das pessoas na sua dignidade humana e como filhos e filhas de Deus, com base no Evangelho e nas suas exigências de amor, perdão, justiça e solidariedade para com os pobres e marginalizados» (Religiosas do Sagrado Coração de Jesus [Sociedade do Sagrado Coração], Constituições de 1982, 7). Do mesmo modo, os Santuários consagrados ao Coração de Cristo, espalhados por todo o mundo, são uma atraente fonte de espiritualidade e fervor. A todos aqueles que, de algum modo, colaboram nestes lugares de fé e de caridade, dirijo a minha bênção paterna.


Notas:

[3] «Pois que o Sagrado Coração é o símbolo e a imagem sensível da caridade infinita de Jesus Cristo, caridade que nos anima a amarmo-nos uns aos outros, é natural que nos consagremos a este Coração Santíssimo. Proceder assim é darmo-nos e ligarmo-nos a Jesus Cristo... Hoje, eis que outro emblema bendito e divino se oferece aos nossos olhos. É o Coração Sacratíssimo de Jesus, sobre o qual se ergue a cruz e que brilha com magnífico esplendor no meio das chamas. Nele devemos colocar todas as nossas esperanças; devemos pedir-lhe e esperar dele a salvação dos homens» (Encíclica Annum Sacrum).

[4] «Neste símbolo, dentre todos o mais auspicioso, e no culto que ao Coração de Jesus tributamos, acaso não estão contidas a síntese de toda a religião e a regra de vida mais perfeita? Com efeito, esta devoção leva em pouco tempo as almas a estudar mais intimamente Cristo Jesus; excita-as com mais eficácia a um amor mais entusiasta, a mais fiel imitação» (Pio XI, Encíclica Miserentissimus Redemptor, 08 de maio de 1928, n. 3).

[5] «É um ato de religião excelentíssimo, visto exigir de nós uma plena e inteira vontade de entrega e consagração ao amor do divino Redentor, do qual é sinal e símbolo vivo o seu coração transpassado... Nele podemos considerar não só um símbolo, mas também como que um compêndio de todo o mistério da nossa redenção... Jesus Cristo expressamente e repetidas vezes indicou o seu coração como símbolo com que estimular os homens ao conhecimento e à estima do seu amor; e ao mesmo tempo constituiu-o sinal e penhor de misericórdia e de graça para as necessidades da Igreja nos tempos modernos» (Haurietis aquas, nn. 4.43.52.

[6] «O valor das revelações privadas é essencialmente diverso do valor da única Revelação pública: esta exige a nossa fé... Uma revelação privada... é uma ajuda, que é oferecida, mas da qual não é obrigatório fazer uso» (Bento XVI, Exortação Apostólica pós-sinodal Verbum Domini, 30 de setembro de 2010, n. 14).

[7] Isto não significa que Teresinha não oferecesse sacrifícios, dores e angústias como um modo de associar-se ao sofrimento de Cristo, mas que, quando queria ir ao fundo, preocupava-se em não dar a estes oferecimentos uma importância que não possuem.

Fonte: Santa Sé.

Observação: Para facilitar a leitura neste formato do blog, unimos as notas de rodapé mais breves ao corpo do texto.

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