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sábado, 23 de novembro de 2024

Encíclica Dilexit nos (3)

No dia 24 de outubro de 2024 o Papa Francisco promulgou a Encíclica Dilexit nos (Amou-nos) sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus.

Dada a estreita relação da devoção ao Sagrado Coração de Jesus com a Liturgia e a extensão do documento (220 parágrafos), publicamos seu texto na íntegra dividido em três partes (1ª parte: nn. 1-77; 2ª parte: nn. 78-150). Confira nesta terceira parte, portanto, os nn. 151-220:

Papa Francisco
Encíclica Dilexit nos
Sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus

Capítulo IV: Amor que dá de beber

(Continuação)

A devoção da consolação

151. A chaga do lado, de onde brota a água viva, permanece aberta no Ressuscitado. Esta grande ferida causada pela lança, e as chagas da coroa de espinhos que aparecem com frequência nas representações do Sagrado Coração, são inseparáveis desta devoção. Nela contemplamos o amor de Jesus Cristo que foi capaz de se entregar até ao fim. O coração do Ressuscitado conserva estes sinais da doação total que implicou um intenso sofrimento por nós. Portanto, de algum modo, é inevitável que o fiel queira responder não só a este grande amor, mas também à dor que Cristo aceitou suportar por causa de tanto amor.

Sagrado Coração de Jesus
(Pompeo Batoni)

Com Ele na Cruz

152. Vale a pena recuperar esta expressão da experiência espiritual desenvolvida em torno do Coração de Cristo: o desejo interior de consolá-lo. Não tratarei agora da prática da “reparação”, que considero melhor inserida no contexto da dimensão social desta devoção, e que desenvolverei no próximo capítulo. Agora gostaria apenas de me concentrar naquele desejo que muitas vezes brota no coração do fiel enamorado quando contempla o mistério da Paixão de Cristo e o vive como um mistério que não só é recordado, mas que pela graça se torna presente, ou melhor, nos leva a estar misticamente presentes naquele momento redentor. Se o Amado é o mais importante, como não querer consolá-lo?

153. O Papa Pio XI procurou fundamentar esta afirmação convidando-nos a reconhecer que o mistério da redenção através da Paixão de Cristo, por graça de Deus, transcende todas as distâncias do tempo e do espaço. Deste modo, se Ele se entregou na Cruz também pelos pecados futuros, os nossos pecados, transcendendo o tempo, chegaram ao seu Coração ferido, assim como os atos que oferecemos hoje pela sua consolação: «Se, portanto, à vista de nossos pecados futuros, porém previstos, a alma de Jesus esteve triste até à morte, não há dúvida que desde então lhe tenha dado algum conforto a previsão do nosso desagravo, quando “lhe apareceu o Anjo do Céu” (Lc 22,43), a consolar-lhe o Coração oprimido de tristeza e de angústia. E assim também agora, de modo admirável, porém verdadeiro, podemos e devemos consolar este Coração Sacratíssimo, continuamente ofendido pelos pecados dos homens ingratos» (Encíclica Miserentissimus Redemptor, 08 de maio de 1928, n. 14).

As razões do coração

154. Pode parecer que esta expressão de devoção não possua suficiente base teológica, mas o coração tem as suas razões. O sensus fidelium intui que há aqui algo de misterioso que ultrapassa a nossa lógica humana, e que a Paixão de Cristo não é um mero evento do passado, pois podemos participar dela a partir da fé. A meditação da entrega de Cristo na cruz é, para a piedade dos fiéis, algo mais do que uma simples recordação. Esta convicção está solidamente fundamentada na teologia (Quando é exercitada a virtude da fé referida a Cristo, a alma acede não só a recordações, mas à realidade da sua vida divina; cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 1, a. 2, ad 2; q. 4, a. 1). A isto soma-se a consciência do próprio pecado, que Ele carregou sobre os seus ombros feridos, e da própria inadequação perante tanto amor, que sempre nos ultrapassa infinitamente.

155. Em todo o caso, perguntamo-nos como é possível relacionarmo-nos com Cristo vivo, ressuscitado, plenamente feliz e, ao mesmo tempo, consolá-lo na Paixão. Consideremos que o Coração ressuscitado conserva a sua ferida como uma memória constante, e que a ação da graça provoca uma experiência que não está inteiramente contida no instante cronológico. Estas duas convicções permitem-nos admitir que nos encontramos perante um caminho místico que ultrapassa as tentativas da razão e exprime o que a própria Palavra de Deus nos sugere: «Mas - escreve o Papa Pio XI - como pode ser que Jesus Cristo reine bem-aventurado no Céu, se pode ser consolado por nossa reparação? “Dá uma alma que ame, e compreenderá o que digo”, respondemos com as palavras de Santo Agostinho (In Ioannis Evangelium, 26, 4), que correspondem perfeitamente ao nosso propósito. Com efeito, toda alma verdadeiramente abrasada no amor de Deus, se com a consideração abrange o tempo passado, vê em suas meditações e contempla a Jesus a padecer pelo homem, aflito, no meio das dores mais excruciantes “por nós, homens, e pela nossa salvação”, oprimido pela tristeza, angústias e opróbrios, antes “esmagado pelos nossos delitos” (Is 53,5) e em ato de sanar-nos com suas chagas. Com tanta maior verdade as almas pias contemplam as dores do Salvador, enquanto os pecados e os delitos dos homens, perpetrados no decurso de todos os tempos, motivaram a condenação de Jesus» (Miserentissimus Redemptor, n. 14).

156. Este ensinamento de Pio XI merece ser tido em conta. Com efeito, quando a Escritura afirma que os cristãos que não vivem de acordo com a sua fé «por si mesmos crucificam de novo o Filho de Deus» (Hb 6,6), ou que, quando suporto sofrimentos pelos outros, «completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo» (Cl 1,24), ou que Cristo, na sua Paixão, rezou não só pelos seus discípulos de então, mas «por aqueles que hão de crer em mim, por meio da sua palavra» (Jo 17,20), está dizendo algo que quebra os nossos esquemas limitados. Mostra-nos que não é possível estabelecer um antes e um depois sem qualquer ligação, mesmo que o nosso pensamento não saiba explicá-lo. O Evangelho, nos seus vários aspectos, não é apenas para ser refletido ou recordado, mas para ser vivido, tanto nas obras de amor como na experiência interior, e isto aplica-se sobretudo ao mistério da Morte e Ressurreição de Cristo. As separações temporais utilizadas pela nossa mente não parecem conter a verdade desta experiência de fé, onde se fundem a união com Cristo sofredor e, ao mesmo tempo, a força, a consolação e a amizade que temos com o Ressuscitado.

157. Vemos, assim, a unidade do Mistério Pascal nos seus dois aspectos inseparáveis que mutuamente se iluminam. Este único Mistério, fazendo-se presente pela graça nas suas duas dimensões, significa que, quando procuramos oferecer algo a Cristo para a sua consolação, os nossos próprios sofrimentos são iluminados e transfigurados pela luz pascal do amor. Acontece que participamos neste mistério na nossa vida concreta, porque anteriormente o próprio Cristo quis participar na nossa vida, quis viver antecipadamente como Cabeça o que o seu Corpo eclesial viveria, tanto nas feridas como nas consolações. Quando vivemos na graça de Deus, esta participação mútua torna-se uma experiência espiritual. Em última análise, é o Ressuscitado que, pela ação da sua graça, torna possível que estejamos misteriosamente unidos à sua Paixão. Sabem-no os corações que creem, que experimentam a alegria da Ressurreição, mas ao mesmo tempo desejam participar no destino do seu Senhor. Estão prontos para esta participação com os sofrimentos, os cansaços, as desilusões e os medos que fazem parte da sua vida. Não a vivem na solidão, pois estas feridas são igualmente uma participação no destino do Corpo místico de Cristo que caminha no povo santo de Deus e que leva o destino de Cristo em todos os tempos e lugares da história. A devoção da consolação não é a-histórica ou abstrata, mas torna-se carne e sangue no caminho da Igreja.

A compunção

158. O desejo inevitável de consolar Cristo, que surge da dor de contemplar o que Ele sofreu por nós, alimenta-se também do reconhecimento sincero das nossas escravidões, dos nossos apegos, da nossa falta de alegria na fé, das nossas buscas vãs e, para além dos pecados concretos, da falta de correspondência do nosso coração ao seu amor e ao seu projeto. É uma experiência que nos purifica, porque o amor precisa da purificação das lágrimas que, no final, nos deixam mais sedentos de Deus e menos obcecados por nós mesmos.

159. Assim, vemos que, quanto mais profundo se torna o desejo de consolar o Senhor, mais se aprofunda a compunção do coração que crê, que «não é um sentimento de culpa que te lança por terra, nem uma série de escrúpulos que paralisam, mas é uma picada benéfica que queima intimamente e cura, pois o coração, quando se dá conta do próprio mal e se reconhece pecador, abre-se, acolhe a ação do Espírito Santo, como água viva que o muda a ponto de lhe correrem as lágrimas pelo rosto... Não significa sentir pena de nós, como muitas vezes somos tentados a fazer... Diversamente chorar por nós mesmos é arrepender-se seriamente de ter entristecido a Deus com o pecado; reconhecer que diante d’Ele sempre estamos em débito, nunca em crédito... Assim como a água, gota a gota, escava a pedra, as lágrimas lentamente escavam os corações endurecidos. Deste modo assiste-se ao milagre da tristeza, da tristeza boa que leva à doçura... A compunção, mais do que fruto do nosso exercício, é uma graça e como tal deve ser pedida na oração» (Francisco, Homilia na Missa Crismal, 28 de março de 2024). É «pedir... dor com Cristo doloroso, quebranto com Cristo quebrantado, lágrimas, pena interna de tanta pena que Cristo passou por mim» (Santo Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, n. 203).

160. Peço, portanto, que ninguém ridicularize as expressões de fervor devoto do santo povo fiel de Deus, que na sua piedade popular procura consolar Cristo. E convido cada um a perguntar-se se não há mais racionalidade, mais verdade e mais sabedoria em certas manifestações desse amor que procura consolar o Senhor do que nos atos de amor frios, distantes, calculados e mínimos de que somos capazes aqueles que julgamos possuir uma fé mais reflexiva, cultivada e madura.

Consolados para consolar

161. Nesta contemplação do Coração de Cristo, entregue até ao fim, somos consolados. A dor que sentimos no coração dá lugar a uma confiança total e, por fim, resta a gratidão, a ternura, a paz, o seu amor reinante na nossa vida. A compunção «não provoca angústia, mas alivia a alma dos seus pesos, porque intervém na ferida deixada pelo pecado, preparando-nos para receber lá mesmo a carícia do Senhor» (Francisco, Homilia na Missa Crismal, 28 de março de 2024). E a nossa dor une-se à dor de Cristo na Cruz, pois quando dizemos que a graça nos permite superar todas as distâncias, isso significa também que Cristo, quando sofria, estava unido a todos os sofrimentos dos seus discípulos ao longo da história. Assim, se sofremos, podemos experimentar a consolação interior de saber que o próprio Cristo sofre conosco. Desejando consolá-lo, saímos consolados.

162. Mas, em certo momento desta contemplação do coração que crê, deve ressoar aquele dramático apelo do Senhor: «Consolai, consolai o meu povo» (Is 40,1). E recordamos as palavras de São Paulo, que nos lembra que Deus nos consola «para que também nós possamos consolar aqueles que estão em qualquer tribulação, mediante a consolação que nós mesmos recebemos de Deus» (2Cor 1,4).

163. Isto convida-nos agora a procurar aprofundar a dimensão comunitária, social e missionária de toda autêntica devoção ao Coração de Cristo. Com efeito, o Coração de Cristo, ao mesmo tempo que nos conduz ao Pai, envia-nos aos irmãos. Nos frutos de serviço, fraternidade e missão que o Coração de Cristo produz através de nós, cumpre-se a vontade do Pai. Assim se fecha o círculo: «Nisto se manifesta a glória do meu Pai: em que deis muito fruto» (Jo 15,8).

Capítulo V: Amor por amor

164. Nas experiências espirituais de Santa Margarida Maria encontramos, junto da declaração ardente do amor de Jesus Cristo, uma ressonância interior que nos chama a dar a vida. Sabermo-nos amados e colocar toda a nossa confiança nesse amor não significa anular as nossas capacidades de doação, não implica renunciar ao desejo irrefreável de dar alguma resposta a partir das nossas pequenas e limitadas capacidades.

Um lamento e um pedido

165. A partir da segunda grande manifestação a Santa Margarida, Jesus exprime dor porque o seu grande amor pelos homens «não recebia senão ingratidão e friezas. Isto - disse-me Ele - custa-me muito mais do que tudo quanto sofri na minha Paixão» (Santa Margarida Maria Alacoque, Autobiografia, n. 55; op. cit., 60).

166. Jesus fala da sua sede de ser amado, mostrando-nos que o seu Coração não é indiferente à nossa reação diante do seu desejo: «Tenho sede, mas uma sede tão ardente de ser amado pelos homens no Santíssimo Sacramento, que esta sede me consome; e não encontro ninguém que se esforce, segundo o meu desejo, por saciar a minha sede, retribuindo um pouco do meu amor» (idem, Carta ao Padre Croiset, 03 de novembro de 1689: Vie et Oeuvres de la Bienheureuse Marguerite-Marie Alacoque, t. 2, Paris, 1915, 576-577). O pedido de Jesus é o amor. Quando o coração fiel o descobre, a resposta que brota espontaneamente não é uma custosa busca de sacrifícios ou o mero cumprimento de um pesado dever, é uma questão de amor: «Recebi de Deus graças muito grandes do seu amor, e senti-me impelida pelo desejo de corresponder-lhe de algum modo e de pagar-lhe amor por amor» (Autobiografia, n. 92; op. cit., 93). O mesmo ensina Leão XIII, escrevendo que, mediante a imagem do Sagrado Coração, a caridade de Cristo «nos move ao amor recíproco» (Encíclica Annum Sacrum, 25 de maio de 1899).

Prolongar o seu amor nos irmãos

167. É preciso voltar à Palavra de Deus para reconhecer que a melhor resposta ao amor do seu Coração é o amor aos irmãos; não há maior gesto que possamos oferecer-lhe para retribuir amor por amor. A Palavra de Deus o afirma com toda a clareza:
«Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25,40).
«Toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo» (Gl 5,14).
«Nós sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama, permanece na morte» (1Jo 3,14).
«Aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê» (1Jo 4,20).

168. O amor aos irmãos não se fabrica, não é fruto do nosso esforço natural, mas exige uma transformação do nosso coração egoísta. Nasce então espontaneamente a célebre súplica: “Jesus, fazei o nosso coração semelhante ao vosso”. Por isso mesmo, o convite de São Paulo não era: “Esforçai-vos por fazer boas obras”. O seu convite era mais precisamente: «Tende entre vós os mesmos sentimentos, que estão em Cristo Jesus» (Fl 2,5).

Jesus com os pobres e sofredores

169. É bom lembrar que no Império Romano muitos pobres, forasteiros e tantos outros descartados encontravam respeito, carinho e cuidado nos cristãos. Isto explica o raciocínio do Imperador Juliano, o Apóstata, que se perguntava porque os cristãos eram tão respeitados e seguidos, considerando que uma das razões era o seu empenho na assistência aos pobres e forasteiros, já que o Império os ignorava e desprezava. Para este Imperador era intolerável que os pobres não recebessem ajuda de sua parte, enquanto os odiados cristãos «alimentam os seus, e também os nossos» (Juliano, Epist. XLIX ad Arsacium Pontificem Galatiae, Mainz, 1828, 90-91). Em uma carta insiste, em particular, na ordem de criar instituições de caridade para competir com os cristãos e atrair o respeito da sociedade: «Estabelece em todas as cidades alojamentos numerosos para que os estrangeiros possam gozar da nossa humanidade... Habitua os helenos às obras de beneficência» (ibid.). Mas não atingiu o seu objetivo, porque por trás destas obras não havia seguramente o amor cristão, que permitia reconhecer a cada pessoa uma dignidade única.

170. Identificando-se com os últimos da sociedade (cf. Mt 25,31-46), «Jesus trouxe a grande novidade do reconhecimento da dignidade de cada pessoa, como também e sobretudo daquelas qualificadas como “indignas”. Este princípio novo na história, pelo qual o ser humano é tanto mais “digno” de respeito e de amor quanto mais é fraco, mísero e sofredor, a ponto de perder a própria “figura” humana, mudou o rosto do mundo, dando vida a instituições que se dedicam a cuidar daqueles que se encontram em condições desumanas: os recém-nascidos abandonados, os órfãos, os idosos deixados sozinhos, os doentes mentais, os portadores de doenças incuráveis ou com graves malformações, os sem-teto» (Declaração Dignitas infinita, n. 19).

171. Mesmo do ponto de vista da ferida do seu Coração, olhar para o Senhor, que «tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas dores» (Mt 8,17), ajuda-nos a prestar mais atenção ao sofrimento e às necessidades dos outros, e torna-nos suficientemente fortes para participar na sua obra de libertação, como instrumentos de difusão do seu amor (cf. Bento XVI, Carta ao Prepósito Geral da Companhia de Jesus por ocasião do 50º aniversário da Encíclica Haurietis aquas, 15 de maio de 2006). Se contemplarmos a entrega de Cristo por todos, torna-se inevitável nos perguntarmos por que razão não somos capazes de dar a nossa vida pelos outros: «Nisto conhecemos o amor: Ele, Jesus, deu a sua vida por nós; assim também nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos» (1Jo 3,16).

Algumas ressonâncias na história da espiritualidade

172. Esta união entre a devoção ao Coração de Jesus e o compromisso com os irmãos atravessa a história da espiritualidade cristã. Vejamos alguns exemplos.

Ser uma fonte para os outros

173. A partir de Orígenes, vários Padres da Igreja interpretaram o texto de Jo 7,38 - «Hão de correr do seu coração rios de água viva» - como referindo-se ao próprio fiel, ainda que seja a consequência de ele mesmo ter bebido de Cristo. Assim, a união com Cristo não tem apenas o objetivo de saciar a própria sede, mas de se tornar uma fonte de água fresca para os outros. Orígenes dizia que Cristo cumpre a sua promessa fazendo brotar em nós torrentes de água: «A alma do ser humano, que é imagem de Deus, pode conter em si mesma e produzir de si mesma poços, fontes e rios» (In Num. Homil. 12, 1: PG 12, 657).

174. Santo Ambrósio recomendava beber de Cristo «para que abunde em ti a fonte de água que jorra para a vida eterna» (Epist. 29, 24: PL 16, 1060). E Mário Vitorino sustentava que o Espírito Santo é dado em tal abundância que «quem o recebe torna-se um ventre que emana rios de água viva» (Adv. Arium 1, 8: PL 8, 1044). Santo Agostinho dizia que este rio que brota do fiel é a benevolência (cf. Tract. in Joannem 32, 4: PL 35, 1643). Santo Tomás de Aquino reafirmou esta ideia, afirmando que quando alguém «se apressa a comunicar aos outros os diversos dons da graça que recebeu de Deus, brota do seu ventre água viva» (Expos. in Ev. S. Joannis, cap. 7, lectio 5).

175. Com efeito, embora «o sacrifício da cruz, oferecido com coração amante e obediente, apresenta uma satisfação superabundante e infinita pelos pecados do gênero humano» (Haurietis aquas, n. 20), a Igreja, que nasce do Coração de Cristo, prolonga e comunica em todos os tempos e lugares os efeitos dessa única Paixão redentora, que conduz os homens à união direta com o Senhor.

176. No seio da Igreja, a mediação de Maria, intercessora e mãe, só pode ser entendida «como participação nesta única fonte, que é a mediação do próprio Cristo» (São João Paulo II, Encíclica Redemptoris Mater, 25 de março de 1987, n. 38), único Redentor, e «a Igreja não hesita em proclamar esta função subordinada de Maria» (Constituição Dogmática Lumen gentium, 62). A devoção ao Coração de Maria não quer enfraquecer a única adoração devida ao Coração de Cristo, mas estimulá-la: «A função maternal de Maria em relação aos homens de modo algum ofusca ou diminui esta única mediação de Cristo; antes manifesta a sua eficácia» (ibid., n. 60). Graças à imensa fonte que brota do lado aberto de Cristo, a Igreja, Maria e todos os fiéis, de diferentes maneiras, tornam-se canais de água viva. Deste modo, o próprio Cristo revela a sua glória na nossa pequenez.

Fraternidade e mística

177. São Bernardo, ao mesmo tempo que convidava à união com o Coração de Cristo, aproveitava a riqueza desta devoção para propor uma mudança de vida fundada no amor. Ele acreditava que era possível uma transformação da afetividade, escravizada pelos prazeres, que não se liberta pela obediência cega a uma ordem, mas em uma resposta à doçura do amor de Cristo. Supera-se o mal com o bem, vence-se o mal com o crescimento do amor: «Ama, pois, o Senhor, teu Deus, com o afeto de um coração pleno e íntegro, ama-o com toda a vigilância e circunspecção da razão, ama-o também com todas as forças, de modo que nem sequer tenhas medo de morrer por seu amor... Que o Senhor Jesus seja doce e suave ao teu coração, contra os prazeres carnais malignamente doces, e que a doçura vença a doçura, como um prego expulsa outro prego» (Sermones super Cant., XX, 4: PL 183, 869).

178. São Francisco de Sales foi especialmente iluminado pelo pedido de Jesus: «Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração» (Mt 11,29). Assim, dizia ele, nas coisas mais simples e ordinárias roubamos o coração do Senhor: «É necessário ter o cuidado de servi-lo bem, seja nas coisas grandes e elevadas, seja nas coisas pequenas e desprezíveis, pois podemos igualmente, por estas ou por aquelas, roubar-lhe o coração por amor... Estes pequenos gestos quotidianos de caridade, esta dor de cabeça, esta dor de dentes, esta indisposição, esta contrariedade do marido ou da mulher, este partir de um copo, este desprezo ou este enfado, a perda das luvas, de um anel, de um lenço, este pequeno incômodo assumido para deitar-se à boa hora e se levantar cedo para rezar, para receber a Comunhão, esta pequena vergonha que se experimenta ao fazer um ato de devoção em público; em suma, todos estes pequenos sofrimentos recebidos e abraçados com amor satisfazem grandemente à Bondade divina» (Introdução à vida devota, p. III, c. 35. in: Oeuvres de Saint François de Sales, t. III, Annecy, 1893, 254-255). Mas, em última análise, a chave da nossa resposta ao amor do Coração de Cristo é o amor ao próximo: «É um amor firme, constante, imutável, que, não se detendo em ninharias, nem nas qualidades ou condições das pessoas, não está sujeito a mudanças ou animosidades... Nosso Senhor ama-nos sem interrupção, suporta as nossas faltas como as nossas imperfeições... devemos, portanto, fazer o mesmo em relação aos nossos irmãos, jamais deixando de apoiá-los» (Sermão para o XVII Domingo depois de Pentecostes. in: op. cit., t. IX, Annecy, 1897, Sermons, vol. 3, 200-201).

179. São Charles de Foucauld queria imitar Jesus Cristo, viver como Ele viveu, agir como Ele agiu, fazer sempre o que Jesus teria feito no seu lugar. Para realizar plenamente este objetivo, necessitava conformar-se aos sentimentos do Coração de Cristo. Assim, a expressão “amor por amor” aparece mais uma vez, quando ele diz: «Desejo de sofrimentos, para retribuir-lhe amor por amor, para imitá-lo... para entrar na sua obra e oferecer-me com Ele, o nada que sou, em sacrifício, como vítima, para a santificação dos homens» (Retiro feito em Nazaré, 05-15 de novembro de 1897). O desejo de levar o amor de Jesus, o seu trabalho missionário entre os mais pobres e esquecidos da terra, levou-o a adotar como lema Iesus Caritas, com o símbolo do Coração de Cristo encimado por uma cruz (A partir de 19 de março de 1902 todas as suas Cartas são encabeçadas com as palavras Iesus Caritas, separadas por um coração encimado por uma cruz). Não foi uma decisão superficial: «Com todas as minhas forças, procuro mostrar e provar a estes pobres irmãos perdidos que a nossa religião é toda caridade, toda fraternidade, que o seu emblema é um coração» (Carta ao Padre Huvelin, 15 de julho de 1904). E quis estabelecer-se com outros irmãos «no Marrocos, em nome do Coração de Jesus» (Carta a D. Martin, 25 de janeiro de 1903). Deste modo, a ação evangelizadora deles seria uma irradiação: «A caridade deve irradiar das fraternidades como irradia do Coração de Jesus» (Anexo VI. in: René Voillaume, Les fraternités du Père de Foucauld, Paris, 1946, 173). Este desejo fez dele, pouco a pouco, um irmão universal, porque, deixando-se plasmar pelo Coração de Cristo, quis abraçar no seu coração fraterno toda a humanidade sofredora: «O nosso coração, como o da Igreja, como o de Jesus, deve abraçar todos os homens» (Méditations des saints Évangiles sur les passages relatifs à quinze vertus, Nazaré, 1897-1898, Charité 77 (Mt 20,28). in: Charles de Foucauld, Aux plus petits de mes frères, Paris, 1973, 82). «O amor do coração de Jesus pelos homens, o amor que Ele manifestou na sua Paixão, é o amor que nós devemos ter por todos os seres humanos» (ibid., Charité 90 (Mt 27,30). in: op. cit., 95).

180. O Padre Henri Huvelin, diretor espiritual de São Charles de Foucauld, dizia que «quando nosso Senhor vive em um coração, Ele lhe dá esses sentimentos, e esse coração se abaixa para os pequenos. Tal foi a disposição do coração de um Vicente de Paulo... Quando nosso Senhor vive na alma de um sacerdote, inclina-o para os pobres» (Henri Huvelin, Quelques Directeurs d’Âmes au XVII siècle, Paris, 1911, 97). É importante notar como esta dedicação de São Vicente, que o Padre Huvelin descreve, era também alimentada pela devoção ao Coração de Cristo. São Vicente exortava a «tomar do Coração de nosso Senhor algumas palavras de consolação» (Conferências às Filhas da Caridade, 11 de novembro de 1657. in: São Vicente de Paulo, Obras completas, t. 9/2, Salamanca, 1974, 917) para o pobre doente. Para que isso seja real, pressupõe-se que o próprio coração tenha sido transformado pelo amor e pela mansidão do Coração de Cristo, e São Vicente repetiu muito essa convicção nos seus sermões e conselhos, tanto que se tornou uma caraterística proeminente das Constituições da sua Congregação: «Todos também porão grande diligência em aprender esta lição ensinada por Cristo: “Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração”, considerando que - como Ele mesmo afirma - com a mansidão se possui a terra, porque com o exercício desta virtude se ganham os corações dos homens para se converterem a Deus, o que não conseguem aqueles que tratam com o próximo dura e asperamente» (Regras comuns da Congregação da Missão, 17 de maio de 1658, c. 2, 6. in: op. cit., t. 10, 470).

A reparação: Construir sobre as ruínas

181. Tudo isto nos permite compreender, à luz da Palavra de Deus, que sentido devemos dar à “reparação” oferecida ao Coração de Cristo, o que é que o Senhor realmente espera que reparemos com a ajuda da sua graça. Muito se discutiu a este respeito, mas São João Paulo II ofereceu uma resposta clara aos cristãos de hoje, a fim de nos guiar para um espírito de reparação mais em sintonia com o Evangelho.

Sentido social da reparação ao Coração de Cristo

182. São João Paulo II explicou que, entregando-nos em conjunto ao Coração de Cristo, «sobre as ruínas acumuladas pelo ódio e pela violência, poderá ser construída a civilização do amor tão desejada, o Reino do Coração de Cristo»; isto implica certamente que sejamos capazes de «unir ao amor filial para com Deus o amor ao próximo»; pois bem, «é esta a verdadeira reparação pedida pelo Coração do Salvador» (Carta ao Prepósito-Geral da Companhia de Jesus, Paray-le-Monial, 05 de outubro de 1986). Junto a Cristo, sobre as ruínas que, com o nosso pecado, deixamos neste mundo, somos chamados a construir uma nova civilização do amor. Isto é reparar conforme o que o Coração de Cristo espera de nós. No meio do desastre deixado pelo mal, o Coração de Cristo quis precisar da nossa colaboração para reconstruir a bondade e a beleza.

183. É verdade que todo o pecado prejudica a Igreja e a sociedade, de modo que «a cada pecado pode atribuir-se indiscutivelmente o caráter de pecado social», embora isto seja especialmente verdade para alguns pecados que «constituem, pelo seu próprio objeto, uma agressão direta ao próximo» (São João Paulo II, Exortação Apostólica pós-sinodal Reconciliatio et Paenitentia, 02 de dezembro de 1984, n. 16). São João Paulo II explicou que a repetição destes pecados contra os outros acaba muitas vezes por consolidar uma “estrutura de pecado” que afeta o desenvolvimento dos povos (cf. Encíclica Sollicitudo rei socialis, 30 de dezembro de 1987, n. 36). Frequentemente isto está inserido em uma mentalidade dominante que considera normal ou racional o que não passa de egoísmo e indiferença. Este fenômeno pode definir-se como alienação social: «Alienada é a sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana» (Encíclica Centesimus annus, 01 de maio de 1991, n. 41). Não é apenas uma norma moral que nos leva a resistir a estas estruturas sociais alienadas, a desnudá-las e a criar um dinamismo social que restaure e construa o bem, mas é a própria «conversão do coração» que «impõe a obrigação» (Catecismo da Igreja Católica, n. 1888) de reparar tais estruturas. É a nossa resposta ao Coração amante de Jesus Cristo que nos ensina a amar.

Sagrado Coração de Jesus
“Quero a misericórdia...” (Mt 9,13)

184. Precisamente porque a reparação evangélica tem este forte significado social, os nossos atos de amor, de serviço e de reconciliação, para serem reparações eficazes, requerem que Cristo os impulsione, os motive e os torne possíveis. São João Paulo II dizia também que «para construir a civilização do amor» (cf. Audiência Geral, 08 de junho de 1994), a humanidade de hoje precisa do Coração de Cristo. A reparação cristã não pode ser entendida apenas como um conjunto de obras exteriores, que, contudo, são indispensáveis e por vezes admiráveis. Exige uma espiritualidade, uma alma, um sentido que lhe dê força, impulso e criatividade incansável. Precisa da vida, do fogo e da luz que vêm do Coração de Cristo.

Reparar os corações feridos

185. Por outro lado, uma reparação meramente exterior não é suficiente; nem para o mundo, nem para o Coração de Cristo. Se cada um pensar nos seus próprios pecados e nas consequências para os outros, descobrirá que reparar os danos causados a este mundo implica também o desejo de reparar os corações feridos, onde se produziu o dano mais profundo, a ferida mais dolorosa.

186. O espírito de reparação «convida-nos a esperar que cada ferida possa ser curada, por mais profundas que seja. A reparação completa parece por vezes impossível, quando se perdem definitivamente bens ou pessoas queridas, ou quando certas situações se tornam irreversíveis. Mas a intenção de reparar e de o fazer concretamente é essencial para o processo de reconciliação e para o regresso da paz ao coração» (Francisco, Discurso aos participantes do Colóquio Internacional “Réparer l´irréparable” no 350º aniversário das aparições de Jesus em Paray-le-Monial, 04 de maio de 2024).

A beleza de pedir perdão

187. Não bastam as boas intenções; é indispensável um dinamismo interior de desejo, que terá consequências externas. Em suma, «a reparação, para ser cristã, para tocar o coração da pessoa ofendida e não ser um simples ato de justiça comutativa, pressupõe duas atitudes exigentes: reconhecer a culpa e pedir perdão... É deste reconhecimento honesto do mal causado ao irmão, e do sentimento profundo e sincero de que o amor foi ferido, que nasce o desejo de reparar» (ibid.).

188. Não se deve pensar que reconhecer o próprio pecado perante os outros seja algo degradante ou prejudicial para a nossa dignidade humana. Pelo contrário, é deixar de mentir a si mesmo, é reconhecer a própria história tal como ela é, marcada pelo pecado, sobretudo quando fizemos mal aos nossos irmãos: «Acusar-se a si mesmo faz parte da sabedoria cristã... Isto agrada ao Senhor, porque o Senhor recebe o coração contrito» (Homilia na Missa matutina na Casa Santa Marta, 06 de março de 2018).

189. Faz parte deste espírito de reparação o bom hábito de pedir perdão aos irmãos, que revela uma enorme nobreza no meio da nossa fragilidade. Pedir perdão é uma forma de curar as relações pois «reabre o diálogo e manifesta o desejo de restabelecer o vínculo da caridade fraterna... toca o coração do irmão, consola-o e inspira-o a aceitar o perdão pedido. Assim, se o irreparável não pode ser completamente reparado, o amor pode sempre renascer, tornando a ferida suportável» (Discurso aos participantes do Colóquio Internacional “Réparer l´irréparable”, 04 de maio de 2024).

190. Um coração capaz de compaixão pode crescer em fraternidade e solidariedade, porque «quem não chora retrocede, envelhece interiormente, ao passo que a pessoa que chega a uma oração mais simples e íntima, feita de adoração e comoção diante de Deus, amadurece. Prende-se cada vez menos a si mesma e mais a Cristo, e torna-se pobre em espírito. Deste modo sente-se mais próxima dos pobres, os prediletos de Deus» (Homilia na Missa Crismal, 28 de março de 2024). Por conseguinte, surge um autêntico espírito de reparação, pois «quem está compungido no coração, sente-se cada vez mais irmão de todos os pecadores do mundo, sente-se mais irmão, sem qualquer aparência de superioridade nem dureza de juízo, mas sempre com desejo de amar e reparar» (ibid.). Esta solidariedade gerada pela compunção torna, ao mesmo tempo, possível a reconciliação. A pessoa capaz de compunção, «em vez de se irritar e escandalizar pelo mal feito pelos irmãos, chora pelos pecados deles. Não se escandaliza. Cumpre-se uma espécie de reviravolta: a tendência natural de ser indulgente consigo mesmo e inflexível com os outros inverte-se e, pela graça de Deus, a pessoa torna-se exigente consigo mesma e misericordiosa com os outros» (ibid.).

A reparação: Um prolongamento do Coração de Cristo

191. Há outro modo complementar de entender a reparação, que nos permite colocá-la em uma relação ainda mais direta com o Coração de Cristo, sem excluir desta reparação o compromisso concreto com os irmãos, do qual falamos.

192. Em outro contexto, afirmei que Deus «de certa maneira, quis limitar-se a si mesmo» e que «muitas coisas que consideramos males, perigos ou fontes de sofrimento, na realidade fazem parte das dores de parto que nos estimulam a colaborar com o Criador» (Laudato si’, n. 80). A nossa cooperação pode permitir que o poder e o amor de Deus se difundam nas nossas vidas e no mundo, e a rejeição ou a indiferença podem impedi-lo. Algumas expressões bíblicas exprimem-no metaforicamente, como quando o Senhor grita: «Se te queres converter, Israel, volta para mim» (Jr 4,1). Ou quando diz, perante a rejeição do seu povo: «O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhas entranhas» (Os 11,8).

193. Embora não seja possível falar de um novo sofrimento de Cristo glorioso, «o Mistério Pascal de Cristo... e tudo o que Cristo é, tudo o que fez e sofreu por todos os homens, participa da eternidade divina, e assim transcende todos os tempos e em todos se torna presente» (Catecismo da Igreja Católica, n. 1085). Deste modo, podemos dizer que Ele mesmo aceitou limitar a glória expansiva da sua Ressurreição, conter a difusão do seu imenso e ardente amor para dar lugar à nossa livre cooperação com o seu Coração. Isto é tão real que a nossa recusa o detém nesse impulso de doação, tal como a nossa confiança e a oferta de nós mesmos abre um espaço, oferece um canal desimpedido para a efusão do seu amor. A nossa rejeição ou indiferença limitam os efeitos do seu poder e a fecundidade do seu amor em nós. Se Ele não encontra em mim confiança e abertura, o seu amor fica privado - porque Ele mesmo assim o quis - do seu prolongamento na minha vida, que é única e irrepetível, e no mundo onde me chama a torná-lo presente. Isso não vem da sua fragilidade, mas da sua liberdade infinita, do seu poder paradoxal e da perfeição do seu amor por cada um de nós. Quando a onipotência de Deus se manifesta na fraqueza da nossa liberdade, «só a fé pode descobri-la» (ibid., n. 268).

194. Com efeito, Santa Margarida conta que, em uma das manifestações de Cristo, Ele lhe falou do seu Coração apaixonado de amor por nós, que «não podendo já conter em si as chamas da sua ardente caridade, precisa derramá-las» (Autobiografia, n. 53: op. cit., 57). Uma vez que o Senhor todo-poderoso, na sua liberdade divina, quis ter necessidade de nós, a reparação entende-se como o remover dos obstáculos que colocamos à expansão do amor de Cristo no mundo, com as nossas faltas de confiança, gratidão e entrega.

A oferta ao Amor

195. Para refletir melhor sobre este mistério, vem novamente em auxílio a luminosa espiritualidade de Santa Teresinha do Menino Jesus. Ela sabia que algumas pessoas tinham desenvolvido uma forma extrema de reparação, com a boa vontade de doar-se pelos outros, que consistia em oferecer-se como uma espécie de “para-raios” a fim de que a justiça divina se realizasse: «Pensei nas almas que se oferecem como vítimas à Justiça de Deus, a fim de desviarem e de atraírem sobre elas os castigos reservados aos culpados» (Santa Teresinha do Menino Jesus, Ms A, 84 rº: Obras completas, Avessadas, 1996, 214-215). Mas, por muito admirável que tal oferta possa parecer, ela não está muito convencida disso: «Estava longe de me sentir impelida a fazê-lo» (ibid., 215). Esta insistência na justiça divina acaba por levar a pensar que o sacrifício de Cristo fosse incompleto ou parcialmente eficaz, ou que a sua misericórdia não fosse suficientemente intensa.

196. Com a sua intuição espiritual, Santa Teresinha do Menino Jesus descobriu que existe outra maneira de se oferecer, na qual não é necessário saciar a justiça divina, mas deixar o amor infinito do Senhor difundir-se sem entraves: «Ó meu Deus! O vosso Amor desprezado vai ficar no vosso Coração? Estou convencida de que se encontrásseis almas que se oferecessem como vítimas de holocausto ao vosso Amor, as consumiríeis rapidamente. Creio que ficaríeis contente por não reprimirdes as ondas de infinita ternura que há em Vós» (ibid.).

197. Não há nada a acrescentar ao único sacrifício redentor de Cristo, mas é verdade que a recusa da nossa liberdade não permite que o Coração de Cristo espalhe as suas “ondas de infinita ternura” neste mundo. E isto porque o próprio Senhor quer respeitar esta possibilidade. Foi isto, mais do que a justiça divina, que inquietou o coração de Santa Teresinha do Menino Jesus, pois para ela a justiça só pode ser compreendida à luz do amor. Vimos que ela adorava todas as perfeições divinas através da misericórdia, e assim as via transfiguradas, radiantes de amor, dizendo: «A própria Justiça (e talvez mais ainda que qualquer outra) me parece revestida de amor» (Ms A, 83 vº: op. cit., 214. cf. Carta 226: Ao Padre Roulland, 09 de maio de 1897: op. cit., 606-610).

198. Deste modo nasce o seu ato de oferecimento, não à justiça divina, mas ao Amor misericordioso: «Ofereço-me como vítima de holocausto ao vosso amor misericordioso, suplicando-vos que me consumais sem cessar, deixando transbordar para a minha alma as ondas de ternura infinita que estão encerradas em Vós, e que assim eu me torne mártir do vosso Amor, ó meu Deus!» (Oração 6: Oferecimento de mim mesma como Vítima de Holocausto ao Amor Misericordioso de Deus, 2 rº-2 vº: op. cit., 1078). É importante notar que não se trata apenas de deixar que o Coração de Cristo difunda a beleza do seu amor no nosso coração, através de uma confiança total, mas também que, através da própria vida, chegue aos outros e transforme o mundo: «No coração da Igreja, minha Mãe, eu serei o Amor... assim o meu sonho será realizado» (Ms B, 3 vº: op. cit., 230). Os dois aspectos estão inseparavelmente ligados.

199. O Senhor aceitou a sua oferta. Com efeito, algum tempo depois, ela mesma exprimiu um amor intenso pelos outros, afirmando que este provinha do Coração de Cristo que se prolongava através dela. Assim, escrevia a sua irmã Leônia: «Amo-te mil vezes mais ternamente do que habitualmente se amam as irmãs, visto que posso amar-te com o Coração do nosso Celeste Esposo» (Carta 186: A Leônia, 11 de abril de 1896: op. cit., 549). E mais tarde, escreveu a Maurice Bellière: «Como eu queria fazer-vos compreender a ternura do Coração de Jesus, o que Ele espera de vós!» (Carta 258: Ao Padre Bellière, 18 de julho de 1897: op. cit., 557).

Integridade e harmonia

200. Irmãs e irmãos, proponho que desenvolvamos esta forma de reparação, que é, em última análise, oferecer ao Coração de Cristo uma nova possibilidade de difundir neste mundo as chamas da sua ternura ardente. Se é verdade que a reparação implica o desejo de «desagravar o Amor incriado da injustiça que lhe infligem tantas negligências, e esquecimentos e injúrias» (Miserentissimus Redemptor, n. 6), o modo mais adequado é que o nosso amor, em troca daqueles momentos em que foi rejeitado ou negado, dê ao Senhor a possibilidade de se dilatar. Isto acontece se o nosso amor ultrapassa a mera “consolação” a Cristo, de que falamos no capítulo anterior, e se transforma em atos de amor fraterno com os quais curamos as feridas da Igreja e do mundo. Deste modo, oferecemos novas expressões da força restauradora do Coração de Cristo.

201. As renúncias e os sofrimentos exigidos por estes atos de amor ao próximo nos unem à Paixão de Cristo, e sofrendo com Cristo «nesta mística crucificação da qual fala o Apóstolo, com ainda maior abundância receberemos, para nós e para os outros, frutos de propiciação e de indulgência» (ibid., n. 11). Só Cristo salva pela sua entrega na cruz por nós, só Ele redime, «pois há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens, um homem: Cristo Jesus, que se entregou a si mesmo como resgate por todos» (1Tm 2,5-6). A reparação que oferecemos é uma participação, que aceitamos livremente, no seu amor redentor e no seu único sacrifício. Assim, completamos na nossa carne «o que falta às tribulações de Cristo, pelo seu Corpo, que é a Igreja» (Cl 1,24) e é o próprio Cristo que prolonga através de nós os efeitos da sua doação total no amor.

202. Os sofrimentos têm muitas vezes a ver com o nosso ego ferido, mas é precisamente a humildade do Coração de Cristo que nos indica o caminho do abaixamento. Deus quis vir até nós humilhando-se, fazendo-se pequeno. Já o Antigo Testamento nos ensina isso, através das várias metáforas que mostram um Deus que entra na pequenez da história e se deixa rejeitar pelo seu povo. O seu amor mistura-se com a vida quotidiana do povo amado e torna-se mendigo de uma resposta, como se pedisse licença para mostrar a sua glória. Por outro lado, «talvez uma só vez, com palavras suas, tenha o Senhor Jesus apelado para o seu coração. E salientou este único traço: “mansidão e humildade”. Como se dissesse que só por este caminho quer conquistar o homem» (São João Paulo II, Audiência Geral, 20 de junho de 1979). Quando Cristo disse: «Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração» (Mt 11,29), indicou que «para se exprimir necessita da nossa pequenez, do nosso abaixamento» (Francisco, Homilia na Missa matutina na Casa Santa Marta, 27 de junho de 2014).

Ícone do Sagrado Coração de Jesus

203. No que dissemos, é importante notar vários aspectos inseparáveis, porque estas ações de amor ao próximo, com todas as renúncias, abnegações, sofrimentos e fadigas que implicam, cumprem esta função quando são alimentadas pela caridade do próprio Cristo. Ele permite-nos amar como Ele amou e, assim, Ele mesmo ama e serve através de nós. Se, por um lado, parece apequenar-se, aniquilar-se, porque quis manifestar o seu amor mediante os nossos gestos, por outro lado, nas mais simples obras de misericórdia, o seu Coração é glorificado e manifesta toda a sua grandeza. Um coração humano que dá espaço ao amor de Cristo através de uma confiança total e o deixa expandir-se na sua própria vida com o seu fogo, torna-se capaz de amar os outros como Cristo, tornando-se pequeno e próximo de todos. Assim Cristo sacia a sua sede e espalha gloriosamente, em nós e através de nós, as chamas da sua ternura ardente. Reparemos na bela harmonia que existe em tudo isto.

204. Finalmente, para compreender esta devoção em toda a sua riqueza, retomando o que dissemos sobre a sua dimensão trinitária, é necessário acrescentar que a reparação de Cristo enquanto ser humano é oferecida ao Pai por obra do Espírito Santo em nós. Portanto, a nossa reparação ao Coração de Cristo dirige-se, em última análise, ao Pai, que se compraz em ver-nos unidos a Cristo quando nos oferecemos por Ele, com Ele e n’Ele.

Fazer o mundo enamorar-se

205. A proposta cristã é atrativa quando pode ser vivida e manifestada na sua integralidade: não como um simples refúgio em sentimentos religiosos ou em ritos faustosos. Que culto seria o de Cristo se nos contentássemos com uma relação individual desinteressada em ajudar os outros a sofrer menos e a viver melhor? Poderá agradar ao Coração que tanto amou se nos mantivermos em uma experiência religiosa íntima, sem consequências fraternas e sociais? Sejamos honestos e leiamos a Palavra de Deus na sua inteireza. Por isso mesmo dizemos que não se trata sequer de uma promoção social desprovida de significado religioso, que no fundo seria querer para o ser humano menos do que aquilo que Deus lhe quer dar. É por isso que temos de concluir este capítulo recordando a dimensão missionária do nosso amor ao Coração de Cristo.

206. São João Paulo II, além de falar da dimensão social da devoção ao Coração de Cristo, referiu-se à «reparação, que é a cooperação apostólica para a salvação do mundo» (Mensagem por ocasião do centenário da consagração do gênero humano ao divino Coração de Jesus, Varsóvia, 11 de junho de 1999). Do mesmo modo, a consagração ao Coração de Cristo «deve ser aproximada à ação missionária da própria Igreja, porque responde ao desejo do Coração de Jesus de propagar no mundo, através dos membros do seu Corpo, a sua dedicação total ao Reino» (ibid.). Por conseguinte, através dos cristãos, «o amor se difundirá no coração dos homens, para que se construa o Corpo de Cristo que é a Igreja e se edifique uma sociedade de justiça, de paz e de fraternidade» (Carta a Dom Louis-Marie Billé, Arcebispo de Lião, por ocasião da peregrinação a Paray-le-Monial, 04 de junho de 1999).

207. O prolongamento das chamas de amor do Coração de Cristo ocorre também na obra missionária da Igreja, que leva o anúncio do amor de Deus manifestado em Cristo. São Vicente de Paulo ensinou-o muito bem quando convidou os seus discípulos a pedir ao Senhor «esse coração, esse coração que nos faz ir a toda a parte, esse coração do Filho de Deus, o coração de nosso Senhor, que nos dispõe a ir como Ele iria... e nos envia como enviou-lhes [os Apóstolos], para levar o seu fogo a toda a parte» (Conferências aos Missionários, 22 de agosto de 1655. in: São Vicente de Paulo, op. cit., t. 11/3, 190).

208. São Paulo VI, dirigindo-se às Congregações que propagavam a devoção ao Sagrado Coração, recordava que «o empenho pastoral e o ardor missionário serão intensamente inflamados quando os sacerdotes e os fiéis, para difundir a glória de Deus, e seguindo o exemplo da caridade eterna que Cristo nos mostrou, orientarem os seus esforços para comunicar a todos os homens as riquezas insondáveis de Cristo» (Carta Diserti interpretes, 25 de maio de 1965: Enchiridion della Vita Consacrata, Bolonha/Milão, 2001, n. 3809). À luz do Sagrado Coração, a missão torna-se uma questão de amor, e o maior risco desta missão é que se digam e façam muitas coisas, mas não se consiga promover o encontro feliz com o amor de Cristo que abraça e salva.

209. A missão, entendida a partir da irradiação do amor do Coração de Cristo, requer missionários apaixonados, que se deixem cativar por Cristo e que inevitavelmente transmitam esse amor que mudou as suas vidas. Por isso, custa-lhes perder tempo a discutir questões secundárias ou a impor verdades e regras, porque a sua principal preocupação é comunicar o que vivem e, sobretudo, que os outros percebam a bondade e a beleza do Amado através dos seus pobres esforços. Não é isto que acontece com qualquer enamorado? Vale a pena tomar como exemplo as palavras com que Dante Alighieri, enamorado, tentou exprimir esta lógica:
«Pensando em todo o seu valor
tão doce se me faz sentir o Amor,
que se agora eu não perder veemência,
falando tornarei enamorada a gente»
(Vida Nova, XIX, 5-6. Trad. de Carlos Eduardo Soveral, Lisboa, 1993, 39).

210. Falar de Cristo, pelo testemunho ou pela palavra, de tal modo que os outros não tenham de fazer um grande esforço para amá-lo, é o maior desejo de um missionário da alma. Não há proselitismo nesta dinâmica de amor, as palavras do enamorado não perturbam, não impõem, não forçam, apenas levam os outros a se perguntarem como é possível tal amor. Com o maior respeito pela liberdade e pela dignidade do outro, o enamorado limita-se a esperar que lhe seja permitido narrar esta amizade que preenche a sua vida.

211. Sem descurar a prudência e o respeito, Cristo pede-te que não tenhas vergonha de reconhecer a tua amizade com Ele. Pede-te que tenhas a coragem de dizer aos outros que foi bom para ti tê-lo encontrado: «Todo aquele que se declarar por mim, diante dos homens, também Eu me declararei por ele diante do meu Pai que está no Céu» (Mt 10,32). Mas para o coração enamorado não é uma obrigação, é uma necessidade difícil de conter: «Ai de mim, se eu não evangelizar!» (1Cor 9,16). «No meu coração, a sua palavra era um fogo devorador, encerrado nos meus ossos. Esforçava-me por contê-lo, mas não podia» (Jr 20,9).

Em comunhão de serviço

212. Não se deve pensar nesta missão de comunicar Cristo como se fosse algo apenas entre mim e Ele. Ela é vivida em comunhão com a própria comunidade e com a Igreja. Se nos afastarmos da comunidade, afastamo-nos também de Jesus. Se a esquecermos e não nos preocuparmos com ela, a nossa amizade com Jesus arrefecerá. Nunca se deve esquecer este segredo: o amor pelos irmãos e irmãs da própria comunidade - religiosa, paroquial, diocesana, etc. - é como o combustível que alimenta a nossa amizade com Jesus. Os atos de amor para com os irmãos e irmãs da comunidade podem ser a melhor ou, por vezes, a única forma possível de exprimir aos outros o amor de Jesus Cristo. O próprio Senhor o disse: «Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo 13,35).

213. É um amor que se torna serviço comunitário. Não me canso de recordar que Jesus o disse com grande clareza: «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25,40). Ele propõe-te que o encontres também aí, em cada irmão e em cada irmã, especialmente nos mais pobres, desprezados e abandonados da sociedade. Que lindo encontro!

214. Portanto, se nos dedicarmos a ajudar alguém, isso não significa que nos esquecemos de Jesus. Pelo contrário, encontramo-lo de outra forma. E quando tentamos levantar e curar alguém, Jesus está lá, ao nosso lado. Com efeito, é bom recordar que, quando enviou os seus discípulos em missão, «o Senhor cooperava com eles» (Mc 16,20). Ele está lá, trabalhando, lutando e fazendo o bem conosco. De uma forma misteriosa, é o seu amor que se manifesta através do nosso serviço, é Ele mesmo que fala ao mundo naquela linguagem que por vezes não tem palavras.

215. Ele te envia a fazer o bem e te impele a partir do teu interior. Para isso, chama-te com uma vocação de serviço: farás o bem como médico, como mãe, como professor, como sacerdote. Onde quer que estejas, poderás sentir que Ele te chama e te envia para viveres esta missão na terra. Ele mesmo nos diz: «Envio-vos» (Lc 10,3). Isto faz parte da amizade com Ele. Portanto, para que essa amizade amadureça, é preciso que te deixes enviar por Ele para cumprir uma missão neste mundo, com confiança, com generosidade, com liberdade, sem medo. Se te fechares no teu conforto, isso não te dará segurança; os medos, as tristezas e as angústias aparecerão sempre. Quem não cumpre a sua missão nesta terra não pode ser feliz, fica frustrado. Por isso, deixa-te enviar, deixa-te conduzir por Ele para onde Ele quiser. Não te esqueças que Ele vai contigo. Não te atira para o abismo nem te deixa entregue a ti mesmo. Ele conduz-te e acompanha-te. Ele prometeu e cumpre: «Eu estarei sempre convosco» (Mt 28,20).

216. De algum modo tens de ser missionário, como o foram os Apóstolos de Jesus e os primeiros discípulos, que foram anunciar o amor de Deus, que saíram para dizer que Cristo está vivo e merece ser conhecido. Santa Teresinha do Menino Jesus viveu-o como parte inseparável da sua oferta ao Amor misericordioso: «Queria dar de beber ao meu Bem-Amado e sentia-me eu mesma devorada pela sede de almas» (Santa Teresinha do Menino Jesus, Ms A, 45 vº: Obras completas, Avessadas, 1996, 143). Esta é também a tua missão. Cada um cumpre-a à sua maneira, e verás como podes ser missionário. Jesus merece-o. Se tiveres coragem, Ele te iluminará, acompanhará e fortalecerá, e viverás uma experiência preciosa que te fará muito bem. Não importa se conseguirá ver algum resultado; deixa isso para o Senhor que trabalha no segredo dos corações, mas não deixes de viver a alegria de tentar comunicar o amor de Cristo aos outros.

Conclusão

217. O que está expresso neste documento permite-nos descobrir que o que está escrito nas Encíclicas sociais Laudato si’ e Fratelli tutti não é alheio ao nosso encontro com o amor de Jesus Cristo, pois bebendo desse amor tornamo-nos capazes de tecer laços fraternos, de reconhecer a dignidade de cada ser humano e de cuidar juntos da nossa casa comum.

218. Hoje tudo se compra e se paga, e parece que o próprio sentido da dignidade depende das coisas que se podem obter com o poder do dinheiro. Somos instigados a acumular, a consumir e a nos distrairmos, aprisionados por um sistema degradante que não nos permite olhar para além das nossas necessidades imediatas e mesquinhas. O amor de Cristo está fora desta engrenagem perversa e só Ele pode libertar-nos desta febre onde já não há lugar para o amor gratuito. Ele é capaz de dar coração a esta terra e reinventar o amor lá onde pensamos que a capacidade de amar esteja morta para sempre.

219. A Igreja também precisa dele, para não substituir o amor de Cristo por estruturas ultrapassadas, obsessões de outros tempos, adoração da própria mentalidade, fanatismos de todo o gênero que acabam por ocupar o lugar daquele amor gratuito de Deus que liberta, vivifica, alegra o coração e alimenta as comunidades. Da ferida do lado de Cristo continua a correr aquele rio que nunca se esgota, que não passa, que se oferece sempre de novo a quem quer amar. Só o seu amor tornará possível uma nova humanidade.

220. Peço ao Senhor Jesus Cristo que, para todos nós, do seu Coração santo brotem rios de água viva para curar as feridas que nos infligimos, para reforçar a nossa capacidade de amar e servir, para nos impulsionar a fim de aprendermos a caminhar juntos em direção a um mundo justo, solidário e fraterno. Isto até que, com alegria, celebremos unidos o banquete do Reino celeste. Aí estará Cristo Ressuscitado, harmonizando todas as nossas diferenças com a luz que brota incessantemente do seu Coração aberto. Bendito seja!

Dado em Roma, junto de São Pedro, a 24 de outubro do ano de 2024, décimo segundo do meu Pontificado.

FRANCISCO


Fonte: Santa Sé.

Observação: Para facilitar a leitura neste formato do blog, unimos as notas de rodapé mais breves ao corpo do texto.

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