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quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Encíclica Dilexit nos (1)

No dia 24 de outubro de 2024 o Papa Francisco promulgou a Encíclica Dilexit nos (Amou-nos) sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus.

Dada a estreita relação da devoção ao Sagrado Coração de Jesus com a Liturgia e a extensão do documento (220 parágrafos), publicaremos seu texto na íntegra dividido em três partes. Confira  nesta primeira parte os nn. 1-77:

Papa Francisco
Encíclica Dilexit nos
Sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus

1. «Amou-nos», diz São Paulo referindo-se a Cristo (Rm 8,37), para nos ajudar a descobrir que nada «será capaz de nos separar» desse amor (v. 39). Paulo afirmava-o com firme certeza, porque o próprio Cristo tinha garantido aos seus discípulos:  «Eu vos amei» (Jo 15,9.12). Disse também: «Chamei-vos amigos» (v. 15). O seu coração aberto precede-nos e espera-nos incondicionalmente, sem exigir qualquer pré-requisito para nos amar e oferecer a sua amizade: Ele amou-nos primeiro (cf. 1Jo 4,10). Graças a Jesus, «conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele» (v. 16).

Sagrado Coração de Jesus
(Pompeo Batoni)

Capítulo I: A importância do coração

2. Para exprimir o amor de Jesus Cristo recorre-se frequentemente ao símbolo do coração. Há quem se interrogue se isto atualmente tenha um significado válido. Porém, é necessário recuperar a importância do coração quando nos assalta a tentação da superficialidade, de viver apressadamente, sem saber bem para quê, de nos tornarmos consumistas insaciáveis e escravos na engrenagem de um mercado que não se interessa pelo sentido da nossa existência [1].

O que entendemos quando dizemos “coração”?

3. No grego clássico profano, o termo kardía designa a parte mais íntima dos seres humanos, dos animais e das plantas. Em Homero, indica não só o centro corpóreo, mas também a alma e o centro espiritual do ser humano. Na Ilíada, o pensamento e o sentimento pertencem ao coração e estão muito próximos um do outro (cf. canto XXI, verso 441). O coração aparece como o centro do desejo e o lugar onde são forjadas as decisões importantes de uma pessoa (cf. canto X, verso 244). Em Platão, o coração assume, de certa forma, uma função “sintetizante” do que é racional e das tendências de cada pessoa, uma vez que tanto o comando das faculdades superiores como as paixões se transmitem através das veias que convergem no coração (cf. Timeu, § 65c-d; § 70). Assim, desde a Antiguidade advertimos a importância de considerar o ser humano não como uma soma de diferentes capacidades, mas como um complexo anímico-corpóreo com um centro unificador que dá a tudo o que a pessoa experimenta um substrato de sentido e orientação.

4. A Bíblia diz que «a Palavra de Deus é viva, eficaz... e discerne os sentimentos e as intenções do coração» (Hb 4,12). Deste modo, fala-nos de um núcleo, o coração, que se esconde por trás de todas as aparências, e até mesmo de pensamentos superficiais que nos confundem. Os discípulos de Emaús, na sua misteriosa caminhada com Cristo Ressuscitado, viviam um momento de angústia, confusão, desespero, desilusão. Mas, para além disso e apesar de tudo, acontecia algo no seu íntimo: «Não nos ardia o coração quando Ele nos falava pelo caminho?» (Lc 24,32).

5. O coração é igualmente o lugar da sinceridade, onde não se pode enganar ou dissimular. Costuma indicar as verdadeiras intenções, o que se pensa, se acredita e se quer realmente, os “segredos” que não se contam a ninguém, em suma, a verdade nua e crua de cada um. O que não é aparência ou mentira, mas autêntico, real, inteiramente “pessoal”. É por isso que Sansão, que não havia revelado a Dalila o segredo da sua força, foi interpelado por ela deste modo: «Como podes dizer “Amo-te”, se o teu coração não está comigo?» (Jz 16,15). Só quando lhe revelou o seu segredo tão escondido é que ela «viu que ele lhe abrira todo o coração» (v. 18).

6. Frequentemente esta verdade íntima de cada pessoa está escondida debaixo de muita superficialidade, o que torna difícil o autoconhecimento e ainda mais difícil conhecer o outro: «Nada mais enganador que o coração, tantas vezes perverso: quem o pode conhecer?» (Jr 17,9). Compreendemos assim porque o Livro dos Provérbios nos exorta: «Vela com todo o cuidado sobre o teu coração, porque dele jorram as fontes da vida. Preserva-te da linguagem enganosa, afasta de ti a maledicência» (Pr 4,23-24). A mera aparência, a dissimulação e o engano danificam e pervertem o coração. Para além das muitas tentativas de mostrar ou exprimir o que não somos, é no coração que se decide tudo: ali não conta o que mostramos exteriormente ou o que ocultamos, ali conta o que somos. E esta é a base de qualquer projeto sólido para a nossa vida, porque nada que valha a pena pode ser construído sem o coração. As aparências e as mentiras só trazem vazio.

7. Como metáfora, quero recordar algo que já contei em outra ocasião: «Recordo que no carnaval, quando éramos crianças, a avó nos preparava doces. Ela fazia uma massa muito fina, depois colocava-a no azeite e aquela massa crescia e quando nós a comíamos, estava vazia. Aqueles doces em dialeto chamavam-se “mentirinhas”. E era precisamente a avó quem explicava a razão: aqueles doces “são como as mentiras, parecem grandes, mas dentro não têm nada, não há nada verdadeiro, não há substância alguma”» (Homilia na Missa matutina na Casa Santa Marta, 14 de outubro de 2016).

8. Em vez de procurar uma satisfação superficial e de representar um papel diante dos outros, é melhor deixar que surjam perguntas decisivas: quem realmente sou? O que procuro? Que sentido quero dar à vida, às minhas escolhas e ações? Por que razão e para que fim estou neste mundo? Como vou querer avaliar a minha existência quando ela terminar? Que sentido quero dar a tudo o que vivo? Quem quero ser perante os outros? Quem sou diante de Deus? Estas perguntas conduzem-me ao meu coração.

Regressar ao coração

9. Neste mundo líquido é necessário voltar a falar do coração; indicar onde cada pessoa, de qualquer classe e condição, faz a própria síntese; onde os seres concretos encontram a fonte e a raiz de todas as suas outras potências, convicções, paixões e escolhas. Movemo-nos, porém, em sociedades de consumidores em série, preocupados só com o agora e dominados pelos ritmos e ruídos da tecnologia, sem muita paciência para os processos que a interioridade exige. Na sociedade atual, o ser humano «corre o perigo de se desorientar do centro de si mesmo» (São João Paulo II, Ângelus, 02 de julho de 2000). «O homem contemporâneo encontra-se com frequência transtornado, dividido, quase privado de um princípio interior que crie unidade e harmonia no seu ser e no seu agir. Modelos de comportamento infelizmente bastante difundidos, exaltam a sua dimensão racional-tecnológica, ou, ao contrário, a instintiva» (Audiência Geral, 08 de junho de 1994). Falta o coração.

10. Ora, o problema da sociedade líquida é atual, mas a desvalorização do centro íntimo do homem - o coração - vem de longe: encontramo-la já no racionalismo grego pré-cristão, no idealismo pós-cristão ou no materialismo nas suas diversas formas. O coração teve pouco espaço na antropologia e é uma noção estranha ao grande pensamento filosófico. Preferiram-se outros conceitos, como a razão, a vontade ou a liberdade. O seu significado permanece impreciso e não lhe foi atribuído um lugar específico na vida humana. Talvez porque não fosse fácil colocá-lo entre as ideias “claras e distintas” ou porque o conhecimento de si mesmo supõe dificuldade: parece que a realidade mais íntima é também a mais afastada do nosso conhecimento. Talvez porque o encontro com o outro não se consolida como caminho para nos encontrarmos a nós mesmos, já que o pensamento conduz, mais uma vez, a um individualismo doentio. Muitos, para construir os seus sistemas de pensamento, sentiram-se seguros no âmbito mais controlável da inteligência e da vontade. E, ao não se encontrar um lugar para o coração como algo distinto das faculdades e das paixões humanas consideradas separadamente, também não se desenvolveu suficientemente a ideia de um centro pessoal, no qual a única realidade que pode unificar tudo é, em última análise, o amor.

11. Ao não se dar o devido valor ao coração, desvaloriza-se também o que significa falar a partir do coração, agir com o coração, amadurecer e curar o coração. Quando não se consideram as especificidades do coração, perdemos as respostas que a inteligência por si só não pode dar, perdemos o encontro com os outros, perdemos a poesia. E perdemos a história e as nossas histórias, porque a verdadeira aventura pessoal é aquela que se constrói a partir do coração. No fim da vida, só isto contará.

12. É preciso afirmar que temos um coração e que o nosso coração coexiste com outros corações que o ajudam a ser um “tu”. Como não podemos desenvolver longamente este tema, recorreremos ao personagem chamado Stavrogin, de um romance de Dostoiévski (Os Demônios, 1872). Romano Guardini aponta-o como a própria encarnação do mal, porque a sua principal característica é não possuir coração: «Stavrogin, porém, não possui coração. O seu espírito é, portanto, frio e vazio e o seu corpo intoxica-se de indolência e sensualidade “animalesca”. Não pode ir até junto dos outros homens nem estes podem chegar na realidade até ele. Porque é o coração que origina a proximidade; é pelo coração que me encontro junto dos outros e os outros estão igualmente junto de mim. Só o coração pode acolher, dar refúgio. A interioridade é o ato e esfera do coração. Stavrogin, porém, encontra-se longe... muito afastado também de si mesmo. O homem está em intimidade com o seu íntimo no coração, não no espírito. Estar em intimidade com o íntimo, no espírito, não é do domínio humano. Mas quando o coração não vive, o homem permanece estranho a si mesmo» (Romano Guardini, O mundo religioso de Dostoiévski, Lisboa, 1973, 232).

13. É necessário que todas as ações sejam colocadas sob o “controle político” do coração, que a agressividade e os desejos obsessivos sejam acalmados no bem maior que o coração lhes oferece e na força que ele tem contra os males; que a inteligência e a vontade sejam também postas ao seu serviço, sentindo e saboreando as verdades em vez de querer dominá-las, como algumas ciências tendem a fazer; que a vontade deseje o bem maior que o coração conhece, e que a imaginação e os sentimentos se deixem também moderar pelo bater do coração.

14. Em última análise, poderíamos dizer que eu sou o meu coração, porque é ele que me distingue, que me molda na minha identidade espiritual e que me põe em comunhão com as outras pessoas. O algoritmo que atua no mundo digital mostra que os nossos pensamentos e as decisões da nossa vontade são muito mais “standard” do que pensávamos. São facilmente previsíveis e manipuláveis. Não é o caso do coração.

15. Trata-se de uma palavra importante para a filosofia e a teologia, que procuram alcançar uma síntese integral. Na verdade, a palavra “coração” não pode ser explicada plenamente pela biologia, pela psicologia, pela antropologia ou por qualquer outra ciência. É uma daquelas palavras originais que «significam realidades que dizem respeito ao homem no seu conjunto enquanto pessoa corpóreo-espiritual» (Karl Rahner, Einige Thesen zur Theologie der Herz-Jesu-Verehrung. in: Schriften zur Theologie III, Einsiedeln, 1956, 392). Assim, o biólogo não é mais realista quando fala do coração, porque vê apenas um aspecto dele, e o todo não é menos real, pelo contrário, o é ainda mais. Tampouco uma linguagem abstrata poderia ter o mesmo significado concreto e, simultaneamente, integrador. Se o “coração” leva ao mais íntimo da nossa pessoa, permite também que nos reconheçamos na nossa integralidade e não apenas em um mero aspecto isolado.

16. Por outro lado, este poder único do coração ajuda-nos a compreender porque se diz que quando apreendemos uma realidade com o coração podemos conhecê-la melhor e mais plenamente. Isto conduz-nos inevitavelmente ao amor de que esse coração é capaz, porque «o mais íntimo da realidade é amor» (ibid., 393). Para Heidegger, segundo a interpretação de um pensador contemporâneo, a filosofia não começa com um conceito puro ou uma certeza, mas com uma comoção: «O pensamento deve ser comovido antes de trabalhar com conceitos, ou enquanto trabalha com eles. Sem a comoção, o pensamento não pode começar. A primeira imagem mental seria a pele arrepiada. É a comoção que primeiramente dá o que pensar e perguntar. A filosofia ocorre sempre em uma tonalidade afetiva fundamental (Stimmung)» (Han Byung-Chul, O coração de Heidegger: Sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger, Petrópolis, 2023, 93-94). É aqui que surge o coração, que «guarda as tonalidades afetivas fundamentais... trabalha como “guardião da tonalidade afetiva fundamental”. O “coração” ouve não-metaforicamente a “voz silenciosa” do ser ao se deixar afinar e determinar por ela» (ibid., 151).

O coração que une os fragmentos

17. Ao mesmo tempo, o coração torna possível qualquer vínculo autêntico, porque uma relação que não é construída com o coração não pode ultrapassar a fragmentação do individualismo. Restariam apenas duas mônadas que se justapõem, mas não se ligam verdadeiramente. Uma sociedade cada vez mais dominada pelo narcisismo e pela autorreferencialidade é uma sociedade “anti-coração”. E, por fim, chega-se à “perda do desejo”, porque o outro desaparece do horizonte e nos fechamos no nosso egoísmo, sem capacidade para relações saudáveis (cf. idem, Agonia do Eros, Petrópolis, 2017). Como resultado, nos tornamos incapazes de acolher Deus. Como diria Heidegger, para receber o divino é preciso construir uma «casa de hóspedes» (cf. Martin Heidegger, Explicações da Poesia de Hölderlin, Brasília, 2013, 136).

18. Vemos assim como no coração de cada pessoa se produz esta ligação paradoxal entre a valorização do próprio ser e a abertura aos outros, entre o encontro muito pessoal consigo mesmo e o dom de si aos outros. Só nos tornamos nós mesmos quando adquirimos a capacidade de reconhecer o outro, e só encontra o outro quem é capaz de reconhecer e aceitar a própria identidade.

19. O coração também é capaz de unificar e harmonizar a própria história pessoal, que parece fragmentada em mil pedaços, mas na qual tudo pode adquirir sentido. É isso que o Evangelho exprime no olhar de Maria, que olhava com o coração. Ela foi capaz de dialogar com as experiências que conservava, meditando-as no seu coração, dando-lhes tempo: simbolizando-as e guardando-as no seu interior para recordá-las. No Evangelho, a melhor expressão do que pensa o coração é oferecida por duas passagens de São Lucas que nos dizem que Maria “guardava (synetérei) todas estas coisas, ponderando-as (symbállousa) no seu coração” (cf. Lc 2,19.51). O verbo symbállein (do qual provém a palavra “símbolo”) significa ponderar, unir duas coisas na mente, examinar-se, refletir, dialogar consigo mesmo. Em Lc 2,51 dietérei é “conservava com cuidado”, e o que ela guardava não era apenas “a cena” que via, mas também o que ainda não compreendia, conservando-o presente e vivo, na esperança de unir tudo no seu coração.

Vitral com a imagem do Coração de Jesus

20. Na era da inteligência artificial não podemos esquecer que a poesia e o amor são necessários para salvar o humano. O que nenhum algoritmo conseguirá abarcar é, por exemplo, aquele momento de infância que se recorda com ternura e que continua acontecendo em todos os cantos do planeta, mesmo com o passar dos anos. Penso na utilização do garfo para selar as bordas daquelas empanadas caseiras que preparávamos com as nossas mães ou avós. É aquele momento de aprendizagem culinária, a meio caminho entre a brincadeira e a idade adulta, em que assumimos a responsabilidade do trabalho para ajudar o outro. Tal como o exemplo do garfo, poderia citar milhares de pequenos pormenores que sustentam a biografia de cada um: rir com uma piada, fazer um desenho em contraluz em uma janela, jogar o primeiro jogo de futebol com uma “bola de trapos”, cuidar de lagartas em uma caixa de sapatos, secar uma flor entre as páginas de um livro, cuidar de um pássaro que caiu do ninho, formular um desejo ao despetalar uma margarida. Todos estes pequenos pormenores, o ordinário-extraordinário, nunca poderão estar entre os algoritmos. Porque o garfo, as piadas, a janela, a bola, a caixa de sapatos, o livro, o pássaro, a flor... são sustentados pela ternura preservada nas memórias do coração.

21. Este núcleo de cada ser humano, o seu centro mais íntimo, não é o núcleo da alma, mas da pessoa inteira na sua identidade única, que é alma e corpo. Tudo está unificado no coração, que pode ser a sede do amor com todos os seus componentes espirituais, psíquicos e também físicos. Em última análise, se aí reina o amor, a pessoa realiza a sua identidade de forma plena e luminosa, porque cada ser humano é criado sobretudo para o amor; é feito nas suas fibras mais profundas para amar e ser amado.

22. É por esta razão que, assistindo a sucessivas novas guerras, com a cumplicidade, a tolerância ou a indiferença de outros países, ou com simples lutas de poder em torno de interesses de parte, podemos pensar que a sociedade mundial está perdendo o seu coração. Basta olhar e ouvir - nos diferentes lados do confronto - as idosas que são prisioneiras destes conflitos devastadores. É desolador vê-las chorar os netos assassinados, ou escutá-las desejar a própria morte por terem perdido a casa onde sempre viveram. Elas, que muitas vezes foram modelos de força e resiliência ao longo de vidas difíceis e sacrificadas, chegam à última fase da sua existência e não recebem uma merecida paz, mas sim angústia, medo e indignação. Descarregar a culpa nos outros não resolve este drama vergonhoso. Ver as avós chorando sem que isso se torne intolerável é sinal de um mundo sem coração.

23. Quando alguém reflete, procura ou medita sobre o próprio ser e a sua identidade, ou analisa questões mais elevadas; quando pensa no sentido da própria vida e até mesmo procura Deus, e ainda quando sente o gosto de ter vislumbrado algo da verdade; todas estas reflexões exigem que se encontre o seu ponto culminante no amor. Amando, a pessoa sente que sabe porquê e para que vive. Assim, tudo converge para um estado de conexão e de harmonia. Por isso, diante do próprio mistério pessoal, talvez a pergunta mais decisiva que se possa fazer seja esta: tenho coração?

O fogo

24. Isto comporta consequências para a espiritualidade. Por exemplo, a teologia dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola tem como princípio o affectus. O discurso é construído sobre uma vontade fundamental - com toda a força do coração - que dá energia e recursos à tarefa de reorganizar a vida. As regras e as composições de lugar que Inácio põe em prática funcionam sobre um “fundamento” que é diferente delas: o desconhecido do coração. Michel de Certeau mostra como as “moções” de que fala Santo Inácio são as irrupções de uma vontade de Deus e de uma vontade do próprio coração que permanece distinta em relação à ordem manifesta. Algo de inesperado começa a falar no coração da pessoa, algo que surge do incognoscível, que abala a superfície do conhecido e se opõe a ele. É a origem de um novo “ordenamento da vida” a partir do coração. Não se trata de discursos racionais que devem ser postos em prática, passando-os para a vida, de modo a que a afetividade e a prática fossem simplesmente as consequências - dependentes - de um conhecimento adquirido (cf. Michel de Certeau, L’espace du désir ou le «fondement» des Exercices spirituels. in: Christus 77 (1973), 118-128).

25. Onde o filósofo detém o seu pensamento, o coração fiel ama, adora, pede perdão e oferece-se para servir no lugar que o Senhor, à escolha, lhe dá para segui-lo. Então percebe que é o “tu” de Deus e que pode ser um “eu” porque Deus é um “tu” para ele. Na realidade, somente o Senhor se dispõe a tratar-nos sempre - e para sempre - como um “tu”. Aceitar a sua amizade é uma questão de coração e constitui-nos como pessoas no sentido pleno da palavra.

26. São Boaventura dizia que, no final, se deve perguntar «não à luz, mas ao fogo» (Itinerarium mentis in Deum, VII, 6). E ensinava que «a fé está no intelecto, de tal modo que provoca o afeto. Por exemplo: saber que Cristo morreu por nós não permanece (somente) conhecimento, mas torna-se necessariamente afeto, amor» (Proemium in I Sent., q. 3). Nessa linha, São John Henry Newman tomou como lema a frase “Cor ad cor loquitur” [“O Coração fala ao coração”], porque, além de toda dialética, o Senhor salva-nos falando ao nosso coração a partir do seu Sagrado Coração. Esta mesma lógica fazia com que para ele, grande pensador, o lugar do encontro mais profundo consigo mesmo e com o Senhor não fosse a leitura ou a reflexão, mas o diálogo orante, de coração a coração, com Cristo vivo e presente. É por isso que Newman encontrava na Eucaristia o Coração de Jesus Cristo vivo, capaz de libertar, de dar sentido a cada momento e de derramar a verdadeira paz sobre o ser humano: «Ó Coração Sacratíssimo e Amorosíssimo de Jesus, estás escondido na Sagrada Eucaristia, e continuas a bater por nós... Eu te adoro, então, com todo o meu melhor amor e temor, com meu carinho fervoroso, com a minha vontade mais conquistada e resolvida. Ó meu Deus, quando tu te rebaixas a sofrer para (que eu possa) receber-te, para comer e beber a ti, e Tu por um tempo fazes a tua morada dentro de mim, faz meu coração bater com o teu Coração. Purifica-o de tudo o que é terreno, de tudo o que é orgulhoso e sensual, de tudo o que é duro e cruel, de toda a perversidade, de toda a desordem, de todo amortecimento. Então, encha-o de ti, que nem os acontecimentos do dia, nem as circunstâncias do tempo possam ter o poder de perturbá-lo, mas que em teu amor e temor possa ter paz» (Meditações e Devoções, São Paulo, 2016, 283).

27. Perante o Coração de Jesus vivo e presente, o nosso intelecto, iluminado pelo Espírito, compreende as palavras de Jesus. Assim, a nossa vontade põe-se em ação para praticá-las. Mas isso poderia permanecer como uma forma de moralismo autossuficiente. Ouvir, saborear e honrar o Senhor pertence ao coração. Só o coração é capaz de colocar as outras faculdades e paixões e toda a nossa pessoa em uma atitude de reverência e obediência amorosa ao Senhor.

O mundo pode mudar a partir do coração

28. Só a partir do coração é que as nossas comunidades serão capazes de unir e pacificar os diferentes intelectos e vontades, para que o Espírito possa nos guiar como uma rede de irmãos, porque a pacificação é também uma tarefa do coração. O Coração de Cristo é êxtase, é saída, é dom, é encontro. N’Ele nos tornamos capazes de nos relacionarmos uns com os outros de forma saudável e feliz, e de construir neste mundo o Reino de amor e de justiça. O nosso coração unido ao de Cristo é capaz deste milagre social.

29. Levar o coração a sério tem consequências sociais. Como ensina o Concílio Vaticano II, «temos, com efeito, de reformar o nosso coração, com os olhos postos no mundo inteiro e naquelas tarefas que podemos realizar juntos para o progresso da humanidade» (Constituição Pastoral Gaudium et spes, n. 82). Porque «os desequilíbrios de que sofre o mundo atual estão ligados com aquele desequilíbrio fundamental que se radica no coração do homem» (n. 10). Perante os dramas do mundo, o Concílio convida-nos a regressar ao coração, explicando que o ser humano «pela sua interioridade, transcende o universo das coisas: tal é o conhecimento profundo que ele alcança quando reentra no seu interior, onde Deus, que perscruta os corações (cf. 1Sm 16,7; Jr 17,10), o espera, e onde ele, sob o olhar do Senhor, decide da própria sorte» (n. 14).

30. Isto não significa confiar demasiado em nós mesmos. Sejamos cautelosos: tenhamos consciência de que o nosso coração não é autossuficiente; é frágil e ferido. Tem dignidade ontológica, mas ao mesmo tempo deve procurar uma vida mais digna (cf. Dicastério para a Doutrina da Fé, Declaração Dignitas infinita, 02 de abril de 2024, n. 8). O Concílio Vaticano II também diz que «o fermento evangélico despertou e desperta no coração humano uma irreprimível exigência de dignidade» (Gaudium et spes, n. 26), ainda que não baste apenas conhecer o Evangelho, ou fazer mecanicamente o que ele nos manda, para viver de acordo com esta dignidade. Precisamos da ajuda do amor divino. Recorramos, pois, ao Coração de Cristo, o centro do seu ser, que é uma fornalha ardente de amor divino e humano, a mais alta plenitude que a humanidade pode atingir. É aí, nesse Coração, que finalmente nos reconhecemos e aprendemos a amar.

31. Por último, esse Coração Sagrado é o princípio unificador da realidade, porque «Cristo é o coração do mundo; a sua Páscoa de Morte e Ressurreição é o cerne da história que, graças a Ele, é história da salvação» (São João Paulo II, Ângelus, 28 de junho de 1998). Todas as criaturas avançam «juntamente conosco e através de nós, para a meta comum, que é Deus, em uma plenitude transcendente onde Cristo Ressuscitado tudo abraça e ilumina» (Francisco, Encíclica Laudato si’, 24 de maio de 2015, n. 83). Diante do Coração de Cristo, peço mais uma vez ao Senhor que tenha compaixão desta terra ferida, que Ele quis habitar como um de nós. Que derrame os tesouros da sua luz e do seu amor, para que o nosso mundo, que sobrevive entre guerras, desequilíbrios socioeconômicos, consumismo e o uso anti-humano da tecnologia, recupere o que é mais importante e necessário: o coração.

Capítulo II: Gestos e palavras de amor

32. O Coração de Cristo, que simboliza o centro pessoal de onde brota o seu amor por nós, é o núcleo vivo do primeiro anúncio. Ali se encontra a origem da nossa fé, a fonte que mantém vivas as convicções cristãs.

Gestos que refletem o coração

33. O modo como nos ama é algo que Cristo não quis explicar-nos exaustivamente. Mostra-o nos seus gestos. Observando-o, podemos descobrir como trata cada um de nós, mesmo que nos custe perceber isso. Procuremos, pois, onde a nossa fé pode reconhecê-lo: no Evangelho.

34. O Evangelho diz que Jesus «veio para os seus» (Jo 1,11). Os “seus” somos nós, pois não nos trata como algo estranho. Considera-nos como propriedade sua, que guarda com cuidado, com afeto. Trata-nos como seus. Isto não significa que sejamos seus escravos; Ele mesmos o nega: «Não vos chamo servos» (Jo 15,15). O que Ele propõe é a pertença mútua dos amigos. Veio, superou todas as distâncias, tornou-se próximo de nós, como as coisas mais simples e quotidianas da existência. Efetivamente, Ele tem outro nome, que é “Emanuel” e significa “Deus conosco”, Deus próximo à nossa vida, vivendo entre nós. O Filho de Deus se encarnou e «esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo» (Fl 2,7).

35. Isto se torna evidente quando vemos o modo como age. Está sempre à procura, sempre próximo, sempre aberto ao encontro. Contemplamos isto quando se detém a conversar com a Samaritana, junto do poço onde ela ia buscar água (cfJo 4,5-7). Vemo-lo quando, no meio da noite escura, encontra Nicodemos, que tinha medo de ser visto perto d’Ele (cf. Jo 3,1-2). Admiramo-lo quando, sem se envergonhar, deixa que uma prostituta lhe lave os pés (cf. Lc 7,36-50); quando diz, olhos nos olhos, à mulher adúltera: “Não te condeno” (Jo 8,11); ou quando, perante a indiferença dos discípulos, diz afetuosamente ao cego do caminho: “Que queres que te faça?” (Mc 10,51). Cristo mostra que Deus é proximidade, compaixão e ternura.

36. Se curava alguém, preferia aproximar-se: «Jesus estendeu a mão e tocou-o» (Mt 8,3); «tocou-lhe na mão» (v. 15); «tocou-lhes nos olhos» (Mt 9,29). E, como faz uma mãe, curou os doentes até com a própria saliva (cf. Mc 7,33) para que não o sentissem alheio às suas vidas. Porque «o Senhor conhece a bela ciência das carícias. A ternura de Deus não nos ama com palavras; aproxima-se de nós e, estando perto, dá-nos o seu amor com toda a ternura possível» (Francisco, Homilia na Missa matutina na Casa Santa Marta, 07 de junho de 2013).

37. Visto que nos custa confiar, porque fomos feridos por tantas falsidades, agressões e desilusões, Ele sussurra-nos ao ouvido: «Filho, tem confiança» (Mt 9,2); «Filha, tem confiança» (v. 22). Trata-se de vencer o medo e de tomar consciência de que, com Ele, não temos nada a perder. A Pedro, que estava desconfiado, «Jesus estendeu-lhe a mão, segurou-o e disse-lhe: “(...) por que duvidaste?”» (Mt 14,31). Não tenhas medo. Deixa-o aproximar-se e sentar-se ao teu lado. Podemos duvidar de muitas pessoas, mas não d’Ele. E não te paralises por causa dos teus pecados. Recorda-te que muitos pecadores «sentaram-se com Ele» (Mt 9,10) e Jesus não se escandalizou com nenhum deles. Os elitistas da religião queixavam-se e chamavam-lhe «glutão e bebedor de vinho, amigo de cobradores de impostos e pecadores» (Mt 11,19). Quando os fariseus criticavam esta sua proximidade com as pessoas consideradas humildes ou pecadoras, Jesus dizia-lhes: «Prefiro a misericórdia ao sacrifício» (Mt 9,13).

38. Esse mesmo Jesus espera hoje que lhe dês a possibilidade de iluminar a tua existência, de erguer-te, de encher-te com a sua força. Porque, antes de morrer, disse aos seus discípulos: «Não vos deixarei órfãos; Eu voltarei a vós! Ainda um pouco e o mundo já não me verá; vós é que me vereis» (Jo 14,18-19). Ele consegue sempre uma maneira para se manifestar na tua vida, para que tu possas encontrá-lo.

Sagrado Coração de Jesus
(Joseph Fanelli)

O olhar

39. O Evangelho conta-nos que se aproximou d’Ele um homem rico, cheio de ideais, mas sem forças para mudar de vida. Então «Jesus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele» (Mc 10,21). Consegues imaginar esse instante, o encontro entre os olhos deste homem e o olhar de Jesus? Se te chama, se te convoca para uma missão, primeiro Ele olha para ti, penetra no teu íntimo, percebe e conhece tudo o que há em ti, pousa sobre ti o seu olhar: «Caminhando ao longo do mar da Galileia, Jesus viu dois irmãos... Um pouco mais adiante, viu outros dois irmãos» (Mt 4, 18.21).

40. Muitos textos do Evangelho mostram-nos que Jesus está atento às pessoas, às suas preocupações, ao seu sofrimento. Por exemplo: «Contemplando a multidão, encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida» (Mt 9,36). Quando nos parece que somos ignorados por todos, que não há quem se interesse pelo que nos acontece, que não temos importância para ninguém, Ele permanece atento a cada um de nós. Foi o que fez notar a Natanael, que se encontrava só e ensimesmado: «Antes de Filipe te chamar, Eu te vi quando estavas debaixo da figueira!» (Jo 1,48).

41. Precisamente porque está atento, é capaz de reconhecer cada boa intenção que temos, cada pequena boa ação que praticamos. O Evangelho diz que Ele «viu também uma viúva pobre depositar [no cofre do tesouro do templo] duas moedinhas» (Lc 21,2) e imediatamente o fez notar aos seus Apóstolos. Jesus presta atenção de tal modo que admira as coisas boas que encontra em nós. Quando o centurião lhe suplicou com toda a confiança, «Jesus, ao ouvi-lo, admirou-se» (Mt 8,10). Como é belo saber que, se outros ignoram as nossas boas intenções ou as coisas positivas que fazemos, Jesus não só não as ignora, como até mesmo as admira.

42. Enquanto ser humano, tinha aprendido isto de Maria, sua mãe. Ela, que tudo contemplava com cuidado e «guardava tudo no seu coração» (Lc 2,19.51), ensinou-o desde muito cedo, na companhia de São José, a prestar atenção.

As palavras

43. Embora nas Escrituras tenhamos a sua Palavra sempre viva e atual, às vezes Jesus fala interiormente e convoca-nos para nos conduzir ao melhor lugar. Esse lugar melhor é o seu próprio Coração. Ele chama-nos para nos introduzir no lugar onde podemos recuperar a força e a paz: «Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei de aliviar-vos» (Mt 11,28). Por isso, pede aos seus discípulos: «Permanecei em mim» (Jo 15,4).

44. As palavras que Jesus pronunciou indicavam que a sua santidade não elimina os sentimentos. Por vezes, mostravam um amor apaixonado, que sofre por nós, se comove, se lamenta e chega, até mesmo, às lágrimas. É evidente que Ele não era indiferente às preocupações e angústias comuns das pessoas, como o cansaço ou a fome: «Tenho compaixão desta multidão... Não têm nada para comer... desfalecerão no caminho, e alguns vieram de longe» (Mc 8,2-3).

45. O Evangelho não esconde os sentimentos de Jesus em relação a Jerusalém, a cidade amada: «Quando se aproximou, ao ver a cidade, Jesus chorou sobre ela» (Lc 19,41) e exprimiu o seu maior desejo: «Se neste dia também tu tivesses conhecido o que te pode trazer a paz!» (v. 42). Os evangelistas, embora por vezes o mostrem poderoso ou glorioso, não deixam de exprimir os seus sentimentos diante da morte e da dor dos amigos. Antes de contar que, junto do túmulo de Lázaro, «Jesus começou a chorar» (Jo 11,35), o Evangelho detém-se a dizer que «Jesus era muito amigo de Marta, da sua irmã e de Lázaro» (v. 5) e que, ao ver Maria e os seus companheiros a chorar, «suspirou profundamente e comoveu-se» (v. 33). A narração não deixa dúvidas de que se trata de um pranto sincero, que nasce de uma perturbação interior. Por fim, a angústia de Jesus perante a sua própria morte violenta, às mãos daqueles que tanto amava, também não ficou escondida: «começou a sentir pavor e a angustiar-se» (Mc 14,33), a ponto de dizer: «A minha alma está numa tristeza mortal» (v. 34). Esta perturbação interior exprime-se com toda a sua força no grito do Crucificado: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» (Mc 15,34).

46. Tudo isto, à primeira vista, pode parecer um mero romanticismo religioso. No entanto, é o que há de mais sério e mais decisivo. Encontra a sua expressão máxima em Cristo pregado em uma cruz. Essa é a palavra de amor mais eloquente. Não se trata de algo superficial, não é puro sentimento, não é uma alienação espiritual. É amor. Por isso, quando São Paulo procurava as palavras certas para explicar a sua relação com Cristo, disse: «Amou-me e se entregou a si mesmo por mim» (Gl 2,20). Esta era a sua maior convicção: saber-se amado. A entrega de Cristo na Cruz subjugava-o, mas só fazia sentido porque havia algo ainda maior do que essa entrega: “Amou-me”. Quando muitas pessoas procuravam em várias propostas religiosas salvação, bem-estar ou segurança, Paulo, tocado pelo Espírito, soube olhar além e maravilhar-se com o que há de maior e mais fundamental: “Amou-me”.

47. Depois de contemplar Cristo, vendo o que os seus gestos e palavras nos revelam do seu Coração, recordemos agora como a Igreja reflete sobre o santo mistério do Coração do Senhor.

Capítulo III: Este é o Coração que tanto amou

48. A devoção ao Coração de Cristo não é o culto a um órgão separado da Pessoa de Jesus. O que contemplamos e adoramos é Jesus Cristo por inteiro, o Filho de Deus feito homem, representado em uma imagem sua na qual se destaca o seu coração. Neste caso, o coração de carne é entendido como imagem ou sinal privilegiado do centro mais íntimo do Filho encarnado e do seu amor ao mesmo tempo divino e humano, porque, mais do que qualquer outro membro do seu corpo, é «o índice natural ou o símbolo da sua imensa caridade» (Pio XII, Encíclica Haurietis aquas, 15 de maio de 1956, n. 12).

Adoração a Cristo

49. É indispensável sublinhar que nos relacionamos com a Pessoa de Cristo através da amizade e da adoração, atraídos pelo amor representado na imagem do seu Coração. Veneramos essa imagem que o representa, mas a adoração dirige-se apenas a Cristo vivo, na sua divindade e em toda a sua humanidade, para nos deixarmos abraçar pelo seu amor humano e divino.

50. Seja qual for a imagem utilizada, é certo que o objeto de adoração é o Coração vivo de Cristo - e nunca uma imagem -, porque faz parte do seu Corpo santíssimo e ressuscitado, inseparável do Filho de Deus que o assumiu para sempre. Ele é adorado enquanto «o coração da pessoa do Verbo a quem está unido de modo inseparável» (Pio VI, Constituição Auctorem fidei, 28 de agosto de 1794, n. 63). Não o adoramos isoladamente, mas na medida em que com esse Coração é o próprio Filho encarnado que vive, ama e recebe o nosso amor. Por isso, qualquer ato de amor ou de adoração ao seu Coração é «na realidade e propriamente tributado ao próprio Cristo» (Leão XIII, Encíclica Annum Sacrum, 25 de maio de 1899), porque se refere espontaneamente a Ele e é «o símbolo e a imagem expressa da infinita caridade de Cristo» - «Inest in Sacro Corde symbolum atque expressa imago infinitae Iesu Christi caritatis».

51. Por isso ninguém deve pensar que esta devoção possa separar-nos ou distanciar-nos de Jesus Cristo e do seu amor. De modo espontâneo e direto, ela dirige-nos a Ele e só a Ele, que nos chama a uma amizade valiosa, feita de diálogo, afeto, confiança e adoração. Este Cristo com o seu coração transpassado e ardente é o mesmo Cristo que por amor nasceu em Belém, percorreu a Galileia curando, acariciando, derramando misericórdia, e amou-nos até ao fim, estendendo os braços na cruz. Por fim, é o mesmo que ressuscitou e vive gloriosamente no meio de nós.

A veneração da sua imagem

52. Convém notar que a imagem de Cristo com o seu coração, ainda que de maneira nenhuma possa ser objeto de adoração, não é uma imagem qualquer, entre muitas outras que poderíamos escolher. Não é algo inventado de modo abstrato ou desenhado por um artista, «não é um símbolo imaginário, é um símbolo real, que representa o centro, a fonte da qual brotou a salvação para a humanidade inteira» (Francisco, Ângelus, 09 de junho de 2013).

53. Há uma experiência humana universal que torna esta imagem única. Pois não há dúvida de que, ao longo da história e em várias partes do mundo, o coração tenha se tornado um símbolo da intimidade mais pessoal e também do afeto, das emoções e da capacidade de amar. Para além de qualquer explicação científica, uma mão colocada sobre o coração de um amigo exprime um afeto especial; quando uma pessoa se apaixona e está perto da pessoa amada, o batimento cardíaco acelera; quando alguém sofre um abandono ou uma desilusão por parte da pessoa amada, sente uma espécie de forte opressão no coração. Por outro lado, para exprimir que algo é sincero, que vem realmente do centro da pessoa, afirma-se: “Digo-o do fundo do coração”. A linguagem poética não pode ignorar a força dessas experiências. Por isso é inevitável que, ao longo da história, o coração tenha alcançado uma força simbólica única, que não é meramente convencional.

54. É compreensível, portanto, que a Igreja tenha escolhido a imagem do coração para representar o amor humano e divino de Jesus Cristo e o núcleo mais íntimo da sua Pessoa. Mas se a imagem de um coração com chamas de fogo pode ser um símbolo eloquente que nos recorda o amor de Jesus Cristo, é conveniente que esse coração faça parte de uma imagem de Jesus Cristo. Isto torna ainda mais significativo o seu apelo a uma relação pessoal de encontro e de diálogo [2]. Essa imagem venerada de Cristo, onde se destaca o seu coração amoroso, tem ao mesmo tempo um olhar que apela ao encontro, ao diálogo e à confiança; tem mãos fortes capazes de nos sustentar; tem uma boca que nos fala de uma forma única e personalíssima.

55. O coração tem o valor de ser percebido não como um órgão separado, mas como um centro íntimo que gera unidade e, ao mesmo tempo, como expressão da totalidade da pessoa, o que não acontece com outros órgãos do corpo humano. Se é o centro íntimo da totalidade da pessoa e, portanto, uma parte que representa o todo, poderíamos facilmente desnaturalizá-lo caso o contemplássemos separado da figura do Senhor. A imagem do coração deve remeter-nos para a totalidade de Jesus Cristo no seu centro unificador e, a partir desse, simultaneamente deve levar-nos a contemplar Cristo em toda a beleza e riqueza da sua humanidade e da sua divindade.

56. Isto vai além da atração que podem gerar as várias imagens do Coração de Cristo, pois não é que, diante das imagens de Cristo, «se deva pedir alguma coisa a essas imagens ou depositar confiança nelas como antigamente faziam os pagãos», mas que «por meio das imagens que beijamos e diante das quais nos descobrimos e prostramos, adoramos a Cristo» (Concílio de Trento, Sessão XXV, Decreto Mandat sancta synodus, 03 de dezembro de 1563; Denzinger, n. 1823).

57. Além disso, algumas destas imagens podem parecer-nos pouco atrativas e não nos mover muito ao amor e à oração. Isso é secundário, pois a imagem não é mais do que uma figura motivadora, e, como diriam os orientais, não devemos fixar-nos no dedo que aponta para a lua. Enquanto a Eucaristia é presença real a ser adorada, neste caso trata-se apenas de uma imagem que, embora tenha sido abençoada, nos convida a ir além dela, nos orienta a elevar e unir o nosso próprio coração ao de Cristo vivo. A imagem venerada convoca, aponta, conduz, a fim de dedicarmos tempo ao encontro com Cristo e à sua adoração, conforme nos pareça melhor imaginá-lo. Assim, olhando a imagem, estamos diante de Cristo, e diante d’Ele «o amor se detém, contempla o mistério, desfruta dele em silêncio» (V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Documento de Aparecida, 29 de junho de 2007, n. 259).

58. Dito tudo isto, não devemos esquecer que esta imagem do coração nos fala de carne humana, da terra, e por isso nos fala também de Deus que quis entrar na nossa condição histórica, fazer-se história e partilhar o nosso caminho terreno. Uma forma de devoção mais abstrata ou estilizada não será necessariamente mais fiel ao Evangelho, porque neste sinal sensível e acessível se manifesta o modo como Deus quis revelar-se e tornar-se próximo de nós.

Amor sensível

59. Amor e coração não estão necessariamente unidos, pois em um coração humano podem reinar o ódio, a indiferença e o egoísmo. Porém, não atingimos a nossa plena humanidade se não saímos de nós mesmos, tal como não nos tornamos inteiramente nós mesmos se não amamos. Portanto, o centro mais íntimo da nossa pessoa, criado para o amor, só realizará o projeto de Deus enquanto amar. Assim, o símbolo do coração simboliza ao mesmo tempo o amor.

60. O Filho eterno de Deus, que infinitamente me transcende, quis amar-me também com um coração humano. Os seus sentimentos humanos tornam-se o sacramento de um amor infinito e definitivo. O seu coração não é, portanto, um símbolo físico que só exprime uma realidade meramente espiritual ou separada da matéria. O olhar dirigido ao Coração do Senhor contempla uma realidade física: a sua carne humana, que torna possível que Cristo tenha emoções e sentimentos muito humanos - como nós -, embora plenamente transformados pelo seu amor divino. A devoção deve alcançar o amor infinito da pessoa do Filho de Deus, mas é preciso afirmar que este é inseparável do seu amor humano e, para isso, ajuda-nos a imagem do seu coração de carne.

Imagem venerada na Basílica do Latrão (Roma)

61. Se ainda hoje no sentimento popular o coração é percebido como o centro afetivo de todo o ser humano, é ele que melhor pode significar o amor divino de Cristo que está unido para sempre e de modo inseparável ao seu amor integralmente humano. Já Pio XII recordava que a Palavra de Deus, quando «descreve o amor do coração de Jesus, não compreende somente a caridade divina, mas se estende também aos sentimentos do afeto humano... Por conseguinte, o coração de Cristo, unido hipostaticamente à pessoa divina do Verbo, sem dúvida deve ter palpitado de amor e de qualquer outro afeto sensível» (Haurietis aquas, nn. 21-22).

62. Contrariamente a alguns que negavam ou relativizavam a verdadeira humanidade de Cristo, nos Padres da Igreja encontramos uma forte afirmação da realidade concreta e tangível do afeto humano do Senhor. Assim, São Basílio sublinhava que a Encarnação do Senhor não era algo de fantasioso, mas que «o Senhor possuía os afetos naturais» (Epistula 261, 3: Patrologia Graeca [PG] 32, 972). São João Crisóstomo propunha um exemplo: «Se não tivesse possuído a nossa natureza, não teria experimentado a tristeza uma e outra vez» (In Ioh. homil. 63, 2: PG 59, 350). Santo Ambrósio afirmava: «Como tomou a alma, tomou também as paixões da alma» (De fide ad Gratianum, II, 7, 56: Patrologia Latina [PL] 16, 594, edição de 1880). E Santo Agostinho apresentava os afetos humanos como uma realidade que, uma vez assumida por Cristo, já não é alheia à vida da graça: «O Senhor Jesus, não obrigado por necessidade, mas por voluntária compaixão, assumiu este sentimento de fraqueza humana, como aceitara a própria carne na condição da humana fraqueza, para... se a algum deles [os membros da Igreja] acontecer contristar-se e condoer-se no meio das tentações humanas, não se julgue por isso alheio à graça de Deus» (Enarrationes in Psalmos 87, 3: PL 37, 1111). Finalmente, São João Damasceno considera esta real experiência afetiva de Cristo na sua humanidade como um sinal de que Ele assumiu integralmente a nossa natureza - e não parcialmente - para redimi-la e transformá-la por inteiro. Assim, Cristo assumiu todos os elementos que compõem a natureza humana, a fim de que todos eles fossem santificados (cf. De fide orthodoxa, III, 6.20: PG 94, 1006.1081).

63. Vale a pena retomar aqui a reflexão de um teólogo que reconhece que, sob a influência do pensamento grego, a teologia relegou durante muito tempo o corpo e os sentimentos ao universo do «pré-humano, sub-humano ou tentador do verdadeiramente humano», mas «o que a teologia não resolveu na teoria, foi resolvido pela espiritualidade na prática. A espiritualidade e a religiosidade popular mantiveram viva a relação com os aspectos somáticos, psicológicos e históricos de Jesus. A Via Sacra, a devoção às suas Chagas, a espiritualidade do Preciosíssimo Sangue, a devoção ao Coração de Jesus, as práticas eucarísticas... tudo isso preencheu as lacunas da teologia, alimentando a imaginação e o coração, o amor e a ternura por Cristo, a esperança e a memória, o desejo e a nostalgia. A razão e a lógica tomaram outros caminhos» (Olegário González de Cardedal, La entraña del cristianismo, Salamanca, 2010, 70-71).

Tríplice amor

64. Entretanto, não nos detemos só nos seus sentimentos humanos, por mais belos e comoventes que sejam, pois, contemplando o Coração de Cristo reconhecemos como nos seus sentimentos nobres e sadios, na sua ternura, no vibrar do seu afeto humano, se manifesta toda a verdade do seu amor divino e infinito. Assim o exprimiu Bento XVI: «Do horizonte infinito do seu amor, Deus quis entrar nos limites da história e da condição humana, assumiu um corpo e um coração; de modo que nós possamos contemplar e encontrar o infinito no finito, o Mistério invisível e inefável no Coração humano de Jesus, o Nazareno» (Ângelus, 01 de junho de 2008).

65. Na realidade há um tríplice amor que está contido e nos deslumbra na imagem do Coração do Senhor. Primeiramente, o amor divino infinito que encontramos em Cristo. Mas pensamos também na dimensão espiritual da humanidade do Senhor. Desde esse ponto de vista, «o coração de Cristo é símbolo de enérgica caridade, que, infundida em sua alma, constitui o precioso dote da sua vontade humana... Finalmente... é símbolo do seu amor sensível» (Haurietis aquas, n. 27).

66. Estes três amores não são capacidades separadas, funcionando de forma paralela ou desconexa, mas atuam e exprimem-se em conjunto e em um fluxo constante de vida: «À luz da fé, pela qual cremos que na pessoa de Cristo estão unidas a natureza humana e a natureza divina, podemos conceber os estreitíssimos vínculos que existem entre o amor sensível do coração físico de Jesus e o seu duplo amor espiritual, o humano e o divino» (ibid., n. 58).

67. Por isso, entrando no Coração de Cristo, sentimo-nos amados por um coração humano, cheio de afetos e sentimentos como os nossos. A sua vontade humana quer amar-nos livremente, e esse querer espiritual está plenamente iluminado pela graça e pela caridade. Quando chegamos ao mais íntimo desse Coração, somos inundados pela glória incomensurável do seu amor infinito de Filho eterno, que já não podemos separar do seu amor humano. É precisamente no seu amor humano, e não afastando-nos dele, que encontramos o seu amor divino; encontramos «o infinito no finito» (Bento XVI, Ângelus, 01 de junho de 2008).

68. É ensinamento constante e definitivo da Igreja que a nossa adoração da sua Pessoa é única, e abrange inseparavelmente tanto a sua natureza divina como a sua natureza humana. Desde os tempos antigos, a Igreja ensinou que devemos «adorar um único e mesmo Cristo, Filho de Deus e do homem, de duas e em duas naturezas inseparáveis e indivisas» (Vigílio, Constituição Inter innumeras sollicitudines, 14 de maio de 553: Denzinger, n. 420). E isto «com uma única adoração... visto que o Verbo veio a ser carne» (Concílio de Éfeso, Anátemas de Cirilo de Alexandria, 8: Denzinger, n. 259). De modo algum Cristo é «adorado em duas naturezas, introduzindo com isto duas adorações», mas deve-se «venerar com única adoração o Deus Verbo encarnado junto com a sua carne» (II Concílio de Constantinopla, Sessão VIII, 02 de junho de 533, cân. 9: Denzinger, n. 431).

69. São João da Cruz quis exprimir que, na experiência mística, o amor incomensurável de Cristo Ressuscitado não é sentido como estranho à nossa vida. O Infinito de algum modo desce para que, através do Coração aberto de Cristo, possamos experimentar um encontro de amor verdadeiramente recíproco: «É bem possível que a ave de voo baixo possa prender a águia-real das alturas, quando ela se abaixa querendo ser presa» (Cântico espiritual [B, segunda redação], Canção 31, 8: São João da Cruz, Obras completas, Avessadas, 2005, 688). E explica que «vendo a esposa ferida pelo seu amor, acorre ao seu gemido, ferido também Ele pelo amor dela; é que, nos apaixonados, a ferida de um é de ambos, e os dois sentem o mesmo» (Canção 13, 9: op. cit., 600). Este místico entende a figura do lado ferido de Cristo como um apelo à plena união com o Senhor. Ele é o cervo vulnerado, ferido quando ainda não nos tínhamos deixado tocar pelo seu amor, que desce às correntes de água para saciar a sua própria sede e que encontra conforto sempre que nos dirigimos a Ele: «Volta, minha pomba, / que, ferido, o veado / lá no outeiro assoma / ao sopro do teu voo e o fresco toma» (Canção 13, 1: op. cit., 596).

Perspectivas trinitárias

70. A devoção ao Coração de Jesus é marcadamente cristológica; é uma contemplação direta de Cristo que convida à união com Ele. Isto é legítimo, se tivermos em conta o que pede a Carta aos Hebreus: correr a nossa prova «tendo os olhos postos em Jesus» (Hb 12,2). Entretanto, não podemos ignorar que, ao mesmo tempo, Jesus se apresenta como o caminho para ir ao Pai: «Eu sou o caminho... Ninguém pode ir ao Pai senão por mim» (Jo 14,6). Ele quer conduzir-nos ao Pai. É por isso que a pregação da Igreja, desde o início, não nos detém em Jesus Cristo, mas nos conduz ao Pai. Ele é quem por fim, enquanto plenitude originária, deve ser glorificado (1Cor 8,6; Fl 4,20; 2Cor 1,3).

71. Detenhamo-nos, por exemplo, na Carta aos Efésios, onde podemos ver com força e clareza como a nossa adoração se dirige ao Pai: «Eu dobro os joelhos diante do Pai» (Ef 3,14). «Um só Deus e Pai de todos, que reina sobre todos, age por todos e permanece em todos» (Ef 4,6). «Sem cessar, dai graças por tudo a Deus Pai» (Ef 5,20). O Pai é Aquele a quem estamos destinados (cf. 1Cor 8,6). Por isso, São João Paulo II dizia que «toda a vida cristã é como uma grande peregrinação para a casa do Pai» (Carta Apostólica Tertio millennio adveniente, 10 de novembro de 1994, n. 49). É o que experimentou Santo Inácio de Antioquia no seu caminho para o martírio: «Dentro de mim, há uma água viva, que murmura e diz: “Vem para o Pai”» (Ad Romanos, 7: PG 5, 694).

72. Ele é, acima de tudo, o Pai de Jesus Cristo: «Bendito seja o Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo» (Ef 1,3). É «o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai a quem pertence a glória» (v. 17). Quando o Filho se fez homem, todos os desejos e aspirações do seu coração humano se dirigiam ao Pai. Se virmos como Cristo se referia ao Pai, podemos constatar este fascínio do seu coração humano, esta orientação perfeita e constante para o Pai (Jo 14,31; 10,30; 14,10). A sua história nesta nossa terra foi um caminhar sentindo no seu coração humano um apelo incessante para ir ao Pai - «Vou para o Pai» [pròs tòn Patéra] (Jo 16,28); «Eu vou para ti» [pròs sè] (Jo 17,11).

73. Sabemos que a palavra aramaica que Ele usou para se dirigir ao Pai foi “Abbá”, que significa “paizinho”. No seu tempo, esta familiaridade incomodava alguns (cf. Jo 5,18). É a expressão que Jesus usa para falar com o Pai quando surgiu a angústia da morte: «Abbá, Pai, tudo te é possível; afasta de mim este cálice! Mas não se faça o que Eu quero, e sim o que Tu queres» (Mc 14,36). Reconheceu-se sempre amado pelo Pai: «por me teres amado antes da criação do mundo» (Jo 17,24). E, no seu coração humano, Jesus ficou em êxtase ao ouvir o Pai dizer-lhe: «Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus todo o meu agrado» (Mc 1,11).

74. O Quarto Evangelho diz que o Filho eterno do Pai esteve sempre «no seio do Pai» - «Eis tòn kólpon tou Patròs» (Jo 1,18). Santo Irineu refere-se ao «Filho de Deus... existindo desde sempre junto do Pai» (Adversus Haereses, III, 18, 1: PG 7, 932). E Orígenes sustenta que o Filho persevera «na contemplação perpétua da profundeza paterna» (In Ioh., II, 2: PG 14, 110). Por isso, quando o Filho se fez homem, passou noites inteiras comunicando-se com o Pai amado, no alto da montanha (cf. Lc 6,12). Dizia: «Tenho de estar na Casa do meu Pai» (Lc 2,49). Vejamos as suas expressões de louvor: «Jesus estremeceu de alegria sob a ação do Espírito Santo e disse: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra”» (Lc 10,21). E as suas últimas palavras, cheias de confiança, foram: «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito» (Lc 23,46).

75. Voltemos agora o nosso olhar para o Espírito Santo, que enche o Coração de Cristo e arde n’Ele. Porque, como dizia São João Paulo II, o Coração de Cristo é «a obra-prima do Espírito Santo» (Ângelus, 23 de junho de 2002). Não se trata apenas de uma coisa do passado, pois «no Coração de Cristo é viva a ação do Espírito Santo, ao qual Jesus atribuiu a inspiração da sua missão (cf. Lc 4,18; Is 61,1) e do qual na Última Ceia prometera o envio. É o Espírito que ajuda a acolher a riqueza do sinal do lado transpassado de Cristo, do qual brotou a Igreja (cf. Constituição Sacrosanctum Concilium, n. 5)» (Mensagem por ocasião do centenário da consagração do gênero humano ao divino Coração de Jesus, Varsóvia, 11 de junho de 1999). Em suma, «só o Espírito Santo pode abrir diante de nós esta plenitude do “homem interior”, que se encontra no Coração de Cristo. Somente Ele pode fazer com que desta plenitude consigam haurir força, gradualmente, também os nossos corações humanos» (Ângelus, 08 de junho de 1986).

76. Se buscamos aprofundar o mistério da ação do Espírito, vemos que Ele geme em nós e diz “Abbá”: «Porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: “Abbá! - Pai!”» (Gl 4,6). Com efeito, «esse mesmo Espírito dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus» (Rm 8,16). A ação do Espírito Santo no coração humano de Cristo provoca constantemente esta atração ao Pai. E quando pela graça nos une aos sentimentos de Cristo, faz-nos participantes da relação do Filho com o Pai, é o «Espírito que faz de vós filhos adotivos. É por Ele que clamamos: Abbá, ó Pai!» (Rm 8,15).

77. Assim, a nossa relação com o Coração de Cristo transforma-se sob o impulso do Espírito, que nos orienta para o Pai, fonte da vida e origem última da graça. O próprio Cristo não deseja que nos detenhamos somente n’Ele. O amor de Cristo é «revelação da misericórdia do Pai» (Francisco, Homilia na Visita à Policlínica Gemelli e à Faculdade de Medicina da Universidade Católica do Sagrado Coração, 27 de junho de 2014). O seu desejo é que, impelidos pelo Espírito que brota do seu Coração, “com Ele e n’Ele” nos dirijamos ao Pai. A glória dirige-se ao Pai “por” Cristo (cf. Ef 1,5.7; 2,18; 3,12), “com” Cristo (cf. Ef 2,5-6; 4,15) e “em” Cristo (cf. Ef 1,3-4.6-7.11.13.15; 2,10.13.21-22; 3,6.11.21). São João Paulo II ensinou que «o Coração do Salvador nos convida a subir de novo ao amor do Pai, que é a fonte de todo o amor autêntico» (Mensagem por ocasião do centenário da consagração do gênero humano ao divino Coração de Jesus, Varsóvia, 11 de junho de 1999). É isto mesmo que o Espírito Santo, chegando a nós a partir do Coração de Cristo, procura alimentar nos nossos corações. Por isso, a Liturgia, sob a ação vivificante do Espírito, dirige-se sempre ao Pai a partir do Coração ressuscitado de Cristo.


Notas:

[1] Uma boa parte das reflexões deste primeiro capítulo estão inspiradas nos escritos inéditos do Pe. Diego Fares, S.I. Que o Senhor o tenha na sua santa glória!

[2] Sendo assim, entende-se porque a Igreja proibiu que se coloquem sobre os altares representações isoladas dos Corações de Jesus ou de Maria (cf. Resposta da Sagrada Congregação dos Ritos ao Pe. Charles Lecoq, P.S.S., de 05 de abril de 1879. in: Decreta authentica Congregationis Sacrorum Rituum ex actis eiusdem collecta, vol. III, Roma, 1900, 107-108, n. 3492). Fora da Liturgia, «para a devoção privada» (ibid.), pode utilizar-se isoladamente o símbolo de um coração como expressão didática, figura estética ou emblema que convida a pensar no amor de Cristo, mas corre-se o risco de entender o coração como objeto de adoração ou de diálogo espiritual separadamente da Pessoa de Cristo. Em 31 de março de 1887 a Congregação deu uma resposta semelhante (ibid., 187, n. 3673).

Fonte: Santa Sé.

Observação: Para facilitar a leitura neste formato do blog, unimos as notas de rodapé mais breves ao corpo do texto.

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