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quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Hinos da Cátedra de São Pedro: Vésperas

Segui-me, e Eu farei de vós pescadores de homens” (Mt 4,19).

Em nossa última postagem começamos a apresentar os dois hinos próprios da Liturgia das Horas (LH) para a Festa da Cátedra de São Pedro (22 de fevereiro):
Laudes: Petrus beátus catenárum láqueos (Pedro, que rompes algemas);
Vésperas: Divína vox te déligit (Pescador de homens te faço).

“Vocação” de Pedro e dos primeiros Apóstolos
(Igreja de São Miguel, Lewes, Inglaterra)

Além desses dois hinos, no Ofício das Leituras da Festa entoa-se a 1ª estrofe e a doxologia do hino Iam, bone pastor (Ó Pedro, pastor piedoso), proposto em outras duas ocasiões:
- Nas Laudes da Festa da Conversão de São Paulo (25 de janeiro): 2ª estrofe - Doctor egrégie (Ó Paulo, mestre dos povos) - e a doxologia;

Assim, após apresentarmos o texto das Laudes (Petrus beátus catenárum láqueos) da Festa da Cátedra de São Pedro, nesta postagem nos deteremos no hino das Vésperas: Divína vox te déligit (Pescador de homens te faço).

Trata-se de uma composição nova, elaborada pela Comissão encarregada da revisão dos hinos da LH após o Concílio Vaticano II, coordenada pelo Padre Anselmo Lentini, OSB (†1989).

Como testemunha Dom Annibale Bugnini (†1982), grande responsável pela reforma litúrgica, buscou-se propor hinos individuais sobretudo para os Apóstolos, Evangelistas e outros santos mencionados nos Evangelhos, como é o caso desse composição em honra do Apóstolo Pedro [1].

A Comissão, com efeito, resgatou antigos hinos compostos ao longo de toda a história da Igreja e propôs outros novos, como aquele pai de família que do seu tesouro “tira coisas novas e velhas” (Mt 13,52).

Antes da reforma litúrgica, nas Vésperas da Cátedra de São Pedro se repetia o hino do Ofício das Leituras (Matinas), Quodcúmque vinclis, atualmente indicado para as Laudes desse dia e enriquecido com mais uma estrofe (Petrus beátus).

Nas Laudes, por sua vez, se entoava o hino Iam bone pastor, sobre o qual já falamos acima, atualmente indicado para o Ofício do dia 22 de fevereiro.

A seguir reproduzimos o texto original do hino das Vésperas (em latim), composto por seis estrofes de quatro versos, e sua tradução oficial para o português do Brasil, que faz algumas adaptações, como veremos, tecendo também alguns breves comentários sobre a sua teologia.

Entrega das chaves a Pedro
(Nicolas Poussin, séc. XVII)

Cathedrae Sancti Petri Apostoli (Festum)
Vesperae: Divína vox te déligit

1. Divína vox te déligit,
piscátor, ac pro rétibus
remísque qua tu glória
caeli refúlges clávibus!

2. Tenax amóris próferens
ac dulce testimónium,
omnes amor quos láverat
oves regéndas áccipis.

3. Lapsus, supérno róbore
tu petra stas Ecclésiae,
qua splendet illa saeculis,
nullis subácta víribus.

4. Tu, Petre, Christi oráculo
luces magíster ómnium,
fratrésque firmas, próvidus
tu verba vitae núntias.

5. Gregem fac unum, próspera
laetis in aevum frúctibus,
salvúmque ab hostis ímpetu
ad lucis adduc pábula.

6. Sit summa Christo glória,
qui nos det aulae caelicae
intráre per te iánuam
in sempitérna gáudia. Amen [2].

Festa da Cátedra de São Pedro, Apóstolo
Vésperas: Pescador de homens te faço

1. “Pescador de homens te faço!”
Ouviste, ó Pedro, de Deus:
redes e remos deixando,
ganhaste as chaves dos céus.

2. Negando Cristo três vezes,
três vezes clamas amor:
então, de todo o rebanho,
tornas-te mestre e pastor.

3. Ó Pedro, és pedra da Igreja,
que sobre ti se constrói,
que vence as forças do inferno,
e quais grãos de Cristo nos mói.

4. Quando no mar afundavas,
o Salvador deu-te as mãos:
com as palavras da vida
confirma agora os irmãos.

5. Pés para o alto apontando,
foste pregado na cruz:
cajado que une o rebanho,
barca que a todos conduz.

6. Ao Cristo Rei demos glória,
rendamos nosso louvor;
voltando à terra, ele encontre
um só rebanho e pastor [3].

Vocação de Pedro e dos primeiros Apóstolos
(Domenico Ghirlandaio, Capela Sistina, séc. XV)

Comentário:

O hino é dirigido diretamente a Pedro, como fica claro pelo uso do vocativo (“Ó Pedro”, “ó pescador”), como uma espécie de “anamnese” (memorial) da sua vida e missão.

a) 1ª estrofe: Divína vox te déligit

A 1ª estrofe, pois, recorda a vocação de Pedro: “A voz de Deus te escolheu, ó pescador” (“Divína vox te déligit, piscátor”). A tradução brasileira cita aqui o convite feito por Jesus às margens do mar da Galileia: “Pescador de homens te faço!” (cf. Mt 4,19; Mc 1,17; Lc 5,10).

Na sequência, o hino destaca a resposta de Pedro ao chamado, deixando “as redes e os remos”. Por isso ele refulge de glória, recebendo de Cristo as “chaves do céu”. Trata-se de uma referência ao episódio da entrega do “primado”, central no breve hino das Laudes (cf. Mt 16,13-19).

b) 2ª estrofe: Tenax amóris próferens

A 2ª estrofe recorda outro episódio ligado à “vocação” e ao “primado” de Pedro: o encontro com o Ressuscitado, novamente no mar da Galileia (cf. Jo 21,15-19).

O hino canta como Pedro professa de maneira “doce e insistente” o seu amor a Cristo, em referência à sua tríplice confissão: “Senhor, tu sabes que eu te amo”.

A tradução brasileira, por sua vez, inteligentemente contrapõe aqui a tríplice confissão de amor à sua tríplice negação de Cristo (cf. Mt 26,69-75 e paralelos): “Negando Cristo três vezes, três vezes clamas amor”.

Após a sua tríplice confissão de amor, Cristo lhe confirma também por três vezes sua missão de pastor do rebanho: “Apascenta as minhas ovelhas”. O diálogo traça um paralelo com o episódio de Cesareia de Filipe quando, após a profissão de fé de Pedro (“Tu és o Cristo...”), o Senhor lhe confia “as chaves do Reino dos Céus”.

O hino canta ainda como Pedro recebeu a missão de guiar todas as ovelhas do rebanho de Cristo, que foram “lavadas no amor”. A referência a “todas as ovelhas” remete à unidade da Igreja (cf. Jo 10,16), ao passo que a “ablução no amor” remete ao texto do Apocalipse, que narra como os santos “lavaram e alvejaram suas vestes no sangue do Cordeiro” (Ap 7,14).

Essa expressão costuma ser interpretada em referência aos mártires, que derramaram seu sangue pelo testemunho do Evangelho. Contudo, a expressão pode ser aplicada a todos os justos, santificados pelo sacrifício de amor de Cristo no seu Mistério Pascal.

No contexto do hino, a expressão se aplica também ao próprio Pedro, que no encontro com o Ressuscitado professa três vezes seu amor, “redimindo” as três vezes que o negara durante a Paixão.

O Ressuscitado entrega as chaves a Pedro
(Willem van Herp II, séc. XVII)

c) 3ª estrofe: Lapsus, supérno róbore

A 3ª estrofe começa justamente recordando essa “queda” de Pedro, referindo-se a ele como “caído” (lapsus), expressão ausente na tradução brasileira, uma vez que suas negações foram mencionadas na estrofe anterior.

Não obstante essa “queda”, o hino canta como o Apóstolo foi “levantado” por Cristo e, revestido de “vigor celeste”, tornou-se a “pedra da Igreja”, a qual “resplandece pelos séculos” e que “nenhum poder será capaz de subjugar”, mais uma vez em referência à promessa de Cristo: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la” (Mt 16,18).

A tradução brasileira, por sua vez, acrescenta no último verso dessa estrofe uma expressão interessante: Pedro é a pedra que “nos mói quais grãos de Cristo”. A associação do Apóstolo com uma “pedra de moinho” parece indicar sua autoridade de perdoar os pecados (cf. Mt 16,19; 18,18; Jo 20,13), que seriam “moídos” como grãos.

Vale lembrar que a Festa da Cátedra de São Pedro costuma coincidir com a Quaresma, tempo litúrgico por excelência do chamado à conversão. Nos primeiros séculos, o rito de admissão dos pecadores à penitência pública, celebrado na segunda-feira da I semana da Quaresma, em Roma tinha lugar na Basílica de San Pietro in Vincoli (São Pedro “em cadeias”), referindo-se justamente à autoridade do Apóstolo de “ligar e desligar”, de “atar e desatar”.
Para saber mais, confira nossas postagens sobre a história da Quaresma e a história da Quarta-feira de Cinzas.

A imagem da “pedra de moinho” alude também à unidade da Igreja: unidos a Pedro e aos demais Apóstolos (cf. Ef 2,20), somos como grãos de trigos moídos para formar um único pão. Essa imagem é utilizada na Didaché, importante escrito cristão do final do século I, referindo-se à Eucaristia e à Igreja, Corpo de Cristo:

“Quanto à Eucaristia, dai graças deste modo: (...) Assim como este pão partido estava disperso pelos montes e, depois de colhido se tornou um só, assim se reúna a tua Igreja dos confins da terra no teu Reino” [4].

d) 4ª estrofe: Tu, Petre, Christi oráculo

A 4ª estrofe centra-se na “profecia de Cristo” (Christi oráculo), segundo a qual Pedro “resplandece como mestre de todos” e “confirma os irmãos”, anunciando “palavras de vida”.

A primeira parte da estrofe remete claramente ao que Jesus diz a Pedro durante a Última Ceia: “Eu rezei por ti, para que tua fé não desfaleça. E tu, uma vez convertido, confirma [fortalece] os teus irmãos” (Lc 22,32).

O diálogo do Ressuscitado com Pedro (detalhe)
(Raúl Berzosa Fernández, séc. XXI)

O último verso, por sua vez, sobre as “palavras de vida” anunciadas pelo Apóstolo, refere-se ao que o próprio Pedro disse a Jesus após o “discurso do pão da vida”: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6,68).

A tradução oficial para o português do Brasil adapta os primeiros versos dessa estrofe para incluir uma referência ao episódio de Cristo que caminha sobre as águas e salva Pedro: “Quando no mar afundavas, o Salvador deu-te as mãos” (cf. Mt 14,22-33).

e) 5ª estrofe: Gregem fac unum

Concluindo o “corpo do hino”, após a “anamnese” (memorial) de alguns episódios da vida do Apóstolo, a 5ª estrofe acrescenta uma “epiclese” (invocação), isto é, uma súplica invocando a intercessão de São Pedro.

A partir de quanto dito anteriormente sobre a sua missão, aqui pedimos que ele “faça de nós um só rebanho”, alegre e próspero em frutos para sempre, protegendo-nos dos ataques do inimigo e conduzindo-nos aos pastos de luz.

Essas expressões nos remetem a vários textos bíblicos sobre a figura do “pastor”, como o Salmo 22(23): “O Senhor é o pastor que me conduz; não me falta coisa alguma...”.

A tradução brasileira, por sua vez, novamente adapta o texto do hino, dando continuidade à “anamnese” das estrofes anteriores.

Os primeiros dois versos fazem referência ao martírio de Pedro que, segundo a tradição, teria sido crucificado de cabeça para baixo: “Pés para o alto apontando, foste pregado na cruz”. Trata-se de uma decisão bastante insólita, uma vez que o martírio do Apóstolo já é celebrado na Solenidade de São Pedro e São Paulo, no dia 29 de junho.

Os outros dois versos, aludindo vagamente à súplica do texto original, referem-se a Pedro como “cajado que une o rebanho” e “barca que a todos conduz”, em referência à sua dupla missão como “pastor” do rebanho e “pescador” que conduz a barca da Igreja.

f) 6ª estrofe: Sit summa Christo glória

Por fim, como em praticamente todos os hinos da LH, a última estrofe é uma doxologia (breve fórmula de louvor), geralmente dirigida à Santíssima Trindade.

Em nosso hino a doxologia é dirigida a Cristo, a quem deve ser dada “toda a glória”, pois Ele nos concede entrar na “morada celeste” através da porta guardada por São Pedro, para participar das alegrias eternas.

A expressão parece evidenciar a “escatologia da pessoa”: cada um de nós, através da morte, espera atravessar as portas do céu. A tradução brasileira, em contrapartida, remete à “escatologia do mundo”, citando a última vinda de Cristo, unida à esperança da unidade: “Voltando à terra, Ele encontre um só rebanho e pastor”.

Entrega das chaves a Pedro
(Catedral de São Pedro, Rennes, França)

Notas:

[1] cf. BUGNINI, Annibale. A reforma litúrgica: 1948-1975. São Paulo: Paulinas; Paulus; Loyola, 2018, p. 463.


[3] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 2000, vol. III, pp. 1278-1279.

[4] Didaché ou Doutrina dos Doze Apóstolos, 9,1-5. in: CORDEIRO, José de Leão (Org.). Antologia Litúrgica: Textos Litúrgicos, Patrísticos e Canónicos do Primeiro Milénio. Secretariado Nacional de Liturgia: Fatima, 2003, pp. 96-97.

Referências:

AROCENA, Félix. Los himnos de la Liturgia de las Horas. Madrid: Ediciones Palabra, 1992, pp. 212-213.

Imagens: Wikimedia Commons.

Confira também outras postagens sobre os hinos do Próprio dos Santos da Liturgia das Horas clicando aqui.

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