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sábado, 6 de janeiro de 2024

Sequência da Epifania: Festa Christi omnis

Vimos sua estrela no Oriente e viemos adorar o Senhor” (cf. Mt 2,2).

Como vimos em postagens anteriores aqui em nosso blog, a partir do século X se tornaram muito populares no Rito Romano as sequências, composições poéticas entoadas antes do Evangelho da Missa em honra do mistério celebrado [1].

No início do século X, com efeito, Notker Balbulus (†912), monge beneditino da Abadia de São Galo (Sankt Gallen), na Suíça, compilou 38 composições em seu Liber Sequentiarum [2].

Nesta postagem gostaríamos de apresentar a sétima sequência compilada por Notker, intitulada Festa Christi omnis (“A festa de Cristo”), para a Solenidade da Epifania do Senhor (In Epiphania Domini), celebrada pelas Igrejas do Oriente e o Ocidente no dia 06 de janeiro.

A jornada dos Magos a Belém, guiados pela estrela
(Leopold Kupelwieser)

Publicamos a seguir o texto original da sequência (em latim) e uma tradução nossa bastante livre (mais uma “adaptação” do que uma “tradução”), além de um breve comentário sobre o texto.

Como as demais composições de Notker, a sequência Festa Christi omnis não possui uma divisão em estrofes clara. Propomos uma divisão dos seus 40 versos em 10 estrofes de quatro ou seis versos, à exceção da primeira e da última, com apenas dois versos.

A divisão temática, por sua vez, é notória: após uma introdução (versos 1-6), contempla-se a visita dos Magos (vv. 7-16), o massacre dos Inocentes (vv. 17-24) e, por fim, o Batismo do Senhor (vv. 25-40).

A Solenidade da Epifania do Senhor, com efeito, contempla a “manifestação” de Cristo em um sentido amplo, embora com diferentes ênfases: no Ocidente se enfatiza a visita dos Magos ao Menino e no Oriente o Batismo do Senhor no Jordão.

Sequentia in Epiphania Domini: Festa Christi omnis

1. Festa Christi omnis
Christianitas celebret.

2. Quae miris sunt modis ornata
cunctisque veneranda populis
Per omnitenentis adventum
atque vocationem gentium.

3. Ut natus est Christus, est stella
magis visa lucida.
At illi, non cassam putantes
tanti signi gloriam.

4. Secum munera deferunt,
parvulo offerunt ut regi,
caeli quem sidus praedicat,
Atque aureo tumidi principis
lectulo transito Christi
praesepe quaeritant.

5. Hinc ira saevi Herodis fervida
invidi recens rectori genito
Bethlehem parvulos praecepit
ense crudeli perdere.

6. O Christe, quantum Patri exercitum
iuvenis, doctus ad bella maxima,
populis praedicans colligis,
sugens cum tantum miseris!

7. Anno hominis tricesimo
subtus famuli se incliti
inclinaverat manus Deus, consecrans
nobis baptisma in absolutionem criminum.

8. Ecce Spiritus in specie
ipsum alitis innocuae uncturus sanctis
prae omnibus visitat, semper ipsius
contentus mansione pectoris.

9. Patris etiam insonuit vox pia,
veteris oblita sermonis:
«Paenitet me fecisse hominem».
«Vere Filius es tu meus mihimet
placitus, in quo sum placatus,
hodie te, mi Fili, genui».

10. Huic omnes auscultate
populi praeceptori! [3].

Batismo de Cristo (Francesco Trevisani)
Note-se a presença do Pai e do Espírito Santo

Sequência da Epifania do Senhor: A festa de Cristo

1.  Que todos os cristãos celebrem
A festa de Cristo.

2. Ornada de formas maravilhosas
E venerada por todos os povos
Por causa do advento do Onipotente
E o chamado das nações.

3. Quando Cristo nasceu,
Uma estrela brilhante foi vista pelos Magos,
Que consideraram que a glória desse sinal
Não seria desprovida de significado.

4. Levaram consigo presentes,
Para oferecê-los à criança como Rei,
Conforme predito pela estrela no céu.
E passando junto ao leito do governante,
Inchado de ouro,
Buscam a manjedoura de Cristo.

5. Então acendeu-se a ira de Herodes
Que, invejoso do Rei recém-nascido,
Ordenou que as crianças de Belém
Fossem mortas por espada cruel.

6. Ó Cristo, que exército reúnes para o Pai,
Preparado para as maiores batalhas,
Ainda amamentando, pregas aos povos,
Junto a essas crianças tão frágeis!

7. No trigésimo da sua vida humana,
Deus se submete nas mãos do seu ilustre servo,
Consagrando para nós o Batismo
Para a remissão dos pecados.

8. Eis que o Espírito o visita,
Na forma de inocente pássaro,
Ungindo-o acima de todos os santos,
Contente de habitar para sempre em seu coração.

9. A piedosa voz do Pai também ressoou,
Esquecendo as antigas palavras:
“Arrependo-me de ter criado o homem”.
“Verdadeiramente tu és meu Filho,
O amado, em quem me comprazo;
Tu és meu Filho, Eu hoje te gerei”.

10. Ouvi, povos todos,
As palavras do vosso Mestre.

Adoração dos Magos (Peter Paul Rubens)

Breve comentário

a) Estrofes 1-2: Introdução

Os primeiros seis versos servem de “introdução” à sequência. Os versos 1-2 são um “convite ao louvor”: todos os cristãos são exortados a celebrar “a festa de Cristo”.

Os versos seguintes, por sua vez, fazem uma espécie de “elogio” da festa da Epifania, destacando sua beleza (“ornada de formas maravilhosas”) e seu alcance universal (“venerada por todos os povos”).

O “elogio” da festa inclui ainda o “motivo do louvor”: a vinda (adventus) de Cristo, referido no texto original como “Omnitenens” (Aquele que tudo abrange, Aquele que tudo contém), e o “chamado das nações”.

Com efeito, nessa festa celebramos como o Filho se manifestou aos gentios, representados pelos Magos, e aos judeus, testemunhas do seu Batismo no Jordão, convidando todos à conversão.

b) Estrofes 3-4: A visita dos Magos

A “epifania” (manifestação) do Senhor aos Magos do Oriente (Mt 2,1-12) é cantada nos versos 7-16. Como vimos, esse é o aspecto central da Solenidade da Epifania no Ocidente.

Os primeiros quatro versos dessa seção recordam o sinal da estrela que guiou os Magos, enquanto os seis versos seguintes narram sua jornada, levando presentes para o Menino.

Os últimos versos dessa seção, por sua vez, traçam um interessante paralelo entre Cristo e Herodes, que também é visitado pelos Magos à procura do recém-nascido: enquanto o Rei dos céus, anunciado pela estrela, foi reclinado em uma pobre manjedoura, o governante humano, o rei Herodes, repousa em um leito “inchado de ouro” (aureo tumidi principis lectulo).

A referência a um leito “inchado” de ouro poderia estar associada também à morte de Herodes. De acordo com o historiador judeu Flávio Josefo, com efeito, o corpo do rei estava “inchado” por uma doença, tendo uma morte bastante desagradável.

c) Estrofes 5-6: O massacre dos Inocentes

Como “eco” da visita dos Magos, os versos 17-24 cantam o “massacre dos Inocentes”, quando Herodes ordena matar os meninos de Belém, buscando eliminar o novo “Rei dos judeus” que havia nascido (Mt 2,16-18), traçando um paralelo com a morte dos meninos hebreus por ordem do rei do Egito, narrada no início do Livro do Êxodo (Ex 1,15-22).

Os primeiros quatro versos dessa seção atestam a “ira” e a “inveja” de Herodes, que ordena a morte dos meninos de Belém através de uma “cruel espada”.

Massacre dos Inocentes (Peter Paul Rubens)

Os seis versos seguintes, por sua vez, são uma espécie de “elogio” dos Santos Inocentes. Os versos na verdade celebram a Cristo que, embora sendo ainda uma criança lactente (“sugens”), já “prega aos povos” e reúne para o Pai um “exército” formado por essas crianças frágeis (cf. Lc 1,52).

Embora os meninos de Belém não tenham dado a vida por Cristo voluntariamente, sempre foram venerados como mártires, integrando o seu “exército”, como canta o hino Te Deum: “Vos louva... o luminoso exército dos vossos santos Mártires” (“Te mártirum candidátus laudat exércitus”).

d) Estrofes 7-10: O Batismo de Cristo

Por fim, os últimos versos da sequência (vv. 25-40) cantam o Batismo de Jesus no rio Jordão (Mt 3,13-17 e paralelos), aspecto central da Epifania (ou Teofania) no Oriente.

A “sétima estrofe” começa indicando que esse acontecimento tem lugar no trigésimo ano da sua vida terrena (cf. Lc 3,23), quando Cristo se submete ao seu ilustre servo, João Batista, aceitando ser batizado por ele.

A mesma estrofe aprofunda o significado desse gesto: se batismo de João era para a conversão e o perdão dos pecados (cf. Lc 3,3), e Jesus, sendo Deus, não tinha pecado, por que se sujeitou a esse gesto? A própria sequência responde: para consagrar o Batismo em nosso favor (cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 535-537.1223-1225).

A “oitava estrofe” prossegue destacando o caráter trinitário do Batismo de Cristo, evidenciando a presença do Espírito Santo na forma de “inocente pássaro”, isto é, na forma de pomba, símbolo que remete à aliança (cf. Gn 8,8-12).

O texto recorda ainda a ação do Espírito, que unge o Filho “acima de todos os santos” e habita “para sempre em seu coração”.

Também a “nona estrofe” evidencia o caráter trinitário desse acontecimento, recordando a “piedosa voz do Pai” que ressoa sobre as águas, e que “esquece” as palavras que teriam sido ditas antes do dilúvio: “Arrependo-me de ter criado o homem” (cf. Gn 6,6).

Em contrapartida, a composição reproduz as palavras do Pai no Batismo de Cristo: “Verdadeiramente tu és meu Filho, o amado, em quem me comprazo” (Mt 3,17 e paralelos), junto com as palavras do Salmo: “Tu és meu Filho, Eu hoje te gerei” (Sl 2,7).

Por fim, a “décima estrofe” é um dístico que nos exorta a ouvir as palavras de Cristo, nosso Mestre, traçando um paralelo com o episódio da Transfiguração (cf. Mt 17,1-9 e paralelos), no qual a voz do Pai novamente confirma a filiação divina de Cristo e nos exorta a escutá-lo. Portanto, “ouvi, povos todos, as palavras do vosso Mestre”.

Batismo de Cristo (Peter Paul Rubens)

Notas:

[1] A reforma litúrgica realizada após o Concílio de Trento (séc. XVI) infelizmente reduziu as sequências a apenas quatro: Victimae paschali laudes (Domingo de Páscoa); Veni, Sancte Spiritus (Pentecostes); Lauda Sion (Corpus Christi) e Dies irae (Missas dos defuntos). Em 1727 seria acrescentada a sequência Stabat Mater dolorosa (Memória de Nossa Senhora das Dores).
A reforma litúrgica do Concílio Vaticano II transformou o Dies irae em hino da Liturgia das Horas para a última semana do Tempo Comum, conservando as outras quatro sequências para a Missa.

[2] Já falamos aqui em nosso blog sobre sete das sequências compiladas por Notker:
Summi triumphum Regis (Ascensão do Senhor);
Congaudent angelorum chori (Assunção de Maria);
Stirpe Maria regia (Natividade de Maria);
Sancti Baptistae, Christi praeconis (Natividade de São João Batista);
Petre, summe Christi pastor (São Pedro e São Paulo).

Outras sequências apresentadas foram:
Zyma vetus expurgetur (Páscoa) - Adão de São Vítor (séc. XII);
Ave Maria, Virgo serena (Anunciação) - composição anônima (séc. XI);
Decet huius cunctis horis (Visitação de Maria) - Johann von Jenstein (séc. XIV);
Psallite regi nostro (Martírio de São João Batista) - Gottschalk de Aachen (séc. XI).

[3] NOTKER Balbulus. Liber Sequentiarum, cap. VII: In Epiphania Domini. in: MIGNE, J. P. Patrologiae: Cursus Completus, Series Latina, vol. 131, p. 1008.

Imagens: Wikimedia Commons.

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