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sexta-feira, 16 de junho de 2023

Homilia do Papa João Paulo II: Sagrado Coração (Ano A)

No dia 28 de junho de 1984 o Papa João Paulo II celebrou a Santa Missa da Solenidade do Sagrado Coração de Jesus no Hospital Gemelli em Roma por ocasião dos 25 anos da morte do Padre Agostino Gemelli [1].

Confira a seguir sua homilia, na qual reflete sobre as leituras da Solenidade para o Ano A (Dt 7,6-11; Sl 102; 1Jo 4,7-16; Mt 11,25-30).

Solenidade do Sagrado Coração de Jesus (Ano A)
 XXV Aniversário da Morte do Padre Agostino Gemelli
Homilia do Papa João Paulo II
Hospital Universitário Agostino Gemelli
Quinta-feira, 28 de junho de 1984

1. Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11,29).
É Cristo que fala. Com os olhos da fé nós O contemplamos na concretude da sua humanidade, graças à qual Ele é em tudo semelhante a nós, menos no pecado (cf. Hb 4,15). Semelhante em tudo e, portanto, também no fato de ter um coração que bate em seu peito, ativando nas suas veias o fluxo vital da circulação sanguínea. É precisamente a este coração que Ele se refere quando fala a nós, aqui reunidos em torno ao altar: “Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração”.

Hoje, Solenidade litúrgica do Sagrado Coração, nesta instituição universitária e hospitalar dedicada ao Coração de Jesus, somos convidados a meditar sobre o mistério desse Coração divino, no qual pulsa o amor infinito de Deus pelo homem, por todo homem, por cada um de nós. Aquele amor que já Moisés testemunhava diante dos seus compatriotas, recordando-lhes: “O Senhor se afeiçoou a vós e vos escolheu, não por serdes mais numerosos que os outros povos - na verdade sois o menor de todos - mas, sim, porque o Senhor vos amou” (Dt 7,7-8). Aquele amor no qual o Apóstolo João viu a síntese de todo discurso sobre Deus, a ponto de poder afirmar: “Quem não ama, não chegou a conhecer Deus, pois Deus é amor” (1Jo 4,8).


Como não exclamar com o salmista: “O Senhor é bondoso e compassivo” (Sl 102,8)? A Liturgia de hoje põe em nossos lábios as expressões adequadas para manifestar nosso reconhecimento diante de uma generosidade tão imprevisível e estupenda: “Bendize, ó minha alma, ao Senhor, e todo o meu ser, seu santo nome! (...) Pois Ele te perdoa toda culpa, e cura toda a tua enfermidade; da sepultura Ele salva a tua vida e te cerca de carinho e compaixão” (vv. 1.3-4).

2. Meditemos sobre as “maravilhas” do amor de Deus contemplando o mistério do Coração de Cristo. É conhecida a riqueza de ressonâncias antropológicas que, na linguagem bíblica, desperta a palavra “coração”. Através dela são evocados não só os sentimentos próprios da esfera afetiva, mas também todas aquelas recordações, pensamentos, raciocínios, projetos, que constituem o mundo mais íntimo do homem. O coração na cultura bíblica - e também em grande parte das outras culturas - é aquele centro essencial da personalidade no qual o homem está diante de Deus como totalidade de corpo e espírito, como “eu” que pensa, quer e ama, como centro no qual a memória do passado se abre ao planejamento do futuro.

Do coração humano certamente se interessam o anatomista, o fisiologista, o cardiologista, o cirurgião... e sua contribuição científica - me alegra reconhecê-lo em uma sede como esta - possui grande importância para o sereno e harmonioso desenvolvimento do homem no curso da sua existência terrena. Mas o significado segundo o qual nos referimos agora ao coração transcende tais considerações parciais para alcançar o santuário da autoconsciência pessoal, no qual se resume e se condensa a essência concreta do homem, o centro no qual o indivíduo decide por si mesmo diante dos outros, do mundo, do próprio Deus.

Só do homem pode dizer-se propriamente que tem um coração; não dos espíritos puros, obviamente, nem tampouco dos animais. O “redire ad cor” (retornar ao coração) a partir da dispersão nas múltiplas experiências exteriores é uma possibilidade reservada unicamente ao homem.

3. Pela fé sabemos que, em um determinado momento da história, “o Verbo de Deus se fez carne e veio habitar entre nós” (cf. Jo 1,14). Desde esse momento Deus começou a amar com coração humano. Um coração verdadeiro, capaz de bater de modo intenso, terno, apaixonado. O Coração de Jesus verdadeiramente experimentou sentimentos de alegria diante do esplendor da natureza, da inocência das crianças, do olhar de um jovem puro; sentimentos de amizade para com os Apóstolos, Lázaro, os discípulos; sentimentos de compaixão pelos enfermos, os pobres e tantas pessoas provadas pelo luto, pela solidão, pelo pecado; sentimentos de indignação contra os vendedores do templo, os hipócritas, os profanadores da inocência; sentimentos de angústia diante da perspectiva do sofrimento e do mistério da morte. Não há sentimento autenticamente humano que o Coração de Jesus não tenha experimentado.

Hoje nos detemos em adorante oração diante desse Coração, no qual o Verbo eterno quis experimentar diretamente a nossa miséria, “não considerando o ser igual a Deus uma usurpação, mas esvaziando-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens” (cf. Fl 2,6-7). Do infinito poder que é próprio de Deus o Coração de Cristo só conservou o “poder impotente” do amor que perdoa. E na solidão radical da cruz aceitou ser atravessado pela lança do centurião, para que da ferida aberta jorrasse sobre a “sujeira” do mundo a torrente inesgotável de uma misericórdia que lava, purifica e renova.

No Coração de Cristo se encontram, pois, riqueza divina e pobreza humana, poder da graça e fragilidade da natureza, chamado de Deus e resposta do homem. N’Ele a história da humanidade tem o seu “ponto de apoio” definitivo, porque “o Pai deu ao Filho o poder de julgar” (cf. Jo 5,22). Ao Coração de Cristo, portanto, deve referir-se todo coração humano.

4. Este nosso coração! A Bíblia não poupa expressões pessimistas acerca do coração humano, no qual se esconde muitas vezes a hipocrisia, como no caso daqueles que “falam sobre paz com o seu próximo, mas têm o mal no coração” (Sl 27,3); ou se insinua a infidelidade à aliança, como lamenta o salmista em relação ao povo hebreu: “Seus corações enganadores eram falsos e, infiéis, eles rompiam a aliança” (Sl 77,37). Quem não recorda a amarga constatação: “Este povo me honra só com os lábios, enquanto seu coração está longe de mim” (Is 29,13)? O homem não deve esquecer, pois, que se é capaz de enganar seus semelhantes, o mesmo não sucede com Deus, porque “o homem vê as aparências, mas o Senhor olha o coração” (1Sm 16,7).

Altar da igreja do Sagrado Coração junto ao Hospital Gemelli

Diante da realidade decepcionante de um coração “teimoso e rebelde” (Jr 5,23), permanece apenas uma esperança: a de uma iniciativa divina que renove o coração humano e o torne novamente capaz de amar a Deus e aos irmãos com ímpeto sincero e generoso. É o que o Senhor prometeu pela boca do profeta Ezequiel: “Eu vos purificarei de todas as impurezas e de todos os ídolos.  Eu vos darei um coração novo e porei um espírito novo dentro de vós. Arrancarei do vosso corpo o coração de pedra e vos darei um coração de carne” (Ez 36,25-26).

5. A promessa foi cumprida em Cristo. No encontro com Ele é oferecida ao homem a possibilidade de um coração novo, um coração não mais “de pedra”, mas “de carne”. Para consegui-lo, todavia, é preciso antes de tudo “renascer da água e do Espírito”, como foi dito, uma noite, a “um homem chamado Nicodemos” (cf. Jo 3,1-21); e é preciso também colocar-se na escola de Jesus para aprender d’Ele como se ama concretamente. Isto é precisamente o que Ele mesmo pediu. Ele disse, com efeito: “Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração”. Com a palavra e com o exemplo Cristo nos ensinou a mansidão e a humildade como qualidades indispensáveis para amar realmente; ensinou-nos que o Filho do Homem “não veio para ser servido, mas para servir e dar a própria vida como resgate em favor de muitos” (Mt 20,28). O amor autêntico não se serve do outro, mas sim serve o outro, consumindo-se por ele até mesmo ao sacrifício total de si e das próprias coisas.

6. É precisamente neste anular-se por amor que reside o segredo da verdadeira sabedoria, aquela que chega a entrever algo do mistério de Deus e a perceber a sabedoria superior das normas que brotam da sua vontade três vezes santa. Jesus o revela não sem um tremor de íntima alegria: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado” (Mt 11,25-26).

Nós ouvimos novamente estas palavras em um ambiente que por instituição é dedicado aos estudos superiores de medicina, entre pessoas que fizeram da investigação científica a razão da sua vida. Ouvem-nas os muitos jovens aqui reunidos, que iniciaram os estudos universitários movidos pelo desejo de fazer próprias as conquistas de uma disciplina que tantos e tão extraordinários progressos realizou neste nosso século. Há talvez nas palavras de Cristo alguma expressão de desconfiança em relação ao empenho com o qual o homem se lança em direção ao conhecimento cada vez mais profundo de si e do mundo?

Certamente não, uma vez que, como Verbo de Deus, Cristo é a sabedoria personificada e, como homem, o evangelista o apresenta empenhado em crescer “em sabedoria”, além de “em idade e em graça diante de Deus e diante dos homens” (cf. Lc 2,52). A Igreja nunca teve dúvidas a respeito e é por isso que, no curso da sua história milenária, buscou sempre suscitar em todos os lugares centros de estudos não só sagrados, mas também profanos, na convicção de que todo progresso no conhecimento da verdade constitui objetivamente uma homenagem a Deus, Verdade subsistente, “qua veritate omnia vera sunt vera”, para dizê-lo com Santo Tomás de Aquino (In Evangelium Ioannis I, lec. 1, n. 33).

Acaso não estamos reunidos aqui esta tarde para recordar, no XXV aniversário da sua morte, o fundador de um dos mais prestigiosos destes centros de estudo? Quando o Padre Agostino Gemelli deu início à Universidade Católica do Sagrado Coração a viu como “obra destinada ao progresso da vida sobrenatural dos homens, seja através da educação dos jovens, seja através da busca e da defesa da verdade” (Agostino Gemelli, Testamento, Páscoa de 1954). O mesmo ideal o moveu, no último trecho da sua vida, a empenhar-se na realização desta Faculdade de Medicina com seu Hospital, que sentiu como a coroação do sonho que havia brotado tantos anos antes no seu coração de médico e sacerdote, desejoso de criar nos quartos do hospital “uma atmosfera na qual o enfermo perceba um vínculo entre si e aqueles que o curam”.

Não é, pois, a verdadeira ciência que impede ao homem o conhecimento de Deus e de seu mistério. A ciência que se sente serva da verdade e não dona, que não perde o sentido do mistério, porque sabe que, além do horizonte limitado que pode alcançar com seus próprios meios, existem perspectivas sem limite que se perdem naquele abismo de luz que tem por nome “Deus”, essa ciência não só não impede, mas, antes, dispõe à revelação dos segredos de Deus.

A esta ciência estão chamados quantos, como vós, ilustres professores e caros estudantes, fizeram do seu compromisso de estudo também uma escolha de fé. Formar parte de uma universidade católica, que traz o nome do Sagrado Coração de Jesus, é um fato que vos honra e ao mesmo tempo vos compromete altamente. Quem, senão vós, deverá entrar na escola daquele Coração divino, que com os seus batimentos marca o ritmo da história do mundo e da história pessoal de cada um de nós? Naquele Coração “no qual estão encerrados todos os tesouros da sabedoria e da ciência” (Cl 2,3). Que perspectiva para quem fez da busca da verdade a razão da sua vida!

7. Mas podeis recorrer ao Coração divino de Jesus também vós, caríssimos enfermos, que lutais contra a enfermidade que vos aflige e necessitais de tanta força moral para não ceder à tentação do abatimento e da desconfiança. Ele não disse: “Vinde a mim todos vós que estais cansados e fatigados sob o peso dos vossos fardos, e Eu vos darei descanso” (Mt 11,28)?

Estas palavras, impregnadas de tanta doçura humana, Ele as repete hoje também a vós, enfermos, que neste Hospital encontrais assistência atenta e cuidados adequados; as repete a quantos se dedicam ao vosso serviço com diligente atenção, como enfermeiras e enfermeiros; as repete a vossos familiares, que compartilham convosco a inquietude pela enfermidade e à esperança de uma rápida recuperação; as repete a todos nós: “Vinde a mim”.

Se estamos “cansados e fatigados”, acolhamos o convite tão amorosamente insistente: vamos a Ele, aprendamos d’Ele, confiemos n’Ele. Experimentaremos a verdade da promessa: encontraremos aquele “descanso da alma” ao qual anseia nosso coração cansado. Assim seja. 

Estátua de São João Paulo II diante do Hospital Gemelli

Tradução nossa a partir do original italiano. Fonte: Santa Sé.

Nota:
[1] Agostino Gemelli (†1959) foi um sacerdote, médico e psicólogo italiano que fundou em 1921 a Universidade Católica do Sagrado Coração, em Milão. Após sua morte foi fundado em Roma o Hospital que leva seu nome: Policlinico Universitario Agostino Gemelli, sob responsabilidade da Faculdade de Medicina da Universidade Católica do Sagrado Coração. O Hospital Gemelli acolheu diversas vezes os Papas, sobretudo São João Paulo II, após o atentado em 1981 e ao longo da sua enfermidade.

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