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sábado, 2 de outubro de 2021

Hinos da Memória dos Anjos da Guarda: Vésperas

No dia 02 de outubro a Igreja de Rito Romano celebra a Memória dos Santos Anjos da Guarda, instituída pelo Papa Clemente X em 1670.

Nessa Memória são propostos três hinos próprios para a Liturgia das Horas:
Ofício das Leituras: Aetérne rerum cónditor (Eterno Autor do mundo);
Laudes: Orbis patrátor óptime (Ó Deus, criando o mundo);
Vésperas: Custódes hóminum psállimus (Aos anjos cantemos).

Em nossas postagens anteriores já analisamos os dois primeiros. Agora concluímos esta breve série de postagens com o hino das Vésperas (oração da tarde): Custódes hóminum psállimus (Aos anjos cantemos), atribuído a São Roberto Belarmino, Bispo e Doutor da Igreja (1542-1621).

Anjo da Guarda
(Pietro de Cortona - séc. XVII)

Confira, pois, a seguir o texto original do hino em latim e sua tradução oficial para o português do Brasil, seguidos de alguns comentários sobre a sua teologia.

Ofício das Leituras: Custódes hóminum psállimus

Custódes hóminum psállimus ángelos,
natúrae frágili quos Pater áddidit
caeléstis cómites, insidiántibus
ne succúmberet hóstibus.

Nam quod corrúerit próditor ángelus,
concéssis mérito pulsus honóribus,
ardens invídia péllere nítitur
quos caelo Deus ádvocat.

Huc, custos, ígitur pérvigil ádvola,
avértens pátria de tibi crédita
tam morbos ánimi quam requiéscere
quicquid non sinit íncolas.

Sanctae sit Tríadi laus pia iúgiter,
cuius perpétuo númine máchina
triplex haec régitur, cuius in ómnia
regnat glória saecula. Amen [1].

Ofício das Leituras: Aos anjos cantemos

Aos anjos cantemos, que guardem a todos,
que aos homens, tão frágeis, Deus Pai quis juntar;
e assim assistidos, na terra lutando,
no rude combate não venham tombar.

Pois eis que um dos anjos, roído de orgulho,
os planos divinos não quis aceitar:
e aos homens, chamados à pátria celeste,
na mesma revolta deseja arrastar.

Ó Anjo da Guarda, vem logo assistir-nos,
cumprir, vigilante, tão grande missão:
afasta da terra pecados, doenças,
conserva nos lares a paz e a união!

Louvor seja dado ao Deus uno e trino,
à suma Trindade, por mando de quem
os anjos governam, dirigem o mundo,
e à pátria onde vivem nos levam também [2].

São Roberto Belarmino: a ele atribui-se a composição do hino

Comentário:

Diferentemente dos outros dois hinos dessa Memória, que possuem seis estrofes de quatro versos, o hino das Vésperas possui apenas quatro estrofes de quatro versos.

Da mesma forma, enquanto os dois hinos anteriores são dirigidos ao Deus Criador, o nosso hino tem os próprios anjos como destinatários, referindo-se à Trindade apenas na conclusão.

a) 1ª estrofe

A 1ª estrofe do poema compõe a “introdução” ou “convite ao louvor”: “Custódes hóminum psállimus ángelos”, isto é, “Louvemos os anjos, guardiões dos homens”. O verbo psallere, usado aqui, pode ser traduzido como “cantar”, “louvar”, “entoar um salmo”.

Esse convite ao louvor, por sua vez, já introduz os “motivos do louvor”, que será desenvolvidos nessa e na próxima estrofe: “natúrae frágili quos Pater áddidit caeléstis cómites, insidiántibus ne succúmberet hóstibus” - “ que o Pai confiou como celestes companheiros à nossa frágil natureza, para que não sucumbíssemos às insídias do inimigo”.

Recordemos mais uma vez a célebre expressão de São Basílio Magno: “Cada fiel tem ao seu lado um anjo como protetor e pastor, para conduzi-lo à vida” (cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 336; Ex 23,20; Sl 90,11).

b) 2ª estrofe

É contra as insídias do “inimigo”, com efeito, que nos adverte a 2ª estrofe: trata-se do “anjo traidor”, chamado Satanás ou Diabo (cf. Catecismo, nn. 391-395).

O anjo caído
(Alexandre Cabanel - séc. XIX)

Nam quod corrúerit próditor ángelus, concéssis mérito pulsus honóribus, ardens invídia péllere nítitur quos caelo Deus ádvocat” - “Pois o anjo traidor, por haver caído, com razão despojado de suas honras, ardente de inveja busca extraviar aqueles que Deus chama ao céu”.

A tradução oficial para o Brasil, por sua vez, afirma a mesma coisa com outras palavras: “Pois eis que um dos anjos, roído de orgulho, os planos divinos não quis aceitar: e aos homens, chamados à pátria celeste, na mesma revolta deseja arrastar”.

O grande poeta italiano Dante Alighieri, em sua obra magna, a Divina Comédia, define a Trindade como “o divino poder, a suma sabedoria e o primeiro amor” [3]. Em contrapartida, Dante descreve Satanás como uma “paródia” da Trindade, com três faces que representariam sua impotência, sua ignorância e seu ódio [4]. É a luz desses três atributos nefastos que ele deseja arrastar-nos à sua mesma ruína.

c) 3ª estrofe

A 3ª estrofe, que conclui o “corpo do hino”, após os “motivos do louvor” apresentados nas duas estrofes anteriores, acrescenta uma súplica ao Anjo da Guarda.

O primeiro verso da estrofe é a invocação: “Huc, custos, ígitur pérvigil ádvola,” - “Para cá, pois, ó guardião, acorre vigilante”. “Advolare” é, literalmente, “vir voando”, “vir com pressa”.

Escultura do Anjo da Guarda na Abadia da Santa Cruz (Áustria)

Os três versos seguintes, por sua vez, compõem a súplica propriamente dita: “avértens pátria de tibi credita tam morbos ánimi quam requiéscere quicquid non sinit íncolas” - “afasta da pátria a ti confiada tanto as enfermidades da alma quanto qualquer coisa que impeça que seus habitantes repousem”.

A referência à “pátria” remete à crença de que não apenas as pessoas possuem seu Anjo da Guarda, mas também sobre os lugares. Como vimos em nossa postagem sobre a história do culto aos anjos, as primeiras festas em honra dos Anjos da Guarda os invocavam como protetores das cidades e nações.

d) 4ª estrofe

Como afirmamos anteriormente, a conclusão do poema, como de costume nos hinos da Liturgia das Horas, é uma doxologia, isto é, uma breve fórmula de louvor, em honra da Santíssima Trindade:

Sanctae sit Tríadi laus pia iúgiter, cuius perpétuo númine máchina triplex haec régitur, cuius in ómnia regnat glória saecula. Amen” - “Um piedoso louvor seja dado para sempre à Santa Trindade, cuja perpétua vontade rege esta tríplice máquina, e cuja glória reina por todos os séculos. Amém”.

A “tríplice máquina” aqui se refere ao universo: o céu, a terra e o que está sob a terra (cf. Fl 2,10; Ap 5,3). Quanto ao termo “iúgiter”, usado aqui no sentido de “para sempre”, “continuamente”, este remete à água corrente, ao fluxo perene de um rio (jugis), lembrando o rio de água viva que brota do trono do Cordeiro em Ap 22.

A tradução brasileira, por sua vez, une os anjos a essa doxologia final, recordando que, como servidores e mensageiros de Deus, eles colaboram no governo do mundo (doutrina desenvolvida sobretudo por Santo Tomás de Aquino):

“Louvor seja dado ao Deus uno e trino, à suma Trindade, por mando de quem
os anjos governam, dirigem o mundo, e à pátria onde vivem nos levam também”.

A visão de Dante do Paraíso, com os anjos em volta da Trindade
(Gustave Doré - Paradiso XXXI - séc. XIX)

Notas:


[2] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. IV, p. 1340.

[3] “La divina podestate, la somma sapienza e 'l primo amore”; Inferno, canto III, versos 05-06.

[4] cf. Inferno, canto XXXIV.

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