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sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Hinos da Memória dos Anjos da Guarda: Laudes

A Memória dos Santos Anjos da Guarda, que o Rito Romano celebra no dia 02 de outubro, possui três hinos próprios para a Liturgia das Horas:
Ofício das Leituras: Aetérne rerum cónditor (Eterno Autor do mundo);
Laudes: Orbis patrátor óptime (Ó Deus, criando o mundo);
Vésperas: Custódes hóminum psállimus (Aos anjos cantemos).

Após apresentar o hino do Ofício em nossa última postagem, propomos agora o hino das Laudes (oração da manhã): Orbis patrátor óptime (Ó Deus, criando o mundo), composição anônima realizada entre os séculos XVI e XVII.

Como vimos em nossa postagem sobre a história do seu culto, é no final do século XVII, com efeito, que o Papa Clemente X institui a Memória dos Santos Anjos da Guarda para toda a Igreja (1670).

Anjo da Guarda
(Domenico Fetti - séc. XVII)

Confira, pois, a seguir o texto original do hino (em latim) e sua tradução oficial para o português do Brasil, além de alguns comentários sobre a sua teologia.

Ofício das Leituras: Orbis patrátor óptime

Orbis patrátor óptime,
quaecúmque sunt qui déxtera
magna creásti, nec regis
minóre providéntia,

Adésto supplicántium
tibi reórum coetui,
lucísque sub crepúsculum
lucem novam da méntibus.

Tuúsque nobis ángelus,
signátus ad custódiam,
hic adsit, a contágio
qui críminum nos prótegat.

Nobis dracónis aemuli
calúmnias extérminet,
ne rete frauduléntiae
incáuta nectat péctora.

Metum repéllat hóstium
nostris procul de fínibus;
pacem secúndet cívium
fugétque pestiléntiam.

Deo Patri sit glória,
qui, quos redémit Fílius
et Sanctus unxit Spíritus,
per ángelos custódiat. Amen [1].

Ícone bizantino do Anjo da Guarda sustentando uma alma

Ofício das Leituras: Ó Deus, criando o mundo

Ó Deus, criando o mundo,
poder manifestais;
porém, ao governá-lo,
o vosso amor mostrais.

Aos que hoje vos suplicam
estai sempre presente:
que a luz da nova aurora
renove a nossa mente.

O mesmo anjo que um dia
por guarda nos foi dado
consiga a vida toda
livrar-nos do pecado.

Em nós ele extermine
as forças do inimigo;
que a fraude em nosso peito
jamais encontre abrigo.

Mandai para bem longe
a peste, a fome, a guerra:
haja entre nós justiça,
a paz brote da terra.

Salvai por vosso Filho
a nós, no amor ungidos,
sejamos pelos anjos
Deus trino, protegidos! [2].

Comentário:

Assim como o hino do Ofício, o hino das Laudes do dia 02 de outubro é composto por seis estrofes de quatro versos. Estão ausentes, porém, as rimas, que na tradução oficial para o português do Brasil, como de costume, foram introduzidas entre os versos pares.

A composição segue também a estrutura básica dos hinos da Liturgia das Horas: uma introdução (1ª estrofe); o “corpo do hino” (2ª-5ª estrofes), centrado aqui na súplica a Deus pela intercessão dos anjos; e a conclusão (6ª estrofe), na forma de uma doxologia (breve fórmula de louvor) em honra da Santíssima Trindade.

a) 1ª estrofe

Assim como o hino do Ofício, Aetérne rerum cónditor, o hino das Laudes é dirigido a Deus como Criador. Como vimos em nossa postagem anterior, a fé na existência dos anjos é uma consequência da fé em Deus como “criador do céu e da terra, de todas as coisas visíveis e invisíveis” (Credo Niceno-Constantinopolitano; cf. Catecismo da Igreja Católica, nn. 325-336).

Deus descansa e abençoa os anjos
(Mosaico da Basílica de São Marcos, Veneza - séc. XIII)

Sobre o tema da criação, bastante frequente nos hinos da Liturgia das Horas, é preciso esclarecer que essa não é um ato isolado do Pai, mas sim obra da Trindade (cf. nn. 290-292 do Catecismo).

Portanto, no original latino o hino é dirigido a toda a Trindade, Pai e Filho e Espírito Santo. Na tradução oficial para o Brasil, por sua vez, o destinatário do hino é especificamente o Pai, como fica claro na última estrofe (“Salvai por vosso Filho...”).

O primeiro verso inicia com a expressão que dá nome ao hino “Orbis patrátor óptime”, isto é, “Autor ótimo do mundo” ou “Autor supremo do mundo”.

Toda a primeira estrofe, com efeito, louva a ação criadora de Deus: “quaecúmque sunt qui déxtera magna creásti, nec regis minóre providéntia” - “que criaste todas as coisas com tua grande destra, e as reges com não menor providência”. Sobre a Providência Divina, cf. os nn. 302-314 do Catecismo.

A “grande destra” (déxtera magna), isto é, a “poderosa mão direita” de Deus, e a sua providência são expressas na tradução brasileira através do binômio poder-amor. Vale recordar aqui a oração do dia do XXVI Domingo do Tempo Comum: “Ó Deus, que mostrais vosso poder sobretudo no perdão e na misericórdia...” [3].

b) 2ª estrofe

A partir da 2ª estrofe entramos no “corpo do hino”, que se estende até a 5ª estrofe, centrado na súplica a Deus pela intercessão dos anjos.

A 2ª estrofe introduz as súplicas e situa-nos na hora litúrgica de Laudes, dada a referência à “nova luz”, isto é, ao nascer do sol:

- “Adésto supplicántium tibi reórum coetui”: “Assiste a assembleia de pecadores que te suplica”. “Adésto” pode ser traduzido tanto como “assistir” (no sentido de “prestar auxílio”) quanto como “estar presente”, “visitar”. A “assembleia dos pecadores”, por sua vez, é referida aqui literalmente como “assembleia dos réus” (“reórum coetui”).

O Anjo da Guarda afasta a alma das trevas para conduzi-la à luz
(Giovanni Antonio Galli, o Spadarino - séc. XVII)

- “Lucísque sub crepúsculum lucem novam da méntibus” - “Dá uma luz nova às mentes (ou às almas) que jazem nas trevas”. É notória aqui a referência ao cântico evangélico das Laudes, o Benedictus (Lc 1,68-79): “[nosso Deus] sobre nós fará brilhar o Sol nascente, para iluminar a quantos jazem entre as trevas e na sombra da morte estão sentados” (vv. 78-79).

c) 3ª estrofe

“Cada fiel tem ao seu lado um anjo como protetor e pastor, para conduzi-lo à vida”. É à luz dessa célebre frase de São Basílio Magno (citada no n. 336 do Catecismo) que na 3ª estrofe cada um de nós, que cantamos o hino, invocamos a intercessão do nosso Anjo da Guarda:

Tuúsque nobis ángelus, signátus ad custódiam, hic adsit, a contágio qui críminum nos prótegat” - “O teu anjo, que assignaste a nós como guardião (ou protetor), esteja aqui presente para proteger-nos do contágio do crime (ou do pecado, da culpa)”.

d) 4ª estrofe

Prossegue na mesma linha a 4ª estrofe, suplicando a intercessão do Anjo da Guarda para proteger-nos da ação do Diabo (o divisor) ou Satanás (o tentador):

Nobis dracónis aemuli calúmnias extérminet, ne rete frauduléntiae incáuta nectat péctora” - “[Que o Anjo da Guarda] extermine em nós as calúnias do dragão adversário (ou serpente inimiga), para que não prenda na sua rede de engano (ou rede fraudulenta) os corações incautos (ou imprudentes)”.

e) 5ª estrofe

Por fim, concluindo o “corpo do hino”, a 5ª estrofe invoca a intercessão dos Anjos da Guarda não apenas sobre os indivíduos, mas também sobre os lugares. Como vimos em nossa postagem sobre a história do seu culto, as primeiras festas em honra dos Anjos da Guarda os invocavam como protetores das cidades e nações.

Anjo da Guarda do Reino de Valência
(Juan de Juanes - séc. XVI)
Em Valência foi instituída a primeira festa em honra do Anjo da Guarda (1411)

Assim, o poema pede aos anjos que “afastem para longe de nossos confins o medo do inimigo” (“Metum repéllat hóstium nostris procul de fínibus”). A tradução oficial para o Brasil, por sua vez, especifica os “ataques do inimigo”: “a peste, a fome, a guerra”.

Prosseguem os dois últimos versos dessa estrofe: “pacem secúndet cívium fugétque pestiléntiam” - “concedei a paz aos cidadãos e afastai as epidemias”.

f) 6ª estrofe

Como afirmamos anteriormente, a última estrofe dos hinos da Liturgia das Horas costuma ser uma doxologia, isto é, uma breve fórmula de louvor, em honra da Santíssima Trindade:

Deo Patri sit glória, qui, quos redémit Fílius et Sanctus unxit Spíritus, per ángelos custódiat. Amen” - “Seja dada glória ao Pai, cujo Filho nos redimiu e o Santo Espírito nos ungiu: que Ele nos guarde (ou nos proteja) por meio dos anjos. Amém”.

Cabe destacar a tradução oficial para o Brasil, que invoca o Espírito Santo como o próprio Amor (que, portanto, deveria ser escrito com letra maiúscula): “Salvai por vosso Filho a nós, no Amor ungidos, sejamos pelos anjos Deus trino, protegidos!”.

É Santo Agostinho, com efeito, à luz da afirmação da 1ª Carta de João: “Deus é amor” (1Jo 4,8.16), que se refere à Trindade como “Aquele que ama” (o Pai), “Aquele que é amado” (o Filho) e “o Amor” (o Espírito Santo) [4].

O Anjo da Guarda conduz a alma à Trindade
(Domenico Zampieri, o Domenichino - séc. XVII)

Notas:


[2] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. IV, p. 1337.

[3] MISSAL ROMANO, Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 371. Essa oração remonta ao Sacramentário Gelasiano (séc. VII-VIII). Da mesma forma, afirma Santo Tomás de Aquino: “É próprio de Deus usar de misericórdia e, nisto, se manifesta de modo especial a sua onipotência” (TOMÁS DE AQUINO, Summa theologiae, II-II, q. 30, a. 4; in: PAPA FRANCISCO, Misericordiae Vultus: Bula de Proclamação do Jubileu Extraordinário da Misericórdia, 2015, n. 06).

[4] cf. AGOSTINHO. A Trindade (VIII, 10 - IX, 4). São Paulo: Paulus, 1995, pp. 284-294. Coleção: Patrística, 07.

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