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sexta-feira, 9 de julho de 2021

Leitura litúrgica do Livro de Oseias

“Quero misericórdia e não sacrifício” (Os 6,6)

Após analisar aqui em nosso blog o Livro de Amós (Am), cabe agora estudar em nossa série sobre a leitura da Sagrada Escritura nas celebrações litúrgicas do Rito Romano o outro profeta que exerceu o seu ministério no Reino do Norte (Israel) durante o século VIII a. C.: Oseias (Os).

1. Breve introdução ao Livro de Oseias

Assim como em Amós, o primeiro versículo do Livro de Oseias nos situa no reinado de Jeroboão II em Israel. Porém, enquanto Amós menciona apenas Ozias como rei de Judá, Oseias cita também Joatão, Acaz e Ezequias, indicando que sua atuação profética se estendeu até próximo à queda do Reino do Norte em 722 a. C..

"Profeta Oseias" de Aleijadinho
(Santuário de Bom Jesus de Matosinhos - MG)

O livro sofreu muitas alterações ao longo da história, sobretudo com o acréscimo de oráculos de salvação. Portanto, a divisão da obra não encontra unanimidade entre os estudiosos. Uma proposta é:
a) Os 1–3: a relação entre Deus e Israel simbolizada pelo matrimônio;
b) Os 4–11: acusações contra o falso culto e a falsa política de Israel;
c) Os 12–14: queda e restauração de Israel.

Cada uma destas três partes começa com um rib, um litígio ou processo (Os 2,4; 4,1; 12,3), e conclui com um oráculo de salvação (3; 11,8-11; 14).

A primeira parte é marcada por uma alegoria: através do casamento do profeta com uma mulher infiel se representa a relação de Israel com Deus. Ainda que o povo seja infiel, cedendo à idolatria, Deus permanece fiel. Duas palavras sintetizam a sua ação: emet (verdade, fidelidade) e hesed (amor, misericórdia).

Na segunda parte, Deus “abre um processo” contra Israel. Aqui se encontram as advertências do profeta contra o culto desvinculado do compromisso de conversão - tema já tratado por Amós - e contra a política de Israel.

Aqui o profeta se refere à guerra siro-efraimita (734-732 a. C.), uma coalizão de Israel (chamado aqui Efraim, em referência à principal das tribos do norte) com o reino de Damasco contra a Assíria. Como o rei Acaz de Judá se recusou a participar da aliança, foi atacado por Israel, ação condenada como fratricídio por Oseias (Os 5,8–6,6).

Após a Assíria tomar o reino de Damasco, Israel se submete, à custa de tributos. Porém, só consegue adiar o inevitável: dez anos após o fim da guerra, o Reino do Norte será destruído (722 a. C.). Neste período, portanto, é fortemente influenciado pela Assíria, aderindo ao culto dos seus deuses.

Não obstante, a obra conclui com uma nota de esperança na terceira parte, através de uma Liturgia penitencial na qual Deus oferece, mais uma vez, o seu perdão.

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem [1].

Vale recordar ainda, como vimos em nossas postagens sobre o culto dos santos do Antigo Testamento, que o profeta Oseias é comemorado pelo Martirológio Romano no dia 17 de outubro.

"Quero misericórdia e não sacrifício" (Os 6,6)
(Logotipo do Ano da Misericórdia 2015-2016)

2. Leitura litúrgica do Livro de Oseias: Composição harmônica

Conforme os critérios de seleção dos textos bíblicos indicados no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa [2], analisaremos a presença do Livro de Oseias nas celebrações litúrgicas primeiramente a partir da composição harmônica, isto é, da escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.

a) Celebração Eucarística

Seguindo o ciclo do Ano Litúrgico, encontramos primeiramente duas leituras de Oseias nos dias de semana da Quaresma. Aqui “as leituras do Evangelho e do Antigo Testamento (AT) foram escolhidas de modo que tivessem uma relação mútua; elas tratam de diversos temas próprios da catequese quaresmal” [3].

Assim, na sexta-feira da III semana da Quaresma lê-se o texto de Os 14,2-10 [4], a Liturgia penitencial que conclui o livro, com a exortação: “Volta, Israel, para o Senhor teu Deus”. O texto se completa com o ensinamento de Jesus no Evangelho (Mc 12,28b-34), indicando como caminho o amor a Deus e ao próximo.

No dia seguinte, sábado da III semana da Quaresma, lemos Os 6,1-6 [5], outra Liturgia penitencial, que se conclui com a célebre frase: “Quero misericórdia e não sacrifício”, lida aqui à luz da parábola do fariseu e do publicano (Lc 18,9-14).

Nos domingos do Tempo Comum também encontramos duas ocorrências do nosso livro, escolhidas em “relação às perícopes evangélicas” [6]:

- no X Domingo do Tempo Comum do ano A lemos Os 6,3-6 [7], uma vez que, no contexto das críticas por comer com cobradores de impostos e pecadores, Jesus cita o texto de Os 6,6: “Quero misericórdia e não sacrifício” (cf. Mt 9,9-13).

- no VIII Domingo do Tempo Comum do ano B, por sua vez, lemos a perícope de Os 2,14b.15b.21-22 [8], na qual Deus promete desposar Israel. No Evangelho é o próprio Jesus que se apresenta como o noivo, pronto para desposar a Igreja (Mc 2,18-22).

Ainda no Tempo Comum encontramos uma leitura da nossa profecia na Solenidade do Sagrado Coração de Jesus no ano B. Trata-se de Os 11,1.3-4.8c-9 [9], texto no qual Deus declara seu amor pelo povo: “Meu coração comove-se no íntimo e arde de compaixão” (v. 8c). Esta perícope é, naturalmente, proposta ad libitum (à escolha) para a Missa votiva do Sagrado Coração de Jesus [10] e para o Culto do Mistério Eucarístico fora da Missa [11].

"Meu coração comove-se no íntimo e arde de compaixão” (Os 11,8c)
(Sagrado Coração de Jesus - Pompeo Batoni)

Nas celebrações dos Santos encontramos apenas uma ocorrência do profeta. Para o Comum das virgens propõe-se ad libitum o texto de Os 2,16b.17b.21-22 [12], com a imagem do matrimônio, como vimos acima, que se manifesta na consagração a Deus.

Por fim, nas Missas para diversas necessidades encontramos esta mesma perícope da união nupcial de Deus com o seu povo, proposta na Missa pela Igreja e na Missa pelos religiosos [13].

b) Sacramentos e sacramentais

Passando à celebração dos sacramentos, encontramos primeiramente o Livro de Oseias na Entrega do Pai-nosso, um dos ritos da Iniciação Cristã de adultos. O texto indicado aqui é Os 11,1b.3-4.8c-9 [14], a “declaração de amor” de Deus.

O mesmo texto é indicado para o Batismo de crianças [15], porém, apenas para a 1ª etapa do Batismo, quando este acontece em duas celebrações distintas (na 1ª etapa realizam-se os ritos até a unção pré-batismal, enquanto na 2ª etapa se realizam o banho batismal e os ritos complementares).

Na celebração do Sacramento da Reconciliação, por sua vez, são três os textos da profecia propostos ad libitum:
- Os 2,18-26: Deus promete desposar o seu povo;
- Os 11,1-11: Deus declara seu amor pelo povo;
- Os 14,2-10: a Liturgia penitencial, com a exortação a voltar para o Senhor [16].
Nos sacramentais encontramos novamente o texto do capítulo 2, com a temática esponsal, em dois contextos (sempre ad libitum):
- na Consagração das virgens e na Profissão das religiosas: Os 2,16.21-22 [17];
- na Bênção dos noivos: Os 2,21-26 [18].

c) Liturgia das Horas

Na Liturgia das Horas encontramos duas leituras breves da profecia de Oseias em composição harmônica:

- nas Laudes do Sábado Santo: Os 5,15d–6,2 [19], a promessa de restauração e de vida “ao terceiro dia”, lida aqui em chave pascal;

- na Hora Média (9h) da Festa de Nossa Senhora de Guadalupe (12 de dezembro): Os 11,4 [20], o tema do amor de Deus, aplicado aqui à Virgem Maria.

"Eu te desposarei para sempre..." (Os 2,21)
(Cristo e sua Noiva, a Igreja)

3. Leitura litúrgica do Livro de Oseias: Leitura semicontínua

Além da composição harmônica, a Palavra de Deus é proclamada na Liturgia através da leitura semicontínua, isto é, a leitura dos principais textos de um livro na sequência. Aqui, como veremos, a leitura de Oseias está diretamente ligada à de Amós.

a) Celebração Eucarística

Na Celebração Eucarística a leitura semicontínua de Oseias concentra-se em quase toda a XIV semana do Tempo Comum no ano par, logo após a leitura de Amós. As perícopes selecionadas são:

XIV semana do Tempo Comum (ano par):
Segunda-feira: Os 2,16.17b-18.21-22;
Terça-feira: Os 8,4-7.11-13;
Quarta-feira: Os 10,1-3.7-8.12;
Quinta-feira: Os 11,1-4.8c-9;
Sexta-feira: Os 14,2-10 [21].

No sábado inicia-se a leitura de outro profeta do século VIII a. C., porém do reino de Judá: Miqueias, sobre o qual já falamos aqui em nosso blog.

b) Liturgia das Horas

No Ofício das Leituras da Liturgia das Horas, Oseias lê-se também durante cinco dias, entre a XVIII e a XIX semanas do Tempo Comum, mais uma vez entre Amós e Miqueias. Aqui, porém, leem-se alguns textos que não foram proclamados na Missa:

Ofício das Leituras da XVIII semana do Tempo Comum:
Quinta-feira: Os 1,1-9; 3,1-5 - “O profeta é para o povo um sinal do amor de Deus”;
Sexta-feira: Os 2,4.8-26 - “Castigo e futura volta da esposa do Senhor”;
Sábado: Os 5,14–7,2 - “Inutilidade da falsa conversão”.

Ofício das Leituras da XIX semana do Tempo Comum:
Domingo: Os 11,1-11 - “A misericórdia de Deus é infinita”;
Segunda-feira: Os 14,2-10 - “Convite à conversão. Promessa de restauração” [22].

"Do Egito chamei meu filho..." (Os 11,1)
Ícone do retorno da Sagrada Família do Egito

No ciclo bienal do Ofício das Leituras, que não foi traduzido para o Brasil, nosso profeta é lido por onze dias, entre a XXIII e a XXIV semanas do Tempo Comum no ano ímpar, novamente precedido por Amós.

Sua leitura é concluída, no sábado da XXIV semana, por um interlúdio do Segundo Livro dos Reis (2Rs 15,1-5.32-35; 16,1-8), como vimos na sua postagem própria, que dá o contexto histórico dos reinados de Ozias, Joatão e Acaz em Judá, preparando a leitura do Proto-Isaías (capítulos 1 a 39) a partir da semana seguinte.

Indicamos a seguir em negrito as leituras “inéditas” em relação ao ciclo anual [23]:

XXIII semana do Tempo Comum (ano ímpar)
Quarta e quinta: como na quinta e sexta-feira da XVIII semana no ciclo anual;
Sexta: Os 4,1-10; 5,1-7 - “Corrupção geral de Israel e dos sacerdotes”;
Sábado: como no sábado da XVIII semana no ciclo anual.

XXIV semana do Tempo Comum (ano ímpar)
Domingo: Os 8,1-14 - “Contra o rei, a idolatria e o culto”;
Segunda: Os 9,1-14 - “Predição do exílio e da esterilidade”;
Terça: Os 10,1–11,la - “Os ídolos e o rei serão destruídos”;
Quarta: como no domingo da XIX semana no ciclo anual;
Quinta: Os 13,1–14,1 - “Última sentença de aprovação”;
Sexta: como na segunda-feira da XIX semana no ciclo anual.

4. Leitura litúrgica do Livro de Oseias: Cântico

Por fim, cabe ainda mencionar o texto de Os 6,1-6, uma Liturgia penitencial com a promessa de restauração que, como vimos acima, é lida em chave pascal. Assim, este texto é proclamado na Liturgia das Horas também em forma de cântico.

Este cântico não aparece na sua recitação ordinária, mas sim nas Vigílias, rezadas de modo facultativo junto ao Ofício das Leituras dos domingos e solenidades.

O nosso texto é, pois, o II cântico das Vigílias no Tempo Pascal [24], intitulado “O Senhor é compassivo, quer misericórdia e não sacrifícios”. Com sua primeira estrofe concluímos nosso breve estudo da leitura litúrgica de Oseias:

"Vinde, todos, retornemos ao Senhor,
pois, se ele nos feriu, nos curará.
Em dois dias nos dará, de novo, a vida
e em três dias haverá de reerguer-nos
e viveremos na presença do Senhor” (Os 6,1-2).

Profeta Oseias com a inscrição "No terceiro dia..." (Os 6,2)
(Igreja de São Lourenço em Gramastetten - Áustria)

Nas próximas postagens dessa série, no mês de agosto, retornaremos ao bloco dos escritos sapienciais com a análise do Eclesiastes (Qohelet) e do Livro de Jó. Acompanhe-nos!

Notas:
[1] DE LACY, J. M. Abrego. Os livros proféticos. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, pp. 72-96. in: Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, v. 4.
RÖMER, Thomas. Oseias. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 465-483.
[2] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] ibid., p. 97.
[4] LECIONÁRIO II: Semanal. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1995, p. x.
[5] ibid., p. x.
[6] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 103.
[7] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994, p. x.
[8] ibid., p. x.
[9] ibid., p. x.
[10] LECIONÁRIO III: Para as Missas dos Santos, dos Comuns, para Diversas Necessidades e Votivas. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1997, p. x.
[11] SAGRADA COMUNHÃO e o culto do Mistério Eucarístico fora da Missa. Edição típica em tradução portuguesa para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 99.
[12] LECIONÁRIO III, p. x.
[13] ibid., pp. x.
[14] RITUAL DA INICIAÇÃO CRISTÃ DE ADULTOS. Tradução portuguesa para o Brasil da edição típica. São Paulo: Paulus, 2001, p. 57.
[15] RITUAL DO BATISMO DE CRIANÇAS. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, p. 129.
[16] RITUAL DA PENITÊNCIA. Tradução portuguesa para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus: 1999, pp. 111-113.
[17] LECIONÁRIO IV: Lecionário do Pontifical Romano. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 2000, p. 133.
[18] RITUAL DO MATRIMÔNIO. Tradução portuguesa para o Brasil da 2ª edição típica. São Paulo: Paulus, 2007, p. 132; RITUAL DE BÊNÇÃOS. Tradução portuguesa da edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1990, p. 76.
[19] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 1999, v. II, p. 445.
[20] ibid., v. I, p. 1065.
[21] LECIONÁRIO II, pp. x.
[22] OFÍCIO DIVINO, v. IV, pp. 58.62.66.71.75.
[23] Os títulos das leituras foram traduzidos livremente do texto espanhol divulgado pelo site Dei Verbum.
[24] OFÍCIO DIVINO, v. II, p. 1988. Os outros dois cânticos são Is 63,1-5 e Sf 3,8-13.

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