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quinta-feira, 15 de julho de 2021

Catequeses sobre os Salmos (25): Laudes da terça-feira da IV semana

Dando continuidade às suas Catequeses sobre os salmos e cânticos das Laudes, o Papa João Paulo II refletiu sobre os textos da terça-feira da IV semana do Saltério nos dias 30 de abril (Sl 100), 14 de maio (Dn 3,26-27.29.34-41) e 21 de maio de 2003 (Sl 143).

72. Propósitos de um rei justo: Sl 100(101),1-8
30 de abril de 2003

1. Depois das duas catequeses dedicadas ao significado das celebrações pascais, retomamos a nossa reflexão sobre a Liturgia das Laudes. Ela propõe-nos o Salmo 100, que acabamos de ouvir, para a terça-feira da IV semana.
Trata-se de uma meditação que traça o retrato do homem político ideal, cujo modelo de vida deveria ser o agir divino no governo do mundo: um agir regido por uma integridade moral perfeita e por um compromisso enérgico contra as injustiças. Este texto é proposto agora de novo como um programa de vida para o fiel que começa o seu dia de trabalho e de relações com o próximo. É um programa de “amor e justiça” (v. 1), que se desenvolve em duas grandes orientações morais.

2. A primeira é chamada “caminho da inocência” e está orientada para a exaltação das opções pessoais de vida, feitas “na pureza do coração”, isto é, com uma consciência perfeitamente reta (v. 2).
Por um lado, fala-se de maneira positiva das grandes virtudes morais que tornam luminosa a “casa”, ou seja, a família do justo (v. 2): a sabedoria que ajuda a compreender bem e a julgar; a inocência que é pureza de coração e de vida; e, por fim, a integridade da consciência que não tolera compromissos com o mal.
Por outro lado, o salmista introduz um compromisso negativo. Trata-se da luta contra qualquer forma de maldade e de injustiça, de maneira que se possa afastar da própria casa e das opções pessoais qualquer forma de perversão da ordem moral (vv. 3-4).
Como escreve São Basílio, grande Padre da Igreja do Oriente, na sua obra O Batismo, “nem sequer o prazer momentâneo que possa contaminar o pensamento deve perturbar aquele que se configurou com Cristo numa morte semelhante à sua” (Obras ascéticas, Turim, 1980, p. 548).

3. A segunda orientação é desenvolvida na parte final do Salmo (vv. 5-8) e esclarece a importância dos dotes mais tipicamente públicos e sociais. Também neste caso se enumeram os pontos fundamentais de uma vida que deseja recusar o mal com rigor e decisão.
Antes de tudo a luta contra a calúnia e a denúncia secreta, um compromisso básico numa sociedade com tradições orais, que atribuía particular relevo à função da palavra nas relações interpessoais. O rei, que exerce também a função de juiz, anuncia que nesta luta usará a mais rigorosa severidade: exterminará o caluniador (v. 5). Depois, é recusada qualquer forma de arrogância e soberba; são recusados a companhia e os conselhos de quem age sempre com o engano e com a mentira. Por fim, o rei declara de que forma escolherá os seus “servos” (v. 6), ou seja, os seus ministros. Terá a preocupação de escolhê-los entre “os fiéis desta terra” (ibid.). Deseja rodear-se de povo íntegro e recusar o contato com “aquele que mente e que faz injustiça” (v. 7).

"Eu quero cantar o amor e a justiça" (Sl 100,1)
(Cristo entre a misericórdia e a justiça - Pietro Perugino)

4. O último versículo do Salmo é particularmente enérgico. Pode causar perplexidade no leitor cristão: “Em cada manhã haverei de acabar com todos os ímpios que vivem na terra; farei suprimir da cidade de Deus a todos aqueles que fazem o mal” (v. 8). Mas é importante recordar-se de uma coisa: aquele que assim fala não é um indivíduo qualquer, mas o rei, responsável supremo da justiça no país. Com esta frase ele exprime de maneira hiperbólica o seu implacável compromisso de luta contra a criminalidade, um compromisso obrigatório, partilhado por todos os que têm responsabilidades na gestão pública.
Evidentemente não compete a cada cidadão esta tarefa de justiceiro! Por isso, se cada um dos fiéis quer aplicar a si mesmo a frase do Salmo, deve fazê-lo em sentido analógico, isto é, decidindo extirpar todas as manhãs do próprio coração e do seu comportamento a erva daninha da corrupção e da violência, da perversão e da maldade, assim como qualquer forma de egoísmo e de injustiça.

5. Concluímos a nossa meditação retomando o primeiro versículo do Salmo: “Eu quero cantar o amor e a justiça...”. Um antigo escritor cristão, Eusébio de Cesareia, nos seus Comentários aos Salmos, realça a primazia do amor sobre a justiça extremamente necessária: “Celebrarei a tua misericórdia e o teu juízo, mostrando a maneira que te é habitual: não, primeiro julgar e depois ter misericórdia, mas primeiro ter misericórdia e depois julgar, e com clemência e misericórdia pronunciar sentenças. Para isto, eu mesmo, ao exercer a misericórdia e o juízo em relação ao próximo, ouso aproximar-me de ti para, contigo, cantar e honrar. Por conseguinte, consciente de que é preciso agir assim, conservo os meus caminhos imaculados e inocentes, persuadido de que desta forma os meus cânticos te serão agradáveis, por meio das boas obras” (PG 23, 1241).

73. Oração de Azarias na fornalha: Dn 3,26-27.29.34-41
14 de maio de 2003

1. O cântico que agora foi entoado pertence ao texto grego do Livro de Daniel e apresenta-se como súplica elevada ao Senhor com fervor e sinceridade. É a voz de Israel que está vivendo a difícil vicissitude do exílio e da diáspora entre os povos. De fato, quem entoa o cântico é um hebreu, Azarias, inserido no horizonte babilônico no tempo do exílio de Israel, depois da destruição de Jerusalém por obra do rei Nabucodonosor.
Azarias, com outros dois fiéis hebreus, está “no meio do fogo” (Dn 3,25), como um mártir pronto a enfrentar a morte para não trair a sua consciência e a sua fé. Foi condenado à morte por se ter recusado a adorar a estátua imperial.

2. A perseguição é considerada por este cântico uma pena justa com que Deus purifica o povo pecador: “Foi por efeito de um juízo equitativo que nos infligistes tudo isto -confessa Azarias - por causa dos nossos pecados” (v. 28). Estamos assim na presença de uma oração penitencial, que não termina no desencorajamento ou no medo, mas na esperança.
Sem dúvida, o ponto de partida é amargo, a desolação é grave, a prova é pesada, o juízo divino sobre o pecado do povo é severo: “Já não temos mais nem chefe nem profeta; não há mais nem oblações nem holocaustos, não há lugar de oferecer-vos as primícias, que nos façam alcançar misericórdia!” (v. 38). O templo de Sião está destruído e parece que o Senhor já não habita no meio do seu povo.

3. Na situação trágica do presente, a esperança procura a sua raiz no passado, ou seja, nas promessas feitas aos pais. Por conseguinte, remonta-se a Abraão, Isaac e Jacó (v. 35), aos quais Deus tinha garantido bênçãos e fecundidade, terra e grandeza, vida e paz. Deus é fiel e nunca faltará às suas promessas. Mesmo se a justiça exige que Israel seja punido devido às suas culpas, permanece a certeza de que a última palavra será a da misericórdia e do perdão. Já o profeta Ezequiel referia estas palavras do Senhor: “Será que tenho prazer na morte do ímpio? - oráculo do Senhor Deus. Não desejo antes que se ele se converta e viva? (...) Pois Eu não me comprazo com a morte de quem quer que seja” (Ez 18,23.32). Sem dúvida, agora é o tempo da humilhação: “Eis, Senhor, mais reduzidos nós estamos do que todas as nações que nos rodeiam; por nossos crimes nos humilham em toda a terra” (v. 37). Contudo, a expectativa não é a morte, mas uma vida nova, depois da purificação.

4. O orante aproxima-se do Senhor oferecendo-lhe o sacrifício mais precioso e agradável:  o “espírito abatido” e o “ânimo contrito” (v. 39; cf. Sl 50,19). É precisamente o centro da existência, o eu renovado pela prova é oferecido a Deus, para que o receba em sinal de conversão e de consagração ao bem.
Com esta disposição interior acaba o receio, terminam a confusão e a vergonha (v. 40), e o espírito abre-se à confiança num futuro melhor, quando se realizarem as promessas feitas aos pais.
A frase final da súplica de Azarias, do modo como é proposta pela Liturgia, é de grande impacto emotivo e de profunda intensidade espiritual: “De coração vos seguiremos desde agora, com respeito procurando a vossa face!” (v. 41). Tem-se o eco de outro Salmo: “O meu coração pressente os teus dizeres: ‘Procurai a minha face!’ É a tua face, Senhor, que eu procuro” (Sl 26,8).
Já chegou o momento em que o nosso caminhar está abandonando as vias perversas, as veredas sinuosas e as estradas tortuosas (cf. Pr 2,15). Encaminhamo-nos para seguir o Senhor, estimulados pelo desejo de encontrar o seu rosto. E Ele não está irado, mas cheio de amor, como se revelou no pai misericordioso em relação ao filho pródigo (cf. Lc 15,11-32).

5. Concluímos a nossa reflexão sobre o cântico de Azarias com a oração escrita por São Máximo, o Confessor, no seu Discurso ascético (37-39), para o qual se inspira precisamente no texto do profeta Daniel: “Pelo teu nome, Senhor, não nos abandones para sempre, não disperses a tua aliança e não afastes a tua misericórdia de nós (cf. Dn 3,34-35) pela tua piedade, Pai nosso que estás no céu, pela compaixão do teu Filho unigênito e pela misericórdia do teu Santo Espírito... Ouve a nossa súplica, ó Senhor, e não nos abandones para sempre. Nós não confiamos nas nossas obras de justiça, mas na tua piedade, mediante a qual conservas a nossa estirpe... Não desprezes a nossa indignidade, mas tem compaixão de nós segundo a tua grande piedade, e segundo a plenitude da tua misericórdia purifica-nos dos nossos pecados, para que, sem condenações, nos aproximemos da tua santa glória e sejamos considerados dignos da proteção do teu Filho Unigênito”.
São Máximo conclui: “Sim, ó Senhor, Pai Onipotente, atende a nossa súplica, porque nós não reconhecemos nenhum outro além de ti” (Humanidade e divindade de Cristo, Roma, 1979, pp. 51-52).

74. Oração pela vitória e pela paz: Sl 143(144),1-10
21 de maio de 2003

1. Ouvimos agora a primeira parte do Salmo 143. Ela tem as características de um hino real, enriquecido com outros textos bíblicos, de forma a dar vida a uma nova composição orante (cf. Sl 8,5; 17,8-15; 32,2-3; 38,6-7). Quem fala em primeira pessoa é o próprio rei Davi, que reconhece a origem divina dos seus sucessos.
O Senhor é representado com imagens marciais, segundo o antigo uso simbólico: de fato, é visto como um instrutor militar (v. 1), uma fortaleza invencível, um escudo protetor, um triunfador (v. 2). Desta maneira, pretende-se exaltar a personalidade de Deus, que se compromete contra o mal da história: Ele não é um poder obscuro ou uma espécie de destino, nem um soberano impassível e indiferente em relação às vicissitudes humanas. As citações e as tonalidades desta celebração divina sentem o efeito do hino de Davi conservado no Salmo 17 e no capítulo 22 do Segundo Livro de Samuel.

2. Diante do poder divino, o rei hebraico se reconhece frágil e débil, como o são todas as criaturas humanas. Para exprimir esta sensação, o orante real recorre a duas frases presentes nos Salmos 8 e 38, e relaciona-as conferindo-lhes uma nova e mais intensa eficiência: “Que é o homem, Senhor, para vós? Por que dele cuidais tanto assim, e no filho do homem pensais? Como o sopro de vento é o homem, os seus dias são sombra que passa” (vv. 3-4). É realçada aqui a firme convicção de que nós somos inconsistentes, semelhantes a um sopro de vento, se o Criador não nos conserva vivos, Ele que, como diz Jó, “tem em suas mãos a alma de cada ser vivo e o sopro de cada vida humana” ( 12,10).
Só com o apoio divino podemos superar os perigos e as dificuldades que nos acompanham todos os dias da nossa vida. Só contando com a ajuda do céu poderemos comprometer-nos, como o antigo rei de Israel, em libertar-nos de qualquer forma de opressão e a caminhar para a liberdade.

3. A intervenção divina é apresentada com as tradicionais imagens cósmicas e históricas, com a finalidade de ilustrar o domínio divino sobre a criação e sobre as vicissitudes humanas. Eis, então, montes que fumegam em erupções vulcânicas (v. 5). Eis que os raios parecem lanças atiradas pelo Senhor, destinadas a aniquilar o mal (v. 6). Por fim, eis as “grandes águas” que, na linguagem bíblica, são símbolo da desordem, do mal e do nada, em síntese, das presenças negativas na história (v. 7). A estas imagens cósmicas associam-se outras de índole histórica: são “os inimigos” (v. 6), os “estranhos” (v. 7), os mentirosos e quem jura falso, isto é, os idólatras (v. 8).
Trata-se de uma forma muito concreta e oriental para representar a maldade, as perversões, a opressão e a injustiça: realidades tremendas das quais o Senhor nos liberta, enquanto nos encontramos no mundo.

4. O Salmo 143, que a Liturgia das Laudes nos propõe, termina com um breve hino de agradecimento (vv. 9-10). Ele surge da certeza de que Deus não nos abandonará na luta contra o mal. Por isso o orante entoa uma melodia, acompanhando-a com a sua harpa de dez cordas, com a certeza de que o Senhor “dá a vitória aos reis [ao seu consagrado] e salva seu servo Davi” (vv. 9-10).
A palavra “consagrado” em hebraico é “Messias”: por conseguinte, estamos na presença de um salmo real que se transforma, já no uso litúrgico do antigo Israel, num cântico messiânico. Nós, cristãos, o repetimos tendo o olhar fixo em Cristo, que nos liberta de qualquer forma de mal e nos ampara na batalha contra os perversos poderes escondidos. Essa batalha, de fato, não é “contra a carne e o sangue, mas contra os Principados, Potestades, contra os Dominadores deste mundo de trevas, contra os espíritos malignos espalhados pelos ares” (Ef 6,12).

5. Concluímos então com uma consideração que nos é sugerida por São João Cassiano, monge dos séculos IV-V, que viveu na Gália. Na sua obra A Encarnação do Senhor, ele, inspirando-se no versículo 5 do nosso Salmo - “Senhor, inclinai vossos céus e descei” - vê nestas palavras a expectativa da entrada de Cristo no mundo.
E continua assim: “O salmista suplicava que... o Senhor se manifestasse na carne, aparecesse visivelmente no mundo, fosse assumido visivelmente na glória (cf. 1Tm 3,16) e que finalmente os santos pudessem ver, com os olhos do corpo, tudo o que eles espiritualmente tinham previsto” (A Encarnação do Senhor, V, 13, Roma, 1991, pp. 208-209). É deste modo que todos os batizados dão testemunho, na alegria da fé.

"Sede bendito, Senhor Deus de nossos pais!" (Dn 3,26)
Os três Patriarcas: Abraão, "vosso amigo"; Isaac, "vosso servo";
e Jacó, "vosso santo" (Dn 3,35)

Fonte: Santa Sé (30 de abril, 14 de maio e 21 de maio de 2003).

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