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quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Liturgia na Exortação Ecclesia in Europa

Recordando os 20 anos do Grande Jubileu do ano 2000, estamos analisando aqui em nosso blog, sob a perspectiva da Liturgia, os documentos dos Sínodos continentais que foram realizados em preparação ao Grande Jubileu.

Já contemplamos quatro documentos, frutos dos Sínodos para a África, a América, a Ásia e a Oceania. Falta-nos apenas o Sínodo para a Europa, celebrado em Roma de 01 a 23 de outubro de 1999.

Analisaremos aqui a Exortação Apostólica Ecclesia in Europa, promulgada pelo Papa João Paulo II em 28 de junho de 2003. Este, dos cinco documentos, é o que dedica mais espaço ao tema da Liturgia e dos sacramentos, como veremos a seguir.

João Paulo II
Exortação Apostólica Pós-Sinodal Ecclesia in Europa
Sobre Jesus Cristo, vivo na sua Igreja, fonte de esperança para a Europa
  
Capítulo I: Jesus Cristo é nossa esperança
«Não temas! Eu sou o Primeiro e o Último, o Vivente» (Ap 1,17-18)

Já na Introdução, o Papa esclarece que tomará como guia o Livro do Apocalipse, no qual a Liturgia ocupa um papel fundamental. Assim, no início do capítulo I, ao comentar a “visão preparatória” (Ap 1,9-20), cujos elementos são retomados nas cartas às sete igrejas (cap. 2-3), o simbolismo dos “sete castiçais de ouro” é interpretado como uma referência à Liturgia: Ele caminha no meio dos sete castiçais de ouro (cf. Ap 2,1): está presente e ativo na sua Igreja em oração” (n. 06).

Na primeira parte do capítulo I o Papa apresenta os “Desafios e sinais de esperança para a Igreja na Europa”. Dentre os sinais de esperança encontra-se o testemunho dos mártires, que também é interpretado como uma “Liturgia”:

(...) os mártires celebram o ‘Evangelho da esperança’, porque a oferta da sua vida é a manifestação maior e mais radical daquele sacrifício vivo, santo e agradável a Deus que constitui o verdadeiro culto espiritual (cf. Rm 12,1), origem, alma e apogeu de toda a celebração cristã” (n. 13).

A segunda parte do capítulo I está centrada na pessoa de Jesus Cristo: “Voltar a Cristo, fonte de toda a esperança”. No último parágrafo do capítulo, o Papa recorda as “presenças” de Cristo na sua Igreja, destacando a Palavra, a Eucaristia e as ações litúrgicas.

(...) Com os olhos da fé, somos capazes de ver a presença misteriosa de Jesus nos diversos sinais que nos deixou. Está presente antes de mais nada na Sagrada Escritura, que fala d'Ele em todas as suas páginas (cf. Lc 24,27.44-47); de modo verdadeiramente único, porém, Ele está presente sob as espécies eucarísticas. Esta «presença chama-se “real” não a título exclusivo como se as outras presenças não fossem “reais”, mas por excelência, porque é substancial, e porque por ela se torna presente Cristo completo, Deus e homem» (Paulo VI, Carta Enc. Mysterium fidei; cf. Sagr. Congr. dos Ritos, Instr. Eucharisticum mysterium, 9; Catecismo da Igreja Católica, 1374). De fato, na Eucaristia «estão contidos, verdadeira, real e substancialmente, o Corpo e o Sangue, conjuntamente com a alma e a divindade de nosso Senhor Jesus Cristo e, por conseguinte, Cristo completo» (Conc. Ecum. de Trento, Decretum de ss. Eucharistia, cân. 1). «Verdadeiramente a Eucaristia é mysterium fidei, mistério que supera os nossos pensamentos e só pode ser aceite pela fé» (João Paulo II, Carta Enc. Ecclesia de Eucharistia, 15.). Real é também a presença de Jesus nas outras ações litúrgicas da Igreja, que esta celebra em seu nome. Entre elas, contam-se os sacramentos, ações de Cristo, que Ele realiza por meio dos homens (cf. S. Agostinho, In Ioannis Evangelium, Tractatus VI, cap. I, n. 7: PL 35, 1428; S. João Crisóstomo, Sobre a traição de Judas, 1, 6: PG 49, 380C.)” (n. 22).

Papa Francisco celebra Missa em Assis, Itália (2013)

Capítulo II: O Evangelho da esperança confiado à Igreja do novo milênio
«Desperta e reanima o resto que está para morrer» (Ap 3,2)

Na primeira parte do capítulo II, intitulada “O Senhor chama à conversão”, o Papa chama a atenção para a tentação do ativismo, contra a qual propõe redescobrir o sentido da vida litúrgica e da oração:


“(...) Num contexto onde é fácil sentir a tentação do ativismo mesmo a nível pastoral, é pedido aos cristãos da Europa que continuem a ser uma transparência real do Ressuscitado, vivendo em comunhão íntima com Ele. Há necessidade de comunidades que, contemplando e imitando a Virgem Maria, figura e modelo da Igreja na fé e na santidade (cf. Catecismo da Igreja Católica, 773; João Paulo II, Carta Ap. Mulieris dignitatem, 27), preservem o sentido da vida litúrgica e da vida interior. Deverão antes de mais nada e sobretudo louvar o Senhor, invocá-Lo, adorá-Lo e escutar a sua Palavra. Só assim poderão assimilar o seu mistério, vivendo totalmente orientadas para Ele, como membros da sua Esposa fiel” (n. 27).

Ainda sobre o tema da conversão, o Pontífice exorta ao diálogo ecumênico, recordando o contributo das Igrejas Católicas Orientais, especialmente no diálogo com nossos irmãos ortodoxos, com a diversidade de seus ritos:

Apesar das inevitáveis dificuldades, convido todos a reconhecerem e valorizarem, com amor e fraternidade, o contributo que as Igrejas Católicas Orientais podem oferecer para uma efetiva edificação da unidade pelo simples fato da sua presença, a riqueza da sua tradição, o testemunho da sua «unidade na diversidade», a inculturação por elas realizada no anúncio do Evangelho, a diversidade dos seus ritos” (n. 32). 

Com efeito, na Europa encontram-se não apenas a maior parte das Igrejas Ortodoxas, mas também a maioria das Igrejas Orientais Católicas que seguem o Rito Bizantino: Ucraniana, Romena, Eslovaca, Húngara, entre outras.

Na segunda parte do capítulo II, intitulada “A Igreja inteira enviada em missão”, o Papa recorda a responsabilidade de todos no anúncio do Evangelho: ministros ordenados, religiosos e leigos. Em relação à Liturgia se recorda a missão dos sacerdotes (n. 34) e dos diáconos (n. 36):

Em virtude do seu ministério, os sacerdotes são chamados de um modo especial a celebrar, ensinar e servir o Evangelho da esperança. Graças ao sacramento da Ordem que os configura com Cristo, Cabeça e Pastor, os Bispos e os sacerdotes devem conformar toda a sua vida e atividade com Jesus; mediante a pregação da Palavra, a celebração dos sacramentos e a condução da comunidade cristã, tornam presente o mistério de Cristo” (n. 34).

Com os presbíteros, desejo recordar também os diáconos, que, embora em grau diverso, participam do mesmo sacramento da Ordem. Colocados ao serviço da comunhão eclesial, exercem, sob a guia do Bispo e com o seu presbitério, a «diaconia» da Liturgia, da Palavra e da caridade (cf. Lumen gentium, 29)” (n. 36).

Capítulo III: Anunciar o Evangelho da esperança
«Toma o livro aberto (...) e come-o» (Ap 10,8.9)

O capítulo III é dedicado ao tema do anúncio do Evangelho. Na primeira parte, “Proclamar o mistério de Cristo”, o Papa adverte que este anúncio, também no contexto da Liturgia, deve vir acompanhado de um testemunho de vida:

 (...) não basta oferecer a verdade e a graça através da proclamação da Palavra e da celebração dos Sacramentos; é necessário acolhê-las e vivê-las em cada circunstância concreta, no modo de ser dos cristãos e das comunidades eclesiais” (n. 49).

Desta forma o Santo Padre faz eco aos nn. 9-10 da Constituição Sacrosanctum Concilium, que recordam que “a sagrada Liturgia não esgota toda a ação da Igreja”, mas é fonte e ápice que “impele os fiéis, saciados pelos «mistérios pascais», a viverem «unidos no amor»”.

Missa em Czestochowa, Polônia (2016)

Ainda nesta primeira parte do capítulo, os nn. 50-52 são dedicados à formação para a fé, destacando, no n. 51, a importância da catequese:

Além de cuidarem de que o ministério da Palavra, a celebração da Liturgia e o exercício da caridade tenham em vista a edificação e fortalecimento duma fé madura e pessoal, é preciso que as comunidades cristãs procurem propor uma catequese adaptada aos diferentes itinerários espirituais dos fiéis segundo as respectivas idades e estados de vida, prevendo-se ainda adequadas formas de acompanhamento espiritual e de redescoberta do próprio Batismo. Obviamente um ponto fundamental de referência neste trabalho há de ser o Catecismo da Igreja Católica” (n. 51).

No mesmo n. 51 se reforça a importância de que a catequese seja iluminada pela Sagrada Escritura, pela Liturgia e pela Tradição da Igreja. Com efeito, a estreita relação entre Liturgia e Catequese é um tema a ser redescoberto neste terceiro milênio.

Referida constantemente à Palavra de Deus, conservada na Sagrada Escritura, proclamada na Liturgia e interpretada pela Tradição da Igreja, uma catequese orgânica e sistemática constitui, sem sombra de dúvida, um instrumento essencial e primário de formação dos cristãos para uma fé adulta (cf. João Paulo II, Exort. Ap. Catechesi tradendae, 21)” (n. 51).

Após retomar o tema do diálogo na segunda parte, na terceira parte desse capítulo III, intitulada “Evangelizar a vida social”, o Santo Padre trata da evangelização em diferentes contextos: no mundo da cultura, nos meios de comunicação social, entre outros. Os nn. 61-62 são dedicados à evangelização dos jovens, a qual comporta também momentos de oração e de vivência sacramental:

(...) devem-se promover ocasiões de encontro entre os jovens, nos quais se favoreça um clima de escuta mútua e de oração. Não é preciso ter medo de ser exigentes com eles no que se refere ao seu crescimento espiritual. Seja-lhes indicado o caminho da santidade, animando-os a tomarem decisões empenhativas no seguimento de Jesus, sustentados por uma intensa vida sacramental”. (n. 62).

Capítulo IV: Celebrar o Evangelho da esperança
«Ao que está sentado sobre o trono e ao Cordeiro sejam dadas ações de graças, honra, glória e poder para todo o sempre» (Ap 5,13)

O capítulo IV, como indica o título, é dedicado à “celebração do Evangelho”, isto é, à Liturgia. Para nortear nosso estudo, apresentamos um breve resumo dos temas abordados. Após a introdução ao capítulo (n. 66), este é dividido em duas partes:

I. Redescobrir a Liturgia (nn. 67-73)
nn. 67-71: Redescobrir a Liturgia
nn. 72-73: Formação litúrgica

II. Celebrar os sacramentos (nn. 74-82)
n. 74: Introdução
n. 75: Eucaristia
nn. 76-77: Reconciliação
nn. 78-80: Liturgia das Horas e piedade popular
nn. 81-82: O dia do Senhor

O n. 66, que introduz o capítulo, intitulado “Uma comunidade orante” recorda a dimensão litúrgica do Livro do Apocalipse, que tem norteado as reflexões do Documento:

O Evangelho da esperança, anúncio da verdade que liberta (cf. Jo 8,32), deve ser celebrado. Diante do Cordeiro do Apocalipse, tem início uma solene Liturgia de louvor e de adoração: «Ao que está sentado sobre o trono e ao Cordeiro sejam dadas ações de graças, honra, glória e poder para todo o sempre» (Ap 5,13). A própria visão, que revela Deus e o sentido da história, tem lugar «no dia do Senhor» (Ap 1,10), o dia da ressurreição recordado pela assembleia dominical” (n. 66).

Missa em Fátima, Portugal (2017)

No mesmo n. 66, a partir do dado bíblico, o Papa convida a Igreja, e particularmente a Igreja na Europa, a ser comunidade orante, que descobre a presença do Senhor nos sacramentos e na Liturgia:

A Igreja, que acolhe esta revelação, é uma comunidade que reza. Ao rezar, escuta o seu Senhor e aquilo que o Espírito lhe diz (cf. Ap 2,1-3.22); adora, louva, agradece, e também implora a vinda do Senhor: «Vem, Senhor Jesus!» (Ap 22,16.20), afirmando deste modo que só d'Ele espera a salvação.
Também é pedido a ti, Igreja de Deus que vives na Europa, para seres comunidade que reza, celebrando o teu Senhor através dos sacramentos, da Liturgia e da vida inteira. Na oração, descobrirás a presença vivificante do Senhor. Deste modo, enraizando n'Ele toda a tua ação, poderás propor de novo aos europeus o encontro com Ele mesmo, esperança verdadeira e única capaz de satisfazer plenamente o anseio de Deus, oculto nas diversas formas de busca religiosa que surgem na Europa contemporânea” (n. 66).

Entrando na primeira parte do capítulo IV que, como vimos, convida a “Redescobrir a Liturgia”, temos dois parágrafos introdutórios que destacam o “sentido religioso na Europa atual”. No n. 67 se destaca que, apesar do crescente fenômeno da secularização, há na Europa “sinais que ajudam a esboçar o rosto de uma Igreja que, acreditando, anuncia, celebra e serve o seu Senhor”. No n. 68, por sua vez, o Papa adverte contra uma “religiosidade vaga”, que deve ser acolhida e purificada.

A resposta a esta “religiosidade vaga” é justamente a redescoberta do valor da Liturgia, como exorta o Pontífice no n. 69, “Uma Igreja que celebra”:

“(...) redescobrir o sentido do «mistério»; renovar as celebrações litúrgicas para que sejam sinais mais eloquentes da presença de Cristo Senhor; proporcionar novos espaços de silêncio, oração e contemplação; voltar aos sacramentos, sobretudo à Eucaristia e à Penitência, como fontes de liberdade e de nova esperança.
Por isso, a ti, Igreja que vives na Europa, dirijo um premente convite: sê uma Igreja que reza, louva a Deus, reconhece-Lhe o primado absoluto e exalta-O com jubilosa fé. Redescobre o sentido do mistério: vive-o com humilde gratidão; testemunha-o com alegria convicta e contagiante. Celebra a salvação de Cristo: acolhe-a como um dom que faz de ti seu sacramento; faz da tua vida o verdadeiro culto espiritual agradável a Deus (cf. Rm 12,1)” (n. 69).

No n. 70 o Papa exorta a redescobrir o verdadeiro sentido da Liturgia, apresentando alguns elementos que serão retomados no parágrafo seguinte:

(...) é urgente que se reavive na Igreja o autêntico sentido da Liturgia. Esta, como foi recordado pelos Padres sinodais, é instrumento de santificação, celebração da fé da Igreja, meio de transmissão da fé. Constitui, juntamente com a Sagrada Escritura e os ensinamentos dos Padres da Igreja, uma fonte viva de autêntica e sólida espiritualidade. Como bem salienta a tradição das venerandas Igrejas do Oriente, os fiéis, através da Liturgia, entram em comunhão com a Santíssima Trindade, experimentando como dom da graça a sua participação na natureza divina. Ela torna-se assim antecipação da bem-aventurança final e participação na glória celeste” (n. 70).

O n. 71 começa explicando qual é o verdadeiro sentido da Liturgia: Jesus. É necessário “pôr novamente ao centro Jesus”, superando assim uma Liturgia que coloca o homem no centro, seja através de uma preocupação apenas com a dimensão social, seja através do “sentimentalismo”.

Nas celebrações, é preciso pôr novamente ao centro Jesus, para deixar-se iluminar e guiar por Ele. Podemos encontrar aqui uma das respostas mais eficazes que as nossas comunidades são chamadas a dar a uma religiosidade vaga e inconsistente. A Liturgia da Igreja não tem como objetivo aplacar os desejos e os medos do homem, mas escutar e acolher Jesus, o Vivente, que honra e louva o Pai, para louvá-Lo e honrá-Lo com Ele. As celebrações eclesiais proclamam que a nossa esperança vem de Deus, por meio de Jesus nosso Senhor” (n. 71).

Retomando a “tradição das Igrejas do Oriente” mencionada no n. 70, se reforça que a Liturgia é antes de tudo obra da Santíssima Trindade (como indicado pelo Catecismo da Igreja Católica, nn. 1077-1112):

Trata-se de viver a Liturgia como obra da Santíssima Trindade. Nos mistérios celebrados, é o Pai que trabalha para nós; é Ele que nos fala, perdoa, escuta, dá o seu Espírito; a Ele nos dirigimos, a Ele escutamos, louvamos, invocamos. É Jesus que atua para a nossa santificação, tornando-nos participantes do seu mistério. É o Espírito Santo que age com a sua graça e faz de nós o Corpo de Cristo, a Igreja” (n. 71).

Missa em Dublin, Irlanda (2018)

Ainda retomando o que foi dito no n. 70, se recorda a dimensão “escatológica” da Liturgia, enquanto participação na Liturgia celeste, como ensina a Constituição Sacrosanctum Concilium, citada abaixo:

A Liturgia deve ser vivida como anúncio e antecipação da glória futura, meta última da nossa esperança. De fato, como ensina o Concílio, «pela Liturgia da terra participamos, saboreando-a já, na Liturgia celeste celebrada na cidade santa de Jerusalém, para a qual, como peregrinos nos dirigimos, (...) até nosso Senhor Jesus Cristo aparecer como nossa vida e nós aparecermos com Ele na glória» (Sacrosanctum Concilium, 8)” (n. 71).

Por fim, os últimos dois parágrafos desta primeira parte do capítulo (nn. 72-73) tratam do tema da “Formação litúrgica”. O Papa inicia o n. 72 recordando que esta formação deve ser contínua e diz respeito a todos: ministros ordenados, religiosos e leigos. A formação também não pode basear-se em critérios arbitrários, mas sim colaborar na redescoberta do sentido do mistério:

A verdadeira renovação, longe de servir-se de atos arbitrários, consiste em desenvolver cada vez melhor a consciência do sentido do mistério, para fazer das Liturgias momentos de comunhão com o mistério grande e sagrado da Santíssima Trindade. Celebrando as ações sagradas como relacionamento com Deus e acolhimento dos seus dons, expressão de autêntica vida espiritual, a Igreja na Europa poderá verdadeiramente alimentar a sua esperança e oferecê-la a quem a perdeu” (n. 72).

No n. 73, por sua vez, o Santo Padre insiste que a formação seja acompanhada de uma autêntica espiritualidade, promovendo assim a “mistagogia litúrgica”, isto é, a iniciação sempre crescente no sentido do mistério:

(...) é necessário um grande esforço de formação. Tendo como finalidade favorecer a compreensão do verdadeiro sentido das celebrações da Igreja e ainda uma adequada instrução sobre os ritos, tal formação requer uma autêntica espiritualidade e a educação para vivê-la em plenitude. Por conseguinte, há que promover ainda mais uma verdadeira «mistagogia litúrgica», com a participação ativa de todos os fiéis, cada qual segundo as próprias competências, nas ações sagradas, particularmente na Eucaristia” (n. 73).

A segunda parte do capítulo IV é intitulada “Celebrar os sacramentos”. O cuidado na celebração e na pastoral dos sacramentos, evitando assim sua banalização, são destacados no n. 74:

Um lugar de grande relevo há de ser reservado à celebração dos sacramentos, enquanto atos de Cristo e da Igreja, ordenados a prestar culto a Deus, à santificação dos homens e à edificação da comunidade eclesial. Sabendo que neles age o próprio Cristo por meio do Espírito Santo, sejam celebrados com o máximo cuidado e criando as condições adequadas. As Igrejas particulares do continente terão a peito reforçar a sua pastoral dos sacramentos para dar a conhecer a sua verdade profunda. Os Padres sinodais puseram em evidência esta necessidade, para contrastar dois perigos: por um lado, certos ambientes eclesiais parecem ter perdido o genuíno sentido do sacramento e poderiam banalizar os mistérios celebrados; por outro, muitos batizados, seguindo costumes e tradições, continuam a recorrer aos sacramentos em momentos significativos da sua existência, mas não vivem de acordo com as indicações da Igreja” (n. 74).

Na sequência são tratados particularmente dois sacramentos: a Eucaristia (n. 75) e a Reconciliação (nn. 76-77). O parágrafo sobre a Eucaristia recorda sua importância, citando alguns documentos eclesiais:

A Eucaristia, dom supremo de Cristo à Igreja, torna sacramentalmente presente o sacrifício de Cristo oferecido pela nossa salvação: «Na santíssima Eucaristia, está contido todo o tesouro espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa» (Presbyterorum Ordinis, 5). Nela, «fonte e centro de toda a vida cristã» (Lumen gentium, 11), bebe a Igreja, na sua peregrinação, achando lá a fonte de toda a esperança. De fato, a Eucaristia «dá estímulo à nossa caminhada na história, lançando uma semente de ativa esperança na dedicação diária de cada um aos seus próprios deveres» (João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia, 20).
Todos somos convidados a confessar a fé na Eucaristia, «penhor da glória futura», seguros de que a comunhão com Cristo, agora vivida como peregrinos na existência mortal, antecipa o encontro supremo daquele dia em que «seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como Ele é» (1Jo 3,2). A Eucaristia é uma «amostra de eternidade no tempo», é presença divina e comunhão com ela; memorial da Páscoa de Cristo, é por sua natureza portadora da graça na história humana. Abre para o futuro de Deus; sendo comunhão com Cristo, com o seu Corpo e o seu Sangue, ela é participação na vida eterna de Deus (cf. João Paulo II,  Audiência Geral, 25 de outubro de 2000, 2)” (n. 75).

Missa em Blaj, Romênia (2019)

A redescoberta do sacramento da Reconciliação, por sua vez, acompanhada da formação da consciência, é apresentada como resposta ao fenômeno do relativismo. O Papa insiste, porém, que a forma deste sacramento é a confissão individual dos pecados seguida da absolvição. As “absolvições coletivas” não são uma forma alternativa do sacramento, mas sim um recurso extraordinário em situações bem específicas:

(...) é necessário que o sacramento da Reconciliação seja revitalizado na Igreja da Europa. Há que reafirmar, porém, que a forma deste sacramento é a confissão pessoal dos pecados seguida da absolvição individual. Tal encontro do penitente com o sacerdote deve ser promovido de todas as formas previstas no rito do Sacramento. Perante a perda generalizada do sentido do pecado e o acentuar-se de uma mentalidade eivada de relativismo e subjetivismo em campo moral, é preciso que cada comunidade eclesial providencie uma séria formação das consciências. Os padres sinodais insistiram para que seja claramente reconhecida a verdade do pecado pessoal e a necessidade do perdão pessoal de Deus através do ministério do sacerdote. As absolvições coletivas não são uma forma alternativa de administrar o sacramento da Reconciliação (cf. João Paulo II, Motu proprio Misericordia Dei, 4)” (n. 76).

Na sequência, no n. 77, João Paulo II dirige-se diretamente aos sacerdotes, exortando-os a serem disponíveis no atendimento das confissões, acolhendo os fiéis com misericórdia, mas sem relativizar a lei moral da Igreja:

Dirijo-me aos sacerdotes, exortando-os a disponibilizarem-se generosamente para atender a confissão e a darem eles mesmos o exemplo aproximando-se regularmente do sacramento da Penitência. (...) Além disso, prestem particular atenção às condições concretas de vida em que se encontram os fiéis e procurem pacientemente levá-los a reconhecerem as exigências da lei moral cristã, ajudando-os a viverem o sacramento como um encontro feliz com a misericórdia do Pai celeste (cf.  João Paulo II, Carta aos sacerdotes por ocasião da Quinta-feira Santa, 17 de março de 2002, 4)” (n. 77).

Com o título de “Oração e vida, os nn. 78-80 recordam outras formas de oração, litúrgicas e não litúrgicas. A primeira delas é o culto eucarístico fora da Missa:

A par da Celebração Eucarística, é preciso promover também outras formas de oração comunitária, ajudando a descobrir a ligação que existe entre elas e a oração litúrgica. De modo particular, conservando viva a tradição da Igreja latina, sejam promovidas as diversas manifestações do culto eucarístico fora da Missa: adoração pessoal, exposição e procissão, entendidas como expressão de fé na presença real do Senhor que permanece no Sacramento do Altar” (n. 78).

Na sequência o Papa recomenda outra forma de oração litúrgica: a Liturgia das Horas.

Na celebração pessoal e comunitária da Liturgia das Horas, que se reveste de singular valor mesmo para os fiéis leigos, como lembrou o Concílio Vaticano II (cf. Sacrosanctum Concilium, 100), procure-se ensinar a ver a referida conexão com o mistério eucarístico” (n. 78).

Por fim, neste mesmo parágrafo, motivam-se também as orações não-litúrgicas: primeiramente a oração em família, que se torna uma verdadeira “Liturgia doméstica”, e mesmo a oração pessoal, que nos ajuda a viver melhor a oração litúrgica.

Missa em Bari, Itália (2020) - Encontro dos Bispos do Mediterrâneo

No parágrafo seguinte (n. 79) o Santo Padre recorda a piedade popular, que enriquece a vivência da Liturgia e do Ano Litúrgico. Uma vez que em 2003, quando foi promulgada esta Exortação, a Igreja celebrava o “Ano do Rosário”, é destacada essa oração:

Reserve-se uma especial atenção também à piedade popular. Esta, presente em larga escala nas diversas regiões da Europa através das confrarias, das peregrinações e procissões nos numerosos santuários, enriquece o caminho do Ano Litúrgico, inspirando usos e costumes familiares e sociais. Todas estas formas devem ser objeto duma cuidadosa pastoral de promoção e renovamento, ajudando a desenvolver tudo o que nelas seja genuína expressão da sabedoria do povo de Deus. Tal é, sem dúvida, o santo rosário. Neste ano que lhe é dedicado, apraz-me recomendar mais uma vez a sua recitação, porque «o rosário, quando descoberto no seu pleno significado, conduz ao âmago da vida cristã, oferecendo uma ordinária e fecunda oportunidade espiritual e pedagógica para a contemplação pessoal, a formação do povo de Deus e a nova evangelização» (João Paulo II, Carta Ap. Rosarium Virginis Mariae, 3)” (n. 79).

Não obstante sua riqueza, se adverte para os abusos na piedade popular, sendo necessário sempre “evangelizá-la”, vivendo-a em harmonia com a Liturgia. Pode ajudar neste sentido a reflexão do “Diretório sobre piedade popular e Liturgia” (publicado em 2002).

No campo da piedade popular, é preciso vigiar constantemente sobre aspectos ambíguos de determinadas manifestações, preservando-as de desvios secularistas, de consumismos imprudentes ou mesmo de riscos de superstição, para mantê-las sob formas maturas e autênticas. Há que realizar uma obra pedagógica, explicando como a piedade popular deve ser vivida sempre de harmonia com a Liturgia da Igreja e em conexão com os sacramentos” (n. 79).

O tema da “Oração e vida” é concluído no n. 80 com a exortação a viver toda a existência quotidiana como «culto espiritual agradável a Deus» (cf. Rm 12,1).

O último tema tratado neste capítulo IV é “dia do Senhor”, isto é, o domingo. Após lamentar, no n. 81, as diversas circunstâncias que têm levado à perda do sentido deste dia, o Papa exorta no n. 82 à sua redescoberta, citando sua Carta Dies Domini:

Renovo, pois, o convite para se recuperar o significado mais profundo do dia do Senhor: seja santificado com a participação na Eucaristia e com um repouso rico de alegria cristã e de fraternidade. Seja celebrado como centro de todo o culto, incessante prenúncio da vida sem fim, que reaviva a esperança e anima a caminhar. Por isso, não haja medo de defendê-lo contra qualquer ataque e esforçar-se por que seja salvaguardado na organização do trabalho, para que possa ser um dia para o homem a bem da sociedade inteira. De fato, se o domingo for privado do seu significado originário e deixar de haver nele possibilidade de dar espaço adequado à oração, ao repouso, à união e à alegria, pode acontecer que «o homem permaneça encerrado num horizonte tão restrito, que já não lhe permite ver o “céu”. Então, mesmo bem trajado, torna-se intimamente incapaz de “festejar”» (João Paulo II, Carta Ap. Dies Domini, 4). E, sem a dimensão da festa, a esperança não encontraria uma casa onde habitar” (n. 82).

Capítulo V: Servir o Evangelho da esperança
«Conheço as tuas obras, a tua caridade, o teu serviço, a tua fé, a tua paciência» (Ap 2,19)

O capítulo V é dedicado ao serviço da caridade. Em sua segunda parte, intitulada “Servir o homem na sociedade” temos a última referência à Liturgia na Exortação, quando o Papa trata do tema da família.

Aqui se exorta à adequada preparação dos jovens para o sacramento do Matrimônio, uma preparação em “estilo catecumenal” que continue o acompanhamento após a celebração:

Um cuidado particular deve ser reservado à educação para o amor nos jovens e noivos, através de específicos itinerários de preparação para a celebração do sacramento do matrimônio, ajudando-os a viverem castamente até esse momento. Na sua obra educadora, a Igreja estenderá a sua solicitude aos recém-casados, acompanhando-os também depois da celebração das núpcias” (n. 92).

Nossa Senhora de Fátima

Concluímos assim nosso percurso pelos documentos dos cinco Sínodos continentais em preparação ao Grande Jubileu do ano 2000. No mês de janeiro de 2021 analisaremos sob a perspectiva da Liturgia também a Carta Apostólica Novo Millennio Ineunte, promulgada pelo Papa João Paulo II no encerramento do Jubileu e em vista do novo milênio.

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