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quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Leitura litúrgica do Livro dos Juízes

É o Senhor que será vosso rei” (Jz 8,23)

Em nossa série de postagens sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura, estamos analisando o grupo de escritos da “literatura deuteronomista”: além do próprio Livro do Deuteronômio (Dt), ao qual dedicamos três postagens, também o Livro de Josué (Js). Hoje damos continuidade a este estudo com o Livro dos Juízes (Jz).

1. Breve introdução ao Livro dos Juízes

O Livro dos Juízes prossegue a história narrada no precedente escrito (que encerra com a morte de Josué), fazendo a ponte entre o período da conquista da terra e o período da monarquia (séc. XIII-XI a. C.). É uma etapa da história de Israel que poderíamos chamar de “pré-monárquica”.

As figuras que nomeiam o livro, os “juízes” (do hebraico saphat, “julgar” ou “governar”), eram na sua origem líderes e guerreiros das tribos de Israel. De fato, a única personagem que aparece presidindo julgamentos é Débora (Jz 4,5). Não obstante, a obra elenca doze juízes, seis considerados “maiores” (pela maior quantidade de informações sobre eles) e seis “menores” (dos quais temos poucas informações).

A estrutura da obra pode ser assim delineada:

a) Js 1,1–3,6: Dupla introdução:
histórico-geográfica, com a recapitulação da história de Js (1,1–2,5), porém menos triunfalista;
histórico-teológica, com uma avaliação geral sobre o tempo dos juízes (2,6–3,6);

b) Js 3,7–16,31: O ciclo dos juízes:
Juízes maiores: Otoniel (3,7-11), Aod (3,12-30), Débora-Barac (4,1–5,31), Gedeão (6,1–8,35), Jefté (11,1–12,7) e Sansão (13,1–16,31);
Juízes menores: Samgar (3,31), Tola e Jair (10,1-5), Ibsã, Helon e Abdon (12,8-15).
Este ciclo é intercalado pela tentativa fracassada de instalação da monarquia sob Abimelec, filho de Gedeão (9,1-57).

A juíza Débora (cap. 4-5)

c) Js 17,1–21,25: Apêndices, narrando conflitos internos do povo de Israel. Escritos em um contexto pró-monarquia, uma vez que há um juízo negativo sobre não haver rei (17,6; 18,1; 19,1; 21,25), contrastando com textos anteriores (cap. 9).

O Livro dos Juízes provavelmente reúne tradições orais muito antigas sobre os líderes ou “heróis” das tribos. Merece destaque o cântico de Débora (cap. 5), mulher que possui um grande protagonismo, exaltada como profetisa (4,4) e mesmo como “mãe de Israel” (5,7).

Seu cântico é provavelmente um dos textos mais antigos da Sagrada Escritura (junto com o “cântico do mar” de Ex 15). É um hino de vitória, exaltando as tribos que auxiliaram no combate aos cananeus (narrado no capítulo precedente) e repreendendo as que não atenderam ao chamado.

Não obstante essas tradições mais antigas, como parte da “literatura deuteronomista”, boa parte do livro deve ter sido redigida durante a reforma do rei Josias (séc. VII) e mesmo no período do exílio da Babilônia (séc. VI), como, por exemplo, as “liturgias penitenciais” em 2,1-5 e 10,10-16.

Sobre a teologia do livro, esta retoma a antítese já presente em Dt e Js: a fidelidade a Deus, fonte de bênçãos, e a infidelidade, que traz como consequência as maldições. Na introdução teológica (Jz 2,6–3,6), após fazer um juízo positivo sobre a geração do tempo de Josué, o livro indica que a sucede uma geração infiel. Sob a guia dos juízes, a aliança é retomada: intercalam-se então, sucessivamente, períodos de fidelidade e de infidelidade.

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem [1].

2. Leitura litúrgica de Jz: Composição harmônica

O n. 66 do Elenco das Leituras da Missa [2], como vimos nas postagens anteriores desta série, apresenta dois critérios gerais para a escolha das leituras nas celebrações. O primeiro deles é a composição harmônica, isto é, a escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.

No Rito Romano há apenas uma leitura de Jz seguindo este critério, durante o período de “preparação próxima para o Natal”, de 17 a 24 de dezembro. Nesses dias leem-se os relatos da infância do Senhor em Mateus e Lucas, enquanto “para a primeira leitura foram selecionados alguns textos de diversos livros do Antigo Testamento, levando em consideração o Evangelho do dia” [3].

Assim, na Missa do dia 19 de dezembro lemos Jz 13,2-7.24-25a, o anúncio do nascimento de Sansão feito por um anjo a seus pais. Esta narrativa possui diversos paralelos com o Evangelho do dia (Lc 1,5-25), no qual o anjo Gabriel anuncia ao sacerdote Zacarias o nascimento de João Batista.

O juiz Gedeão (cap. 6-8)

3. Leitura litúrgica de Jz: Leitura semicontínua

A partir do critério da leitura semicontínua (leitura dos principais textos de um livro na sequência), a presença de Jz nas celebrações é mais abundante, como veremos a seguir.

a) Celebração Eucarística

A leitura semicontínua de Jz na Missa concentra-se na XX semana do Tempo Comum no ano ímpar, logo após a leitura de Js, como vimos na postagem anterior. O livro é proclamado durante quatro dias dessa semana:
Segunda-feira: Jz 2,11-19 (introdução teológica do livro);
Terça-feira: Jz 6,11-24a (vocação de Gedeão);
Quarta-feira: Jz 9,6-15 (repreensão contra a tentativa de monarquia sob Abimelec);
Quinta-feira: Jz 11,29-38a (o voto temerário de Jefté e suas consequências desastrosas).

Cumpre notar que os últimos dois dias desse semana são completados com a leitura do Livro de Rute (Rt), uma história situada “no tempo em que os juízes governavam” (Rt 1,1). Este livro, porém, não pertence à “literatura deuteronomista”, sendo parte das chamadas “novelas bíblicas” (Rt, Tb, Jt e Est), sobre as quais trataremos no futuro.

b) Liturgia das Horas

Também na Liturgia das Horas a leitura de Jz segue a de Js, como vimos na postagem anterior. Referimo-nos aqui ao Ofício das Leituras da XI semana do Tempo Comum [4]:

Domingo: Jz 2,6–3,4 - “Visão de conjunto do tempo dos juízes”;
Segunda-feira: Jz 4,1-24 - “Débora e Barac”;
Terça-feira: Jz 6,1-6.11-24 - “Vocação de Gedeão”;
Quarta-feira: Jz 6,33–7,8.16-22 - “Gedeão vence com um minúsculo exército”;
Quinta-feira: Jz 8,22-23.30-32; 9,1-15.19-20 - “O povo de Deus tenta proclamar um rei”;
Sexta-feira: Jz 13,1-25 - “Anúncio do nascimento de Sansão”;
Sábado: Jz 16,4-6.16-31 - “Traição de Dalila e morte de Sansão”.

No ciclo bienal do Ofício das Leituras, que não foi traduzido para o Brasil, nosso livro é proclamado por oito dias, entre a XI e a XII semanas do Tempo Comum no ano ímpar:

XI semana do Tempo Comum (ano ímpar)
Segunda a sexta-feira: como acima, de domingo a quinta-feira no ciclo anual;
Sábado: Jz 11,1-9.29-40 - “Voto e vitória de Jefté” [5].

XII semana do Tempo Comum (ano ímpar)
Domingo e segunda-feira: como acima, na sexta-feira e no sábado do ciclo anual.

Tanto no ciclo anual quanto no ciclo bienal a leitura semicontínua de Jz na Liturgia das Horas é sucedida pelos Livros de Samuel (1Sm e 2Sm), prosseguindo assim a história deuteronomista, que se estende até os Livros dos Reis, com as narrativas do período da monarquia, até o exílio da Babilônia (séc. XI-VII a. C.). Sobre esses livros, porém, falaremos em postagens futuras da nossa série.

O juiz Sansão (cap. 13-16)
Sansão que derruba as portas de Gaza (Jz 16,3) é um episódio lido em paralelo com a Ressurreição
(Cristo que derruba as portas da morte)

Notas:
[1] LAMADRID, Antonio González. Os Livros de Josué e dos Juízes. in: LAMADRID, Antonio González et al. História, narrativa, apocalíptica. São Paulo: Ave-Maria, 2004, pp. 76-102 (Coleção: Introdução ao estudo da Bíblia, v. 3b).
LANOIR, Corinne. Juízes. in: RÖMER, Thomas; MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe [org.]. Antigo Testamento: História, Escritura e Teologia. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 322-337.
[2] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[3] ibid., p. 94.
[4] OFÍCIO DIVINO. Liturgia das Horas segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição típica. São Paulo: Paulus, 2000, v. III, pp. 312.317.321.326.330.334.339.
[5] O título da leitura foi traduzido livremente do texto espanhol divulgado pelo site Dei Verbum.

[Observação: Devido ao distanciamento social ocasionado pela atual pandemia de coronavírus (Covid-19), não temos acesso aos Lecionários I-III para indicar as páginas das leituras. Assim que a situação se normalizar, atualizaremos a postagem com as devidas referências]

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