“Tende em vós os
mesmos sentimentos de Cristo Jesus” (Fl 2,5).
Em nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura já contemplamos seis dos treze escritos atribuídos
ao Apóstolo Paulo: as duas Cartas aos
Tessalonicenses e as quatro “grandes Cartas” (a Carta aos Gálatas, as duas Cartas aos
Coríntios e a Carta aos
Romanos).
Dando continuidade à proposta, iniciaremos uma análise das
três “Cartas do cativeiro”, com importantes reflexões sobre Cristo e a Igreja: Filipenses, Colossenses e Efésios.
Começaremos pela Carta aos Filipenses (Fl), Πρὸς Φιλιππησίους.
1. Breve introdução à
Carta aos Filipenses
Segundo os Atos dos
Apóstolos, a cidade de Filipos, na Macedônia, foi visitada por Paulo em sua
“segunda viagem missionária” (anos 50-52), sendo a primeira comunidade fundada
pelo Apóstolo na Europa (At 16,11-40).
A Carta teria sido
escrita da prisão (cf. Fl
1,7.12-13); porém, não está claro de qual se trata. Nos Atos são
relatadas duas prisões de Paulo: Cesareia entre 58 e 60 (At 23–26) e
Roma entre 61 e 63 (At 28). Sugere-se ainda uma prisão em Éfeso entre os
anos 54 e 56. Na Segunda Carta aos Coríntios escrita em torno do ano 57,
Paulo já fala de “prisões” no plural (2Cor 11,23).
Embora a autoria paulina não seja questionada, discute-se
acerca da unidade da Carta. O texto é
marcado por um tom bastante afetuoso, familiar; porém há uma mudança brusca no
início do capítulo 3, dedicado a correções e polêmicas. Assim, alguns
estudiosos postulam a existência de duas ou até mesmo três cartas dentro de Filipenses.
Não obstante estas questões, a Carta pode ser
estruturada em seis partes, “emolduradas” por uma introdução e uma conclusão:
a) Fl 1,1-11: Introdução, com a saudação (vv. 1-2) e a
ação de graças (vv. 3-11);
b) Fl 1,12-26: Situação de Paulo na prisão;
c) Fl 1,27–2,18: Exortação a seguir o exemplo de
Cristo;
d) Fl 2,19–3,1a: Projeto de enviar Timóteo e
Epafrodito a Filipos;
e) Fl 3,1b–4,1: Advertência contra os “falsos
mestres”;
f) Fl 4,2-9: Exortação à unidade e à alegria;
g) Fl 4,10-20: Agradecimento pelo auxílio enviado
pelos filipenses;
h) Fl 4,21-23: Conclusão, com as saudações finais.
Merece destaque a segunda seção (Fl 1,27–2,18), com a
exortação a seguir o exemplo de Cristo, na qual se encontra o importantíssimo
hino cristológico, que poderíamos chamar de “hino ao Mistério Pascal” (Fl
2,6-11). Este é o mais antigo hino em honra a Cristo que foi conservado, tendo
sido provavelmente entoado na Liturgia da comunidade cristã primitiva e
adaptado pelo Apóstolo em sua Carta.
O hino estrutura-se em dois movimentos: a katabasis (rebaixamento) ou kenosis (esvaziamento) de Cristo nos vv.
6-8 e a sua anabasis (exaltação) nos
vv. 9-11. Trata-se de uma síntese histórico-salvífica do mistério de Cristo
celebrado na Liturgia: Encarnação, Paixão e Ressurreição (expressa no hino como
“exaltação”).
Alguns estudiosos veem na kenosis de Cristo um paralelo com Adão (imagem presente na Primeira Carta aos Coríntios e na Carta
aos Romanos): enquanto Adão,
sendo homem, quis se tornar igual a Deus, Jesus, sendo Deus, se fez homem.
Quanto ao tema dos “falsos mestres” no capítulo 3, chamados
por Paulo de “maus operários” (v. 2)
e “inimigos da cruz” (v. 18), parecem
ser grupos de judaizantes (como na Carta aos Gálatas), uma vez que Paulo apresenta suas “credenciais” judaicas, afirmando
que o mais importante é o conhecimento e o amor de Cristo (vv. 7-11).
Além disso, podemos supor que havia divisões internas na
própria comunidade, dado que o Apóstolo insiste diversas vezes na importância
da unidade e da humildade, recorrendo ao exemplo de Cristo, como vimos acima.
Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da
postagem.
2. Leitura litúrgica
da Carta aos Filipenses: Composição
harmônica
Como fizemos com as demais Cartas Paulinas, analisaremos a leitura litúrgica de Filipenses a partir dos dois critérios
de seleção dos textos indicados no n. 66 do Elenco
das Leituras da Missa (ELM):
a composição harmônica e a leitura semicontínua [1].
Iniciamos nosso percurso com o critério da composição
harmônica, isto é, a escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa
litúrgica.
a)
Celebração Eucarística
Antes ainda das leituras, vale destacar um texto da nossa Carta
no próprio Ordinário da Missa, como 2ª opção de bênção para o Tempo Comum:
“A paz de Deus, que supera todo
entendimento, guarde vossos corações e vossas mentes no conhecimento e no amor
de Deus, e de seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo” (Fl 4,7) [2].
Considerando as leituras propriamente ditas, começamos nosso
percurso pelo Tempo do Advento, no
qual “as leituras do Apóstolo contêm exortações e ensinamentos relativos às
diversas características deste tempo” (ELM, n. 93) [3]. Aqui nossa Carta é lida em dois domingos:
- II Domingo do
Advento (Ano C): Fl 1,4-6.8-11 [4], em sintonia com a índole
escatológica do início desse tempo, Paulo deseja que o amor dos filipenses “cresça sempre mais”, pois “assim ficareis puros e sem defeito para o
dia de Cristo” (v. 10);
- III Domingo do
Advento (Ano C): Fl 4,4-7 [5]. O III Domingo do Advento é conhecido
como o “Domingo da Alegria”, pois antecede os dias de preparação próxima para o
Natal do Senhor (17 a 24 de dezembro). A leitura, pois, nos exorta: “Alegrai-vos
sempre no Senhor; eu repito, alegrai-vos. O Senhor está próximo” (vv. 4-5).
Do início da leitura é tomada a célebre antífona de
entrada desse Domingo: “Gaudete in
Domino...” - “Alegrai-vos sempre no Senhor. De novo eu vos digo:
alegrai-vos! O Senhor está perto” (Fl 4,4.5) [6].
Ainda em relação a esse Tempo, vale destacar a antífona
da Comunhão para as sextas-feiras do Advento até o dia 16 de
dezembro, também sobre a alegre expectativa pela vinda do Senhor: “Esperamos
um Salvador, o Senhor Jesus Cristo; Ele transformará, segundo a sua condição
gloriosa, a nossa humilde condição” (Fl 3,20-21) [7].
Coroa do Advento: A vela rosa representa o “Domingo Gaudete” |
Passando aos domingos do Tempo da Quaresma, nos quais “as leituras do Apóstolo foram escolhidas de tal
forma que tenham relação com as leituras do Evangelho e do Antigo Testamento” (ELM,
n. 97) [8], identificamos três leituras de Filipenses:
- II Domingo da
Quaresma (Ano C): Fl 3,17–4,1 (forma breve: Fl 3,20–4,1) [9],
a promessa de que Cristo “transformará o
nosso corpo humilhado e o tornará semelhante ao seu corpo glorioso” (v. 21),
em sintonia com o relato evangélico da Transfiguração do Senhor (Lc
9,28b-36).
- V Domingo da
Quaresma (Ano C): Fl 3,8-14 [10]. Aqui Paulo exorta a lançar-se “para o que está na frente”, isto é,
Cristo. Este texto está em harmonia tanto com a 1ª leitura, que anuncia a nova
aliança (Is 43,16-21), quanto com o Evangelho (Jo 8,1-11), no
qual Jesus propõe uma vida nova à mulher pecadora: “De agora em diante não peques mais” (v. 11).
- Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor: Fl 2,6-11 [11]. Lemos aqui o “hino ao Mistério
Pascal” (omitida, infelizmente, a “introdução” do v. 5), que sintetiza
extraordinariamente tudo que será celebrado na Semana Santa que se inicia.
Do “hino” é tomada também a antífona de aclamação ao
Evangelho do Domingo de Ramos, que será retomada na Celebração da Paixão do Senhor, na Sexta-feira Santa: “Jesus Cristo se tornou
obediente, obediente até a morte numa cruz...” (Fl 2,8-9) [12].
Outros versículos do hino são entoados como antífona de
entrada da Quarta-feira da Semana Santa: “Ao nome de Jesus todo
joelho se dobre... pois o Senhor se fez obediente até a morte...” (Fl
2,10.8.11) [13].
“Obediente até a morte, e morte de cruz...” (Fl 2,8) (Crucificação - Léon Bonnat) |
Concluímos aqui a primeira parte da nossa pesquisa sobre a
presença da Carta aos Filipenses nas
celebrações litúrgicas do Rito Romano. Na segunda parte continuaremos
analisando sua leitura em composição harmônica nas Missas dos santos, para
diversas necessidades e votivas.
Breve bibliografia sobre a Carta aos Filipenses:
BARBAGLIO, Giuseppe. À
comunidade de Filipos. in: As Cartas de Paulo II: Tradução e comentários.
São Paulo: Loyola, 1991, pp. 351-412. Coleção: Bíblica Loyola, vol. 5.
BOSCH, Jordi Sánchez. A
Carta aos Filipenses e a Carta a Filêmon.
in: Escritos paulinos. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, 2008, pp. 331-349.
Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia,
vol. 7.
BROWN, Raymond. Carta
aos Filipenses. in: Introdução ao Novo Testamento. 2ª ed.
São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 641-664.
BYRNE,
Brendan. A Carta aos Filipenses. in:
BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo
Testamento e artigos sistemáticos. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2011,
pp. 441-452.
GARCÍA, Miguel Salvador. Carta aos Filipenses. in:
OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao
Novo Testamento. São
Paulo: Ave Maria, 2006, pp. 535-546.
VOUGA, François. A epístola
aos Filipenses. in: MARGUERAT,
Daniel [org.]. Novo Testamento: História,
escritura e teologia. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 297-314.
Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A
Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São
Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição
típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 525.
[3] ALDAZÁBAL, op.
cit., p. 94.
[4] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª
edição típica para o Brasil. São
Paulo: Paulus, 1994.
[5] ibid.
[6] MISSAL ROMANO, p. 131.
[7] ibid., p. 139.
[8]
ALDAZÁBAL, op. cit., p. 97.
[9] LECIONÁRIO
I, op. cit.
[10] ibid.
[11] ibid.
[12] ibid.
[13] MISSAL ROMANO, p. 234.
Imagens: Wikimedia Commons.
Nenhum comentário:
Postar um comentário