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quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Leitura litúrgica da Carta aos Filipenses (1)

“Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo Jesus” (Fl 2,5).

Em nossa série sobre a leitura litúrgica dos livros da Sagrada Escritura já contemplamos seis dos treze escritos atribuídos ao Apóstolo Paulo: as duas Cartas aos Tessalonicenses e as quatro “grandes Cartas” (a Carta aos Gálatas, as duas Cartas aos Coríntios e a Carta aos Romanos).

Dando continuidade à proposta, iniciaremos uma análise das três “Cartas do cativeiro”, com importantes reflexões sobre Cristo e a Igreja: Filipenses, Colossenses e Efésios. Começaremos pela Carta aos Filipenses (Fl), Πρὸς Φιλιππησίους.

São Paulo na prisão escrevendo suas Cartas
(Rembrandt)

1. Breve introdução à Carta aos Filipenses

Segundo os Atos dos Apóstolos, a cidade de Filipos, na Macedônia, foi visitada por Paulo em sua “segunda viagem missionária” (anos 50-52), sendo a primeira comunidade fundada pelo Apóstolo na Europa (At 16,11-40).

A Carta teria sido escrita da prisão (cf. Fl 1,7.12-13); porém, não está claro de qual se trata. Nos Atos são relatadas duas prisões de Paulo: Cesareia entre 58 e 60 (At 23–26) e Roma entre 61 e 63 (At 28). Sugere-se ainda uma prisão em Éfeso entre os anos 54 e 56. Na Segunda Carta aos Coríntios escrita em torno do ano 57, Paulo já fala de “prisões” no plural (2Cor 11,23).

Embora a autoria paulina não seja questionada, discute-se acerca da unidade da Carta. O texto é marcado por um tom bastante afetuoso, familiar; porém há uma mudança brusca no início do capítulo 3, dedicado a correções e polêmicas. Assim, alguns estudiosos postulam a existência de duas ou até mesmo três cartas dentro de Filipenses.

Não obstante estas questões, a Carta pode ser estruturada em seis partes, “emolduradas” por uma introdução e uma conclusão:
a) Fl 1,1-11: Introdução, com a saudação (vv. 1-2) e a ação de graças (vv. 3-11);
b) Fl 1,12-26: Situação de Paulo na prisão;
c) Fl 1,27–2,18: Exortação a seguir o exemplo de Cristo;
d) Fl 2,19–3,1a: Projeto de enviar Timóteo e Epafrodito a Filipos;
e) Fl 3,1b–4,1: Advertência contra os “falsos mestres”;
f) Fl 4,2-9: Exortação à unidade e à alegria;
g) Fl 4,10-20: Agradecimento pelo auxílio enviado pelos filipenses;
h) Fl 4,21-23: Conclusão, com as saudações finais.

Merece destaque a segunda seção (Fl 1,27–2,18), com a exortação a seguir o exemplo de Cristo, na qual se encontra o importantíssimo hino cristológico, que poderíamos chamar de “hino ao Mistério Pascal” (Fl 2,6-11). Este é o mais antigo hino em honra a Cristo que foi conservado, tendo sido provavelmente entoado na Liturgia da comunidade cristã primitiva e adaptado pelo Apóstolo em sua Carta.

O hino estrutura-se em dois movimentos: a katabasis (rebaixamento) ou kenosis (esvaziamento) de Cristo nos vv. 6-8 e a sua anabasis (exaltação) nos vv. 9-11. Trata-se de uma síntese histórico-salvífica do mistério de Cristo celebrado na Liturgia: Encarnação, Paixão e Ressurreição (expressa no hino como “exaltação”).

Alguns estudiosos veem na kenosis de Cristo um paralelo com Adão (imagem presente na Primeira Carta aos Coríntios e na Carta aos Romanos): enquanto Adão, sendo homem, quis se tornar igual a Deus, Jesus, sendo Deus, se fez homem.

Quanto ao tema dos “falsos mestres” no capítulo 3, chamados por Paulo de “maus operários” (v. 2) e “inimigos da cruz” (v. 18), parecem ser grupos de judaizantes (como na Carta aos Gálatas), uma vez que Paulo apresenta suas “credenciais” judaicas, afirmando que o mais importante é o conhecimento e o amor de Cristo (vv. 7-11).

Além disso, podemos supor que havia divisões internas na própria comunidade, dado que o Apóstolo insiste diversas vezes na importância da unidade e da humildade, recorrendo ao exemplo de Cristo, como vimos acima.

Para saber mais, confira a bibliografia indicada no final da postagem.

Restos arqueológicos da cidade de Filipos

2. Leitura litúrgica da Carta aos Filipenses: Composição harmônica

Como fizemos com as demais Cartas Paulinas, analisaremos a leitura litúrgica de Filipenses a partir dos dois critérios de seleção dos textos indicados no n. 66 do Elenco das Leituras da Missa (ELM): a composição harmônica e a leitura semicontínua [1].

Iniciamos nosso percurso com o critério da composição harmônica, isto é, a escolha do texto por sua sintonia com o tempo ou a festa litúrgica.

a) Celebração Eucarística

Antes ainda das leituras, vale destacar um texto da nossa Carta no próprio Ordinário da Missa, como 2ª opção de bênção para o Tempo Comum: “A paz de Deus, que supera todo entendimento, guarde vossos corações e vossas mentes no conhecimento e no amor de Deus, e de seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo” (Fl 4,7) [2].

Considerando as leituras propriamente ditas, começamos nosso percurso pelo Tempo do Advento, no qual “as leituras do Apóstolo contêm exortações e ensinamentos relativos às diversas características deste tempo” (ELM, n. 93) [3]. Aqui nossa Carta é lida em dois domingos:

- II Domingo do Advento (Ano C): Fl 1,4-6.8-11 [4], em sintonia com a índole escatológica do início desse tempo, Paulo deseja que o amor dos filipenses “cresça sempre mais”, pois “assim ficareis puros e sem defeito para o dia de Cristo” (v. 10);

- III Domingo do Advento (Ano C): Fl 4,4-7 [5]. O III Domingo do Advento é conhecido como o “Domingo da Alegria”, pois antecede os dias de preparação próxima para o Natal do Senhor (17 a 24 de dezembro). A leitura, pois, nos exorta: “Alegrai-vos sempre no Senhor; eu repito, alegrai-vos. O Senhor está próximo” (vv. 4-5).

Do início da leitura é tomada a célebre antífona de entrada desse Domingo: “Gaudete in Domino...” - “Alegrai-vos sempre no Senhor. De novo eu vos digo: alegrai-vos! O Senhor está perto” (Fl 4,4.5) [6].

Ainda em relação a esse Tempo, vale destacar a antífona da Comunhão para as sextas-feiras do Advento até o dia 16 de dezembro, também sobre a alegre expectativa pela vinda do Senhor: “Esperamos um Salvador, o Senhor Jesus Cristo; Ele transformará, segundo a sua condição gloriosa, a nossa humilde condição” (Fl 3,20-21) [7].

Coroa do Advento:
A vela rosa representa o “Domingo Gaudete

Passando aos domingos do Tempo da Quaresma, nos quais “as leituras do Apóstolo foram escolhidas de tal forma que tenham relação com as leituras do Evangelho e do Antigo Testamento” (ELM, n. 97) [8], identificamos três leituras de Filipenses:

- II Domingo da Quaresma (Ano C): Fl 3,17–4,1 (forma breve: Fl 3,20–4,1) [9], a promessa de que Cristo “transformará o nosso corpo humilhado e o tornará semelhante ao seu corpo glorioso” (v. 21), em sintonia com o relato evangélico da Transfiguração do Senhor (Lc 9,28b-36).

- V Domingo da Quaresma (Ano C): Fl 3,8-14 [10]. Aqui Paulo exorta a lançar-se “para o que está na frente”, isto é, Cristo. Este texto está em harmonia tanto com a 1ª leitura, que anuncia a nova aliança (Is 43,16-21), quanto com o Evangelho (Jo 8,1-11), no qual Jesus propõe uma vida nova à mulher pecadora: “De agora em diante não peques mais” (v. 11).

- Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor: Fl 2,6-11 [11]. Lemos aqui o “hino ao Mistério Pascal” (omitida, infelizmente, a “introdução” do v. 5), que sintetiza extraordinariamente tudo que será celebrado na Semana Santa que se inicia.

Do “hino” é tomada também a antífona de aclamação ao Evangelho do Domingo de Ramos, que será retomada na Celebração da Paixão do Senhor, na Sexta-feira Santa: “Jesus Cristo se tornou obediente, obediente até a morte numa cruz...” (Fl 2,8-9) [12].

Outros versículos do hino são entoados como antífona de entrada da Quarta-feira da Semana Santa: “Ao nome de Jesus todo joelho se dobre... pois o Senhor se fez obediente até a morte...” (Fl 2,10.8.11) [13].

“Obediente até a morte, e morte de cruz...” (Fl 2,8)
(Crucificação - Léon Bonnat)

Concluímos aqui a primeira parte da nossa pesquisa sobre a presença da Carta aos Filipenses nas celebrações litúrgicas do Rito Romano. Na segunda parte continuaremos analisando sua leitura em composição harmônica nas Missas dos santos, para diversas necessidades e votivas.

Breve bibliografia sobre a Carta aos Filipenses:

BARBAGLIO, Giuseppe. À comunidade de Filipos. in: As Cartas de Paulo II: Tradução e comentários. São Paulo: Loyola, 1991, pp. 351-412. Coleção: Bíblica Loyola, vol. 5.

BOSCH, Jordi Sánchez. A Carta aos Filipenses e a Carta a Filêmon. in: Escritos paulinos. 2ª ed. São Paulo: Ave Maria, 2008, pp. 331-349. Coleção: Introdução ao Estudo da Bíblia, vol. 7.

BROWN, Raymond. Carta aos Filipenses. in: Introdução ao Novo Testamento. 2ª ed. São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 641-664.

BYRNE, Brendan. A Carta aos Filipenses. in: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. [org.]. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2011, pp. 441-452.

GARCÍA, Miguel Salvador. Carta aos Filipenses. in: OPORTO, Santiago Guijarro; GARCÍA, Miguel Salvador [org.]. Comentário ao Novo Testamento. São Paulo: Ave Maria, 2006, pp. 535-546.

VOUGA, François. A epístola aos Filipenses. in: MARGUERAT, Daniel [org.]. Novo Testamento: História, escritura e teologia. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2015, pp. 297-314.

Notas:
[1] ALDAZÁBAL, José. A Mesa da Palavra I: Elenco das Leituras da Missa - Texto e Comentário. São Paulo: Paulinas, 2007, p. 76.
[2] MISSAL ROMANO. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1991, p. 525.
[3] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 94.
[4] LECIONÁRIO I: Dominical A-B-C. Tradução portuguesa da 2ª edição típica para o Brasil. São Paulo: Paulus, 1994.
[5] ibid.
[6] MISSAL ROMANO, p. 131.
[7] ibid., p. 139.
[8] ALDAZÁBAL, op. cit., p. 97.
[9] LECIONÁRIO I, op. cit.
[10] ibid.
[11] ibid.
[12] ibid.
[13] MISSAL ROMANO, p. 234.

Imagens: Wikimedia Commons.

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